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Reformatio in mellius no processo administrativo disciplinar

No processo penal, malgrado no passado não se admitisse a aplicação do princípio da reformatio in mellius, hoje a interpretação majoritária da doutrina e da jurisprudência é outra.

4/10/2022

A 3ª turma da 2ª Câmara do CFOAB, recentemente, ao julgar o recurso 24.0000.2021.000075-2, admitiu a aplicação do princípio da reformatio in mellius (reforma para melhor) no recurso exclusivo do querelante, que pedia a majoração da pena.

Na ocasião, um colega advogado foi condenado na base por suposto locupletamento de valores do seu ex-cliente. O processo chegou à Brasília por recurso exclusivo da parte acusadora, no sentido de ver a pena do acusado elevada de advertência para suspensão do exercício profissional. Acontece que, no curso do julgamento, percebeu-se claramente que o acusado agiu de forma adequada, sem excesso na retenção de honorários, razão pelo qual não caberia qualquer reprimenda ao advogado. Porém, como dito, o condenado não havia recorrido ao CFOAB em busca de sua absolvição total.

Sem entrar em maiores detalhes do processo, o relator originário do feito, Conselheiro Federal Daniel Blume (MA), no seu voto havia assinalado com precisão:

(...) efetivamente, sequer seria ao caso de condenação por infração ética ao art. 50 do Código de Ética e Disciplina da OAB, porquanto nota-se que os contratos de prestação de serviços advocatícios são suficientes para elucidar os fatos, prevalecendo neste caso o princípio pacta sunt servanda, de modo que impor ao advogado a obrigação de devolver valores que foram livremente pactuados, ainda mais considerada a inadimplência do pagamento pelos serviços anteriores, seria obriga-lo a prestar serviços de maneira gratuita, o que também é vedado (negritei).

Salta aos olhos a injustiça de se manter uma condenação administrativa, ainda que a parte não tenha recorrido. Como no processo administrativo sancionatório não é possível conceder habeas corpus de ofício (CPP, art. 654, §2º), pois não está em jogo, nem remotamente, a liberdade de ir e vir, resta a questão de saber se é possível, como no processo penal, aplicar-se o princípio da reformatio in mellius, isto é, se no recurso da parte que pleiteia a majoração da pena, ou a condenação por outra falta, é possível absolver ou mesmo diminuir a pena do recorrido.

De saída, convém registrar que o Estatuto da OAB é expresso em acolher, subsidiariamente, as regras do processo penal (art. 68). De outro lado, José Eduardo Martins Cardozo, consagrado administrativista, em recente artigo publicado, salientou que o Brasil, na questão da aplicação da nova lei de improbidade, pode vir a ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Por que o Brasil corre o risco de ser condenado pela Corte IDH? A aplicação retroativa da lei 14.230/21 e as garantias contra o poder punitivo em 16/8/22).

Segundo o articulista, no conhecido caso “Baena Ricardo y otros vs. Panamá”.1 

(...) a Corte IDH já afirmou a aplicação dos princípios e das garantias do direito penal ao direito sancionatório. O argumento é simples, mas poderoso: o poder punitivo do Estado não é só exercido por meio do direito penal, mas também pelo direito sancionatório. Como afirmado pela Corte, em um Estado de Direito, os princípios da legalidade e irretroatividade [devem] nortear as ações de todos os órgãos do Estado, em suas respectivas competências, nomeadamente no que respeita ao exercício do poder punitivo, que se manifesta, com força máxima, como uma das mais graves e intensas funções do Estado contra os seres humanos: a repressão (parágrafo 105 e ss.).

E prossegue José EduardoCardozo: 

(...) não faria sentido que o poder punitivo fosse limitado pelas garantias penais, mas houvesse ampla e irrestrita liberdade da atuação estatal, para punir o indivíduo em outras searas, como a do direito administrativo.

Aceitando esse entendimento como mais do que razoável, é de se ver que no processo penal, malgrado no passado não se admitisse a aplicação do princípio da reformatio in mellius, hoje a interpretação majoritária da doutrina e da jurisprudência é outra.

Douglas Fischer e Eugenio Pacelli, renomados processualistas penais, anotam que “nenhum óbice principiológico ou normativo se apresenta para a ocorrência da denominada reformatio in mellius. A situação nada mais é do que a possibilidade de a instância recursal, ex officio, melhorar a situação do réu, desde que haja devolução da matéria à instância de forma genérica. A alteração do julgado não impugnado somente poderá ser realizada, segundo compreendemos, diante de manifesta ilegalidade do que firmado na decisão submetida ao tribunal” (Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2021, p. 1.614). Os autores colacionam dois importantes julgados do STJ em abono da tese: REsp. 730.337, 5ª T., rel. Min. Arnaldo Esteves de Lima, DJ 7/5/07 e REsp. 666.732, 6ª T., rel. min. Celso Limogi, DJ 23/11/09).

Na mesma linha vai o precioso escólio de Gustavo Badaró no Código de Processo Penal (4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 1316, item. 06).

Aury Lopes Jr. vai nas mesmas aguas e lembra que o princípio do tantum devolutum quantum appellatum “é, acima de tudo, uma limitação recursal ao acusador” e que não há nenhum óbice à reforma para melhor (Direito Processual Penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 1191/92). Da mesma forma é o escólio de Renato Brasileiro de Lima no seu consagrado Curso de Processo Penal (Niteroi: Impetus, 2013, p. 1658/59, item 3.9).

De volta ao caso concreto, o citado órgão julgador da Ordem entendeu, em uníssono, que a justiça encontra-se para além de um pedido do condenado inerte, motivo pelo qual se impunha administrativamente a aplicação analógica do princípio criminal da reformatio in mellius. Eis o leading case que precipitou este registro.

Com essas ligeiras considerações e tomando como base as mesmas premissas fáticas utilizadas pelo Relator, após o voto-vista do Conselheiro Federal Alberto Zacharias Toron (SP) a 3ª turma, com a adesão do relator originário, por unanimidade de votos, conheceu do recurso do querelante, mas para absolver o querelado, originalmente condenado à pena de censura, convertida em advertência confidencial.

______

São José da Costa Rica, 2/2/01. Disponível em https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_72_esp.pdf.

Alberto Zacharias Toron
Advogado criminalista no escritório Toron, Torihara e Szafir Advogados. Conselheiro Federal da OAB.

Daniel Blume Pereira de Almeida
Conselheiro Federal da OAB.

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