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Direito e moral na obra de H. L. A. Hart

O objetivo do texto é apresentar os argumentos de H. L. A. Hart em favor de uma das teses que sempre caracterizou o positivismo jurídico: a tese da separabilidade entre o Direito e a Moral.

7/10/2022

H. L. A. Hart é um dos maiores nome do positivismo jurídico de tradição anglo-saxã. Sua relevância é tanta que Gerald Postema chega a afirmar que antes de Hart o common law era “[...] um vilarejo sonolento e complacente, dominado pela teoria jurídica austiniana [...]”.1  Não é à toa portanto que, antes de fornecer sua própria teoria, Hart gasta três capítulos de sua obra para as expor deficiências geradas por “[...] um modelo simples de sistema jurídico, construído segundo as linhas da teoria imperativa de Austin”.2  Em poucas palavras, Hart provocou uma verdadeira revolução paradigmática em como se pensava o Direito, especialmente no common law.

O objetivo desse texto não é revisitar todas essas questões, mas apresentar os argumentos de Hart em favor de uma das teses que sempre caracterizou o positivismo jurídico: a tese da separabilidade entre o Direito e a Moral3, segundo a qual, em termos conceituais, a validade de uma norma jurídica não depende de sua correção moral.4  Para tanto, contudo, é necessário uma advertência, a fim de se evitar mal-entendidos que recorrentemente recaem sobre a relação entre o Direito e a Moral dentro do positivismo.

Os positivistas conceituais não negam (e jamais negaram) toda e qualquer relação entre o Direito e a Moral.5 A questão é que, para eles, reconhecer a influência que a Moral exerce sobre o Direito é algo distinto de afirmar que somente será jurídica uma norma moralmente justificável. A tese da separação diz respeito, sobretudo, à identificação do Direito. Nesse sentido, o que os positivistas defendem é que não existe uma relação necessária entre os conceitos de Direito e Moral, seja porque o Direito pode ser explicado sem o recurso a argumentos e considerações morais, seja no sentido de que um sistema jurídico e suas normas, para serem consideradas válidos, não necessariamente precisam estar em conformidade com a moralidade.

Sobre essa questão, Hart diz que:

[...] não pode seriamente discutir-se que o desenvolvimento do direito, em todos os tempos e lugares, tem de facto sido profundamente influenciado, quer pela moral convencional, quer por ideais de grupos sociais particulares, quer ainda por formas de crítica moral esclarecida sustentadas por indivíduos cujo horizonte moral transcendeu a moral correntemente aceite. Mas é possível tomar esta verdade de forma ilícita, como uma justificação para uma diferente proposição: a saber, que um sistema jurídico deve mostrar alguma conformidade específica com a moral ou justiça, ou deve repousar sobre uma convicção amplamente difundida de que há uma obrigação moral de lhe obedecer.6

Veja-se, pois, que Hart não nega que o Direito é influenciado pela Moral, como dão conta as leis penais de proibição ao estupro e ao assassinato. Isso não quer dizer, porém, que a correção moral de uma norma jurídica é condição necessária para a sua validade. Seguindo essa linha, seria plenamente possível conferir a um sistema moralmente iníquo o “selo de juridicidade” sem se avançar também uma outra tese, essa sim absurda, de que os indivíduos em geral estão moralmente obrigados a obedecê-lo.7 

A chave para compreender melhor essa afirmação está em distinguir o termo validade na linguagem dos operadores do Direito do termo validade na linguagem dos teóricos do Direito. A busca de critérios de identificação de uma norma jurídica pela Teoria do Direito não se confunde (ao menos não deveria se confundir) com proposições sobre a validade de uma determinada norma formuladas por um juiz diante de um caso concreto. A questão para a Teoria do Direito é a explicação de quais critérios devem ser satisfeitos por uma dada norma para que ela possa ser encarada como jurídica à luz de determinada definição ou conceito de Direito – e isso sem levar em conta o ordenamento jurídico ao qual ela está inserida ou mesmo o seu conteúdo.8

Feitos esses esclarecimentos, pode-se analisar os três argumentos usados por Hart em defesa da tese da separabilidade.

Um primeiro argumento, aqui considerado pouco persuasivo, vai no sentido de que negar a regras jurídicas moralmente iníquas o caráter de juridicidade nos obrigaria a negar como jurídicas certas regras que exibem todas as características do Direito, mas são, de alguma forma, moralmente reprováveis. Isso, por sua vez, não geraria nada além de confusão, já que levaria tais regras a serem objeto de estudo de uma outra disciplina que não possui o ferramental teórico-metodológico adequado para analisá-las e explicá-las, ferramental este que está disponível ao Direito.9

Um outro argumento utilizado por Hart aparenta ser, em uma primeira aproximação, paradoxal.10 Segundo o autor, existem méritos morais em se defender a tese da separabilidade, e isso porque nada de positivo virá da internalização por parte dos indivíduos da ideia jusnaturalista de que é impossível uma lei ser moralmente iníqua. É certo que homens perversos chegarão ao poder e editarão regras perversas, obrigando os cidadãos a cumpri-las. E se é assim, é preferível que os indivíduos tenham em mente a noção de que a qualificação de algo como jurídico a partir de um determinado conceito abstrato de Direito não é “[...] concludente quanto à questão da obediência e que, por maior que seja a aura de majestade ou autoridade que o sistema oficial possa ter, as suas exigências devem no fim ser sujeitas a exame moral”.11 Isto é, a qualificação de algo como jurídico não implica em um dever moral de obediência por parte dos indivíduos, que sempre devem manter uma postura crítica perante as normas vigentes.

Nesse sentido, para John M. Kelly, uma das principais preocupações de Hart ao defender a tese da separabilidade foi contradizer a noção de que uma lei injusta não é uma lei em absoluto para, após, propor a ideia alternativa, por ele considerada mais adequada, de que nada nos impede de reconhecer uma lei injusta como Direito e “[...] ao mesmo tempo condená-la como ruim, buscando sua revogação, recusando-nos a obedecer a ela e resistindo aos que a aprovaram”.  Na mesma linha, Neil MacCormick afirma que, na visão de Hart, não é possível se negar que na história muito daquilo que se fez em nome do Direito é de uma aterradora iniquidade moral. E se é fato que imoralidades foram e serão cometidas por meio do Direito, o melhor que os indivíduos têm a fazer diante da institucionalização do abuso de poder e da barbárie é manter em mente a noção de que “[...] as ‘leis’ recebem esse nome por causa das propriedades estruturais e funcionais do sistema a que pertencem. Não recebem esse nome por serem ou por poderem ser consideradas exigências de uma moral esclarecida”.13

O último argumento de Hart, por ele considerado o mais forte, reside na afirmação de que a negação em absoluto da validade jurídica de normas moralmente perversas pode vir a simplificar sobremaneira a complexa variedade de problemas morais aos quais tais normas dão origem. De um lado, defender a ideia de que uma coisa é o que o Direito é e outra é o que ele deveria ser cumpre um papel de precaução, já que caso os indivíduos confundam invalidade com imoralidade eles podem, deixando de considerar os riscos envolvidos em tal postura, partir do pressuposto de que as leis moralmente iníquas não devem ser obedecidas em nenhum caso. E, para além desse perigo de anarquia, pensando sob o ponto de vista da “[...] pessoa que é chamada a obedecer às regras más, poderemos encarar tal como uma questão de indiferença, respeitante a saber se ela pensa ou não que está confrontada com uma regra válida de ‘direito’, desde que ela veja a sua iniquidade moral e faça o que a moral exige”.14

Dizendo de outro modo, entende Hart que é melhor que existam critérios claros identificadores das normas jurídicas até mesmo para que seja possível que leis ditas injustas sejam objeto de crítica. Sem critérios claros que permitam identificar exatamente aquilo que merece ser criticado, é possível (e até mesmo provável) que determinada defesa moral da lei se confunda com o próprio conteúdo da lei, situação em que se torna difícil, para não dizer impossível, afirmar se determinada lei é ou não moralmente justificável, ou se causa ou não efeitos imorais. “Não ganharíamos nada”, segundo Hart, “permitindo que nossa repugnância moral subverta a nossa percepção analítica; cada uma das duas partes pode cumprir seu papel em sua própria esfera”.15

Para finalizar,  é importante que tenha ficado claro que, em Hart, a tese da separabilidade entre o Direito a Moral não cumpre uma função de legitimar sistemas jurídicos moralmente iníquos. Muito pelo contrário. Seu objetivo não era emitir um mandado de obediência, mas garantir a possibilidade de os cidadãos realizarem uma crítica moral aos usos e abusos do poder por parte das autoridades estatais, algo que, para ele, não ocorreria caso os indivíduos internalizassem a ideia jusnaturalista de que nada de imoral faz parte do Direito. Eles ficariam cegos para a imoralidade. Perceber isto é fundamental para que críticas rasteiras ao positivismo impeçam as discussões que realmente importam.

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1 [...] sleepy, contended, complacent village, dominated by Austinian jurisprudence [...].” Em POSTEMA, Gerald J. Legal philosophy in the twentieth century: the common law world. New York: Springer, 2011, p. 03.

2 HART, H. L. A. Hart. O conceito de direito. Pós-escrito organizado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz e tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 02.

3 Para uma análise crítica e abrangente sobre a viabilidade de se colocar esta tese dentre as caracterizadoras do positivismo jurídico, já que não existe consenso sobre ela nem entre os próprios positivistas, ver FROEHLICH, Charles Andrade. O positivismo jurídico e a diferenciação entre direito e moral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

4 HART, H. L. A. Hart. O conceito de direito. Pós-escrito organizado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz e tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 201.

5 Para uma refutação mais ampla desta afirmação, ver DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: teoria da validade e da interpretação do direito. 2. ed., rev, e atual. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2018, p. 101-107.

6 HART, H. L. A. Hart. O conceito de direito. Pós-escrito organizado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz e tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 201.

7 HART, H. L. A. Positivism and the separation of law and morals. Harvard Law Review, vol. 71, no. 4, 1958, pp. 593–629. Disponível em: . Acesso em 18 jun. 2022, p. 620.

8 Até mesmo por isso as explicação conceituais positivistas aspiram à universalidade, no sentido de que os critérios de validade de uma norma jurídica, porque exclusivamente formais, se aplicam a qualquer ordenamento jurídico.

9 HART, H. L. A. Hart. O conceito de direito. Pós-escrito organizado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz e tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 225-226.

10 Porém, na medida em que para um positivista a tese da separabilidade se refere apenas ao nível da validade do Direito, não abarcando seu conteúdo ou sua aplicação, não há o que se falar em contradição na argumentação de Hart, embora ela possa ser objeto de críticas quanto a sua solidez. Ver WALUCHOW, Wilfrid J. Positivismo jurídico incluyente. Traducción de Marcela S. Gil y Romina Tesone. Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 99-118.

11 HART, H. L. A. Hart. O conceito de direito. Pós-escrito organizado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz e tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 226-227.

12 KELLY, John Maurice. Uma breve história da teoria do direito ocidental. Tradução de Marylene Pinto Michael. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 545.

13 MACCORMICK, Neil.  H. L. A. Hart. Tradução de Cláudia Santana Martins. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 212.

14 HART, H. L. A. Hart. O conceito de direito. Pós-escrito organizado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz e tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 227.

15 KELLY, John Maurice. Uma breve história da teoria do direito ocidental. Tradução de Marylene Pinto Michael. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 545-546.

16Um outro desdobramento interessante da relação entre o Direito e a Moral na obra de Hart diz respeito àquilo que ele chamou de conteúdo mínimo de direito natural. Contudo, em razão do curto espaço, fica como tema para outro texto.

 

Bernardo Strobel Guimarães
Doutor em Direito. Professor da PUC/PR. Advogado

Lucas Sipioni Furtado de Medeiros
Especialista em Direito Constitucional e em Teoria do Direito pela Academia Brasileira de Direito Constitucional - ABDConst.

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