Dando continuidade ao artigo anterior “Barristers, Togas e Perucas1”, atualmente, os advogados no sistema Britânico (e em outros sistemas afluentes do imenso império Britânico) estão divididos em dois grupos distintos, barristers e solicitors. Em outras palavras, quando os nossos alunos perguntam ‘How do you say ADVOGADO in English?’ a minha resposta é sempre: ‘well... it depends’ – resposta-base para todas as perguntas que nos fazem, diga-se de passagem.
Teoricamente (digo isso por estar fazendo uma clara generalização imprecisa, mas suficientemente clara para o nosso propósito de agora), os barristers são especialistas em várias áreas do direito (principalmente causas criminais), e os solicitors são os que lidam com clientes diretamente, frequentemente contatando barristers para aconselhamento e advocacia em tribunais superiores. Pior para quem? Não se sabe ao certo.
Solicitors são aqueles conhecidos por fazer o trabalho pesado da advocacia (‘the brunt of the work’), enquanto os barristers são os ‘lobos solitários’ (‘lone wolves’), usando a expressão idiomática aqui de maneira livre, pois sabe-se que sozinho ninguém é nada na vida. Não há firmas de barristers ou barristers trabalhando dentro de firmas. Há algo supreendentemente diferente que será mostrado logo abaixo.
Os solicitors são classicamente chamados de ‘homens de negócios’ (‘men of affairs’), que aconselham o público em geral em assuntos jurídicos comerciais, empresariais e trabalhistas; causas cíveis em sua imensa maioria. Quando disse ‘trabalho pesado’ logo acima você deve lembrar que papel pesa igual madeira (porque é feito de madeira).
Já os barristers (incrivelmente) não estão autorizados a iniciar relações advogado-cliente e devem esperar pelo trabalho do solicitor para só depois entrarem em cena. Ou seja, o barrister é mais preocupado com as questões de direito do que com o réu.
Por exemplo, vamos supor que você precise de um advogado para te auxiliar em algum caso cível ou criminal, por exemplo. É o solicitor quem o assistirá com todas as questões burocráticas iniciais e geralmente o trabalho no caso se encerra por ali mesmo.
Agora, supondo que a sua lide culmine em um julgamento, onde você precisará ser assistido por um advogado que falará em seu nome ao juízo, então é aqui que o barrister entra em cena. Saiba que isso pode ocorrer nas mais diversas áreas do direito, não só na área criminal, como mitologicamente se fala.
É por isso que se diz que o solicitor tem o barrister como ‘advisor’ (conselheiro) pois o caminho até o bench (o juízo) precisa ser traçado com inteligência e estrita legalidade, mesmo porque o julgamento é a culminação do trabalho do solicitor.-
Para se tornar um barrister seguimos o mesmo começo dos solicitors (que você já deve ter visto aqui no artigo “LNAT, LLB, GDL e a dança das cadeiras2”, mesmo porque partem de um mesmo desejo pela advocacia: fazem o (0) LNAT para entraram na law school, depois partem para os três anos de (1) LLB e, caso já tenham tido uma outra graduação, fazem um ano de GDL ao invés do LLB. Novamente, se você se perdeu aqui, aconselho que dê uma pausa e vá ao artigo indicado (risadas garantidas).
É mais ou menos nesse ponto que surge dentro do âmago do aluno uma inevitável vontade de atuar dentro dos tribunais; uma sede insaciável pela advocacy – que é a arte de falar em nome de alguém. Repare que eu não vou traduzir advocacy como ‘advocacia’ porque a nossa ‘advocacia’ é bem mais ampla semanticamente do que advocacy.
A mera tentativa de se criar um paralelo entre as duas palavras fica “chocha, capenga, manca, anêmica, frágil e inconsistente”. Mas enfim, as togas e as perucas se mostram como demasiadamente sedutoras para quem opera como a common law, imagino; há uma mística que envolve o trabalho dos barristers dentro do Reino Unido, quase como o nosso anel de rubi, mas sem ser brega, entende?
Ao término do seu (1) LLB (ou do seu GLD) o aluno vai ter que partir para o (2) Bar Professional Training Course (BPCT3), que é um curso de geralmente um ano que foca em te ensinar ‘all the skills necessary to advocate in court’ (todas as habilidades necessárias para “atuar” dentro das cortes), mas pode saber que envolve aulas não só sobre aspectos técnicos das defesas, mas também sobre regras de etiqueta, costumes e conduta dentro da corte. Ainda, como se trata de um curso de pós-graduação (no sentido de ser após o LLB ou GDL), nem todas as law schools oferecem o BPTC (veja aqui4 algumas e seus valores).
Ao longo do BPTC, o aluno receberá a primeira parte do treinamento vocacional, auxílio com estudos, técnicas de pesquisa e um clube para chamar de seu, pois o aluno necessariamente terá que ingressar em um dos quatro Inns of Court antes de iniciar o curso. É nesse ponto que o caminho se torna inglês por essência, só lhe faltando a dentição intocada pela moderna ortodontia5.
Essa é talvez a instituição mais interessante que você vai ouvir na sua vida. ‘Chambers’ é uma forma carinhosa de se tratar dessa importantíssima do sistema: The Inns of Court.
Bom, vamos começar pelo começo: lá existem os ‘Inns of Court’, que funcionam como associações profissionais de Barristers. Ao longo do BPTC o aluno deve participar de aulas e minicursos dentro de um Inn of Court. Portanto, logo no início do BPTC o aluno vai ter que escolher em qual Inn of Court ele vai querer ser membro. Não há barrister fora de uma Inn of Court.
Pense no chapéu seletor do Harry Potter, por exemplo, e mantenha essa comparação em mente para as próximas explicações, mesmo porque a J.K. já admitiu publicamente ter se ‘inspirado’ nas Inns of Court para criar Hogwarts. Deve ser porque, assim, a ficção se torna um pouco mais palatável aos leitores quando se faz essa relação com a realidade. Acredite se quiser: a história das Houses of Hogwarts (Gryffindor, Ravenclaw, Hufflepuff, Slytherin) é a parte mais real da obra.
Os Inns têm função de supervisão e disciplina sobre os seus membros. Os Inns também oferecem bibliotecas, refeitórios e acomodações profissionais. Cada um dos Inns também tem uma igreja ou capelinha (mesmo porque, lembremos, até a reforma anglicana quase que a totalidade dos barristers eram membros do clero), além de um lugar onde os advogados tradicionalmente treinam e praticam seus esportes favoritos, inclusive competem entre si, em jogos que ocorrem anualmente, alguns acumulando pontos inclusive, como no Harry Potter. Esse último detalhe sobre os pontos é uma licença poética, mas poderia facilmente ser verdade, conhecendo a disputa acirrada que existe entre Cambridge e Oxford, por exemplo. Segue o jogo.
São prédios físicos mesmo. Elas têm brasões e nomes bacanas e que remontam do século XIV. As quatro Inns of Court são: The Honourable Society of Lincoln's Inn6, The Honourable Society of the Inner Temple7, The Honourable Society of the Middle Temple8, The Honourable Society of Gray's Inn9.
Escolha sua casa (também conhecida como ‘chamber’), borde seu brasão em seu paletó e faça parte do clube mais seleto do que o Country Club, mais vitorioso do que o Minas Tênis, mais entojado do que o “The Meadow Club10”(complete a lacuna com o clube que você acredita ser entojado).
E, para dar mais senso de clube aos Inns of court, todos os Inns compõem um conselho que dá certa padronização aos afazeres dos barristers; esse conselho é o ‘Council of the Inns of Court11’ (mais ou menos como o ‘Ministry of Magic12’).
A história de como cada um desses Inns foi criada é muito bacana, envolvendo os templários inclusive. Dá a impressão que a gente está dentro de um romance de cavalaria tipo o ‘Ivanhoe’.
E fica a dica também para você quando for para Londres, por favor não deixe de pelo menos passar na frente dos prédios e ver os brasões e os jardins, datados do longínquo séc. XV (obviamente muitos dos prédios originais pegaram fogo em 1666). Descendo na estação Temple13, você consegue fazer visita a todos no mesmo dia – é aliás um local importantíssimo para quem ama as ciências jurídicas. Olha que interessante, o nosso artigo te dá dicas de turismo jurídico (vou começar essa trend logo, logo).
É imperativo, também, que uma dessas Inns te aceite como membro. Lembre-se que eles vão ter acesso aos seus antecedentes e sua vida pregressa, então, cuidado por onde anda, com quem anda e quem tu és. Qualquer pequeno deslize pode destruir o seu sonho de ser aceito em Hogwarts... digo, em uma das Inns of Court.
Após esse ano intenso de (2) BPTC, e caso o aluno se mostre como excelente em sua performance, é hora de se tornar uma sombra de um senior barrister para se aprender com ele sobre o dia a dia, sendo constantemente avaliado em todos os momentos. Essa etapa de um ano se chama (3) Pupilage. O aluno (‘pupil’) literalmente vai ter que comer o pão que o diabo amassou (‘pay your dues’) perante o senior barrister.
É aqui que a competição se acirra bastante e a maioria não se qualifica de primeira. Existe um número reduzido de opções para essa carreira e o funil fica cada vez mais restritivo, e, de uma certa forma, é no pupilage que se separam os barristers vocacionados dos muggles14. Mas tenha força, amigo, tudo valerá a pena quando você ganhar sua própria varinha... digo, peruca.
Imaginando que tudo deu certo, o aluno passa por (0) LNAT, (1) LPC ou GLD, (2) BPTC, (3) Pupillage e finalmente pode ser chamado para ser membro permanente de um chamber e então ‘you are called to the Bar’ (você é chamado/convidado a ser um membro do Bar Council). Esse dia especial se chama (4) Call day, no qual há uma bela cerimônia e onde toda a magia acontece. O presidente do Bar Council usa o wingardium Leviosa e você será elevado à Barrister. Prometo que essa é a penúltima referência harripotteriana.
É como se os membros que participam do mundo jurídico (members of the bar) estivessem te chamando para ultrapassar a ‘barra’ (metafórica) que existe entre eles e o peasantry (o povaréu), assim transformando-o em um membro ativo da comunidade judicante. Aqui no Brasil, em contrapartida, há chamamento ao bar, mas sinto que não traz tantos benefícios quanto esse convite do Call Day. Começando pela clara vantagem da peruca.
Antes de terminarmos, vamos colocar alguns números: há hoje cerca de 140.000 solicitors para uns 16.000 barristers. Em outras palavras, apenas 10% dos profissionais do direito no Reino Unido se qualificam como barristers (coloque em perspectiva com os nossos quase 70.000 novos aprovados pela OAB todos os anos).
É óbvio que estamos falando de um país menor em termos populacionais, enquanto eles estão na casa de 66 milhões de habitantes, nós estamos em 220 milhões, mas faça um cálculo estimado de proporção e se surpreenderá. Assim, dá para perceber que há certa a dificuldade tanto para se tornar ‘solicitor and barrister’ quanto para ter acesso a esses profissionais (mesmo porque, frise-se, estamos em uma realidade completamente avessa ao litígio).
O mundo dos barristers é envolto em tradição, pompa e seriedade. Foi graças às suas mãos que hoje temos a Common Law tão amplamente difundida e tão respeitada no mundo, inclusive nos países de Civil Law.
Ser barrister é fazer parte da história da Common Law, inclusive da construção jurídica do mundo, não é à toa que os maiores escritores da Common Law eram, em essência, barristers, nomes que merecem individualmente um capítulo à parte na história do direito: Henry of Bracton, Sir Edward Coke, George Hadley e Sir William Blackstone (o meu autor de cabeceira). Cada um deles merece um brinde seu no seu próximo bar day. Sugiro cerveja amanteigada.
Now, let’s get Legal!
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1 https://www.migalhas.com.br/depeso/373423/barristers-togas-e-perucas
2 https://www.migalhas.com.br/depeso/372770/lnat-llb-gdl-e-a-danca-das-cadeiras
3 https://www.allaboutlaw.co.uk/law-courses/bptc/what-is-the-btc-the-bpc-the-bvs-and-the-bar-course-
4 https://www.thelawyerportal.com/barrister/bar-training-guide/bptc-course-comparison-table/
5 https://www.bbc.com/news/magazine-32883893
6 https://www.lincolnsinn.org.uk/
7 https://www.innertemple.org.uk/
8 https://www.middletemple.org.uk/
9 https://www.graysinn.org.uk/
10 http://www.meadowclub.com/
11https://www.coic.org.uk/
12 https://harrypotter.fandom.com/wiki/Ministry_of_Magic
13 https://tfl.gov.uk/tube/stop/940GZZLUTMP/temple-underground-station/
14 https://harrypotter.fandom.com/wiki/Non-magic_people