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A incidência do IPTU sobre imóveis em áreas de preservação permanente

Muito se discute acerca da incidência do IPTU sobre imóveis localizados dentro das áreas ambientais de preservação permanente. Afinal, uma pessoa que tem seu direito limitado de uso e gozo sobre o imóvel deve ser contribuinte do IPTU?

5/10/2022

Conforme expresso no art. 225 da Constituição Federal de 1988, o meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito de todos, devendo não apenas o Poder Público como também toda a coletividade defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Ainda, para que determinada disposição possa ser alcançada compete ao Poder Público, entre outras medidas, definir em todas as unidades da Federação espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos.

Com efeito, por meio da lei 9.985/00, criou-se então o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC. Dentro desse sistema, existem dois grupos de unidades de conservação: as Unidades de Proteção Integral e as Unidades de Uso Sustentável. Nesse último, temos a Área de Proteção Ambiental, também conhecido como “APA”, que se trata de uma área extensa, com certo grau de ocupação humana, podendo ser estabelecida em áreas de domínio público e privado, e não sendo necessária a desapropriação das terras. É dentro das APA’s que existem então as chamadas Áreas de Preservação Permanente ou “APP”, objeto principal do presente artigo. 

As APP’s são definidas pela lei 12.651/12, também conhecido como Código Florestal, que em seu art. 3° prevê que entende-se como Área de Preservação Permanente uma área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.

Diferente das APA’s, as Áreas de Preservação Permanente são intocáveis, portanto, não é permitido construir, cultivar e nem explorá-la economicamente. Em razão disso, parte da Doutrina entende pela não incidência do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana – IPTU sobre imóveis localizados dentro dessas áreas.

Vejamos, conforme é cediço o art. 32 do Código Tributário Nacional prevê que o fato gerador do IPTU é a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel localizado na zona urbana do município, e o art. 34 dispõe que o contribuinte do IPTU é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil ou o seu possuidor a qualquer título.

Sabe-se que nos termos do art. 1.228 do Código Civil o proprietário é aquele que possui a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa. Contudo, uma vez que um determinado imóvel se encontra localizado dentro de uma APP, é patente que esse direito ao uso e gozo se reduz, certo?

Aliás, não somente a do proprietário como também a do possuidor. Recorda-se que existem duas teorias principais que servem para conceituar o que seria a posse, a teoria subjetiva de Savigny e a teoria objetiva de Ihering. Na primeira, o possuidor é aquele que além de deter a posse também possui uma vontade de ser dono da coisa, ou seja, ele exerce a posse com o chamado “animus domini”. Se olharmos com base na jurisprudência do STJ, o “promitente comprador”, por exemplo, seria um possuidor, pois essa Corte adota a linha de Savigny (REsp 1.111.202/SP - Recurso Repetitivo 122).

Por sua vez, na teoria objetiva de Ihering não é necessário que a pessoa tenha intenção de ser dona da coisa, ou seja, não é necessário a presença do “animus domini” para que ela possa ser considerada uma possuidora, basta apenas que ela exerça sobre o bem um dos atributos inerentes ao direito de propriedade, tal como disposto no art. 1.196 do Código Civil.

Todavia, conforme mencionado acima, o STJ não segue essa linha doutrinária e vem adotando a teoria subjetiva de Savigny para fins de incidência do IPTU, como no caso do julgamento do Agravo em Recurso Especial 1.566.893/SP. O STF, por sua vez, no julgamento do Agravo Regimental do RE 1.384.169, julgado em agosto desse ano, adotou a teoria objetiva:

“(...) o só fato de a concessionária não exercer a posse com animus domini, também não afasta a incidência do IPTU, haja vista que a teor do art. 34 do CTN, o contribuinte do imposto é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título.” (ARE 1384169 AgR, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 22/08/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-171  DIVULG 26-08-2022  PUBLIC 29-08-2022).

O STF já havia adotado a linha de Ihering em 2017, inclusive em sede de Repercussão Geral (Tema 385). Na ocasião se tratava de um recurso interposto pela Cemig, concessionária de energia elétrica em Minas Gerais, que já vem há alguns anos pleiteando o direito à imunidade tributária recíproca sobre os imóveis públicos cedidos a ela, de forma onerosa, pela União. No caso, além da mesma pleitear a imunidade tributária por tratar-se de uma estatal, em suas razões, também suscitou a falta do “animus domini” no sentido de que ela não seria possuidora do bem e, portanto, não seria sujeito passivo da obrigação tributária.

Porém, não obstante, e até mesmo conforme trazido pelo Ministro Alexandre de Morais no julgamento do Agravo Regimental no RE 1.384.169, nota-se que não há na redação do art. 34 do CTN sequer alguma referência expressa a esse requisito do “animus domini”. Desse modo, voltando-se ao ponto nodal do artigo, logo, para efeitos de incidência do IPTU, seguindo a linha adotada pelo Código Civil e pelo STF, o mero possuidor sem o “animus domini” seria então contribuinte do IPTU, portanto, teria sua faculdade de usar e usufruir do imóvel também reduzida.

Passando adiante, sabe-se que a função principal do imóvel urbano é para fins habitacionais, contudo, por força do parágrafo 2° do art. 32 do CTN, um imóvel destinado à indústria ou ao comércio também pode ser objeto de incidência do IPTU, desde que o mesmo esteja localizado dentro das chamadas áreas urbanizáveis ou de expansão urbana, com isso conclui-se então que a moradia não é a única função social de um imóvel urbano.

Nesse sentido, é certo que o cumprimento da função social de um imóvel urbano deve sempre respeitar as regras instituídas para preservação do meio ambiente, independentemente dele se encontrar ou não dentro de uma APP, até mesmo porque conforme elucidado pelo Exmo. Ministro Herman Benjamin no julgamento do agravo em Recurso Especial 1.723.597:

“O Direito Tributário deve ser amigo, e não adversário, da proteção do meio ambiente. A “justiça tributária” necessariamente abarca preocupações de sustentabilidade ecológica, abrigando tratamento diferenciado na exação de tributos, de modo a dissuadir ou premiar comportamento dos contribuintes que, adversa ou positivamente, impactem o uso sustentável dos bens ambientais tangíveis e intangíveis. No Estado de Direito Ambiental, sob o pálio sobretudo, mas não exclusivamente, do princípio poluidor-pagador, tributos despontam, ao lado de outros instrumentos econômicos, como um dos expedientes mais poderosos, eficazes e eficientes para enfrentar a grave crise de gestão dos recursos naturais que nos atormenta. Sob tal perspectiva, cabe ao Direito Tributário – cujo campo de atuação vai, modernamente, muito além da simples arrecadação de recursos financeiros estáveis e previsíveis para o Estado – identificar e enfrentar velhas ou recentes práticas nocivas às bases da comunidade da vida planetária. A partir daí, dele se espera, quer autopurificação de medidas de incentivo a atividades antiecológicas e de perpetuação de externalidades ambientais negativas, quer desenho de mecanismos tributários inéditos, sensíveis a inquietações e demandas de sustentabilidade, capazes de estimular inovação na produção, circulação e consumo da nossa riqueza natural, assim como prevenir e reparar danos a biomas e ecossistemas. Um esforço concertado, portanto, que envolve, pelos juízes, revisitação e releitura de institutos tradicionais da disciplina e, simultaneamente, pelo legislador, alteração da legislação tributária vigente.” (Ministro Herman Benjamin. Inteiro Teor da decisão. Agravo em Recurso Especial 1.723.597, julgado em abril de 2021).

Os proprietários, possuidores ou ocupantes a qualquer título de imóveis que se encontram localizados dentro dessas áreas devem seguir à risca o que é previsto na legislação ambiental, inclusive quanto à recomposição e recuperação dessas áreas. Relembre-se que essa obrigação não é transmitida ao antigo proprietário caso este, porventura, venha a vender o imóvel, mas, sim, ao novo proprietário que adquiriu o bem (obrigação “propter rem”). Logo, não é difícil presumirmos que tais imposições podem também acarretar em uma desvalorização do valor do imóvel. Nesse ponto, recordemos acerca da capacidade contributiva que conforme dispõe Florence Haret:

“(...) o ônus ambiental suportado pelo proprietário, ainda que não gere cerceamento total de disposição, utilização ou alienação da propriedade, haja vista o princípio do protetor-recebedor deve, sim, ser premiado com a não-incidência do IPTU. Não importa que a limitação da propriedade tenha ou não caráter absoluto, pois o que se vê é que, independentemente, o valor da propriedade diminui e, com isso, na mesma proporção cai a capacidade contributiva do contribuinte-proprietário. Se mesmo com a diminuição de sua capacidade contributiva, a oneração a título de IPTU continua, na mesma proporção dos demais proprietários de bens, sem quaisquer limitações ou desoneração, cumpre afirmar estarmos diante de uma situação de tratamento desigual, sem motivo extrafiscal suficiente para justificar essa maior oneração justamente na pessoa protetora do meio ambiente. O aspecto confiscatório, nessa linha, comparece na medida em que não somente há tributação desigual, como uma incidência onerativa desproporcional em face dos demais contribuintes, uma vez que a propriedade perde valor em face das limitações ambientais em sua propriedade e passa a ter ou continua a obter carga tributária a título do IPTU sem qualquer consideração desses limites.” (HARET, Florence. Ilegitimidade da incidência de IPTU sobre áreas verdes: argumentos tributários e ambientais sobre o tema. Revista Dialética de Direito Tributário nº 233. São Paulo: Dialética, 2014, p. 61-77.)

A título de comparação, na legislação que trata do ITR existe previsão de exclusão das APP’s para efeitos de apuração do imposto devido à interdição aos direitos de uso e gozo inerentes à posse e propriedade advinda pelas imposições dadas pela legislação ambiental. Na verdade, antes mesmo da lei 9.393/96, a lei 8.171/91 que trata da política agrícola já previa em seu art. 104 a isenção tributária, bem como do ITR sobre as áreas rurais que se encontram em áreas de interesse ecológico para a proteção dos ecossistemas.

Agora, voltando-se ao IPTU, conforme ilustrou o Ministro Herman Benjamin no julgamento do Agravo Interno do REsp 1.723.597:

“(...) Nos termos do art. 32, caput, do CTN, o IPTU “tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel” na zona urbana. Leitura apressada do dispositivo poderia transmitir a equivocada impressão de serem redondamente estranhas considerações acerca de fundamentos ético-jurídicos subjacentes à conformação legal do IPTU, como a concreta impossibilidade de explorabilidade econômica lato sensu da inteireza e não de parcela do imóvel, em razão de restrições estatais (urbanísticas, ambientais, sanitárias, de segurança). 5. Como regra, limitação urbanística, ambiental, sanitária ou de segurança - de caráter geral e que recaia sobre o direito de explorar e construir, v. g., gabarito das edificações, recuo de prédios, espaços verdes, Áreas de Preservação Permanente - não enseja desapropriação indireta e não acarreta dever do Estado de indenizar, mesmo quando a condição non aedificandi venha a abranger, de ponta a ponta, o bem em questão, p. ex., aquele derivado de subdivisões sucessivas ou adquirido após o advento da restrição. Contudo, tal negativa de ressarcimento, apurada à luz do Direito das Obrigações e da principiologia de regência do Direito Público, não equivale a pintar de irrelevância jurídica - para fins tributários e de conformação do fato gerador do imposto - a realidade de total, rematada e incontroversa afetação do imóvel a utilidade pública. Ou seja, o titular de domínio (ou de fração dele) de área non aedificandi, apesar de não fazer jus à indenização pela intervenção estatal, merece ser exonerado do IPTU exatamente por conta desse ônus social, se, repita-se, cabal e plenamente inviabilizado o direito de construir no imóvel ou de usá-lo econômica e diretamente na sua integralidade.”

Portanto, ante o exposto, correto seria, a priori, considerarmos pela não incidência do IPTU sobre imóveis localizados dentro das áreas ambientais de preservação permanente, uma vez que resta evidente a presença de uma interdição nos direitos de uso e gozo do bem advinda por força das imposições dadas pela legislação ambiental, e que, por si só, não apenas extingue o direito de propriedade, como também interfere na capacidade contributiva do contribuinte.

Jéssica Pereira
Acadêmica de Direito no Centro Universitário de Belo Horizonte - UNIBH.

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