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Dress code, dano existencial e diversidade: O código de vestimenta imposto às minorias vulneráveis

Apesar da aparente evolução da sociedade em muitos aspectos, o preconceito direcionado aos menos favorecidos economicamente tem permanecido, dificultando suas oportunidades de inclusão, vivendo ainda na marginalidade social em decorrência de preconceitos e discriminações, aumentando ainda mais a sua vulnerabilidade.

4/10/2022

1 Introdução

Tendo em vista a coerção e advertência que muitas pessoas encaram no seu dia-a-dia, tolhendo o seu direito de ir e vir ao serem impedidas de adentrar ou frequentar determinados locais públicos ou de acesso ao público em razão da sua vestimenta, pretende-se aqui efetuar algumas reflexões acerca da existência de um dress code em certos locais e discutir os direitos por ele violados, bem como a possibilidade de indenização pelo dano causado à vítima.

Importante assinalar que, para nenhum destes locais existe uma lei nacional impositiva que exija a utilização de determinada vestimenta para se entrar ou permanecer naquele lugar e, isto causa uma revolta por parte daquele que se vê cerceado de um direito em decorrência de uma simples vestimenta. 

O respeito à diversidade cultural e ao pluralismo dos diferentes grupos sociais deve servir como parâmetro, uma vez que os direitos das minorias não são observados em muitas questões de vulnerabilidade frente aos mais poderosos social ou politicamente.

Os censores violam os direitos à liberdade, à igualdade e à cultura, em decorrência da roupa ou da vestimenta estar em desacordo com um código instituído por alguém que representa certo poder sobre determinadas pessoas consideradas vulneráveis.

2 Dress Code: código de vestimenta

O dress code é um código de vestimenta para certos lugares e ocasiões. Pergunta-se: quem estabelece a vestimenta adequada para cada local? A maioria ou aquele que detém mais poder? Se não há lei, que legitimidade possui a autoridade que impõe um código de vestimenta para se adentrar a um estabelecimento público ou frequentado pelo público? O dress code é um código moral? Se não é legal, por que motivo as pessoas devem obedecê-lo? Há um dress code para ambientes virtuais? Um código para a vestimenta retira a liberdade de expressão do indivíduo?  Há limites para a sua imposição?  O dress code pode ser motivo de conflito dentro do ambiente de trabalho? Há um dress code para o advogado (a), partes de um processo, juiz, promotor e testemunhas de um caso judicial? Há um dress code até para caminhar na rua? A imposição de um dress code pode gerar indenização por dano moral?

O dress code é cultivado em alguns eventos sociais, ambientes de trabalho ou mesmo para ir à escola ou à faculdade. A finalidade do dress code é padronizar o visual, fazendo com que todas as pessoas estejam em conformidade com a ocasião e o momento.

O vestuário pode ser capaz de nos direcionar para uma imagem mais confiante e profissional. A imagem transmite mensagens e, por isso, o dress code é importante nas empresas. Vestir vai além de cobrir o corpo para se proteger do frio ou do calor. O vestuário nos traz sensações de bem-estar e de autoconfiança, quando colocamos as roupas que realmente nos representa.

Com a pandemia e o isolamento social, muitas empresas aderiram ao regime de trabalho remoto, fazendo com que os deslocamentos diários até o escritório não fossem mais necessários. Há quem diga que prefere se vestir de maneira igual a que se vestia para ir ao trabalho. Outros preferem ficar mais à vontade e aproveitar o conforto de casa para não se preocupar muito com o que vestir. Se os colaboradores são consultores comerciais ou irão participar de reuniões mais formais, o ideal seria vestir alguma roupa que transpareça mais confiança e seriedade.

Destarte, o dress code é um código de vestimenta que tem como objetivo ordenar e padronizar o visual para as diferentes ocasiões, sejam elas profissionais ou sociais.

2 Casuística

2.1 Casos ocorridos no momento das audiências judiciais

Muito comumente, as dependências do Poder Judiciário são palco de episódios onde o dress code é questionado.

Um caso emblemático, que questionou a função de um calçado, foi protagonizado por um  lavrador da cidade de Cascavel, no Estado do Paraná,  no qual o magistrado entendeu que ele não estava vestido adequadamente para a audiência.

Consoante o relatório da sentença de indenização do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, movida pelo lavrador Joanir P. contra o Estado brasileiro, ele havia ingressado com uma reclamatória trabalhista contra uma empresa, em 29/03/2007, perante a 3ª Vara Trabalhista de Cascavel, a qual teve designada uma audiência de conciliação para o dia 13/06/2007.

Quando da realização do ato, o juiz Bento L. A. M. cancelou a audiência sob a alegação de que o autor não trajava calçado adequado, pois calçava chinelo de dedo. (MIGALHAS, 2007). A audiência foi adiada, e nessa data houve nova humilhação, pois o Juiz ofereceu ao autor, no próprio ato do julgamento, um par de sapatos usado (YANAGUI, 2013, p.8).

De acordo com o magistrado, o fundamento da decisão era a dignidade da justiça. Assim, percebe-se um embate entre essa dignidade da justiça versus a dignidade da pessoa humana. Qual delas deve prevalecer? Ora, sendo a dignidade da pessoa humana um fundamento da Constituição Federal (previsto no art. 1º, inciso III), não há que se falar em dignidade do Poder Judiciário em sobreposição à dignidade da pessoa humana.  Referido Juiz do Trabalho foi condenado a ressarcir os cofres públicos em R$ 12,4 mil, valor concernente à indenização por danos morais que a União foi obrigada a pagar ao lavrador.  Consoante a Procuradoria da União no Paraná, a conduta do juiz prejudicou a prestação jurisdicional e humilhou o lavrador, "acusado de atentar contra a dignidade do Poder Judiciário, quando, em verdade, tinha a sua própria dignidade atingida pelo ato levado a termo pelo magistrado trabalhista réu". (JUIZ, 2017)

A cidade de Iguaba Grande (Rio de Janeiro) também presenciou algo inusitado  no âmbito do Poder Judiciário. A Seccional do Rio de Janeiro, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), protocolou no dia 23/10/2019, uma representação junto à Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado contra a juíza Maíra V. V. O., a qual vetou a entrada de mulheres no Fórum de Iguaba Grande, do qual era diretora, de acordo com o tamanho das saias que estavam vestindo (AGÊNCIA ESTADO, 2019).

De acordo com a Ordem dos Advogados do Brasil, OAB, a juíza fixou um aviso sobre a medida na entrada do Tribunal e autorizou que seguranças medissem as roupas das advogadas com régua, sendo que seriam impedidas de entrar no local aquelas mulheres que apresentassem a roupa mais de cinco centímetros acima do joelho. (AGÊNCIA ESTADO, 2019).

A denúncia, assinada pela Comissão de Prerrogativas da OAB-RJ, diz que aludida magistrada descumpre, "deliberadamente", a lei Federal 8.906/94, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem, no tocante à ausência de hierarquia entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo haver "consideração e respeito recíprocos" (AGÊNCIA ESTADO, 2019).

O advogado Fabio O. V. também sofreu restrição quando foi impedido por uma juíza trabalhista, de sentar-se à mesa em uma audiência por não estar engravatado. O advogado ajuizou uma ação, na qual o magistrado que julgou o caso afirmou que a colega envolvida no fato deveria apenas zelar pelo bom andamento dos trabalhos. Entretanto, sua atitude impediu o trabalho do advogado junto ao seu cliente, que nem estava presente no dia. Assim, a medida da juíza viola os direitos e prerrogativas do advogado “que é constitucionalmente indispensável, conforme o artigo 133 da Constituição Federal” (GHIRELLO, 2010).

A advogada goiana Pamela H. O. A. sofreu constrangimento após um desembargador mencionar que ia abandonar uma audiência no Tribunal Regional do Trabalho, em Goiânia, em razão da roupa usada por ela. Um vídeo comprova quando o juiz Eugênio C. diz que ela está usando “camiseta”, que na verdade era um macacão longo.  Mencionou o juiz: “O fórum é todo feito de simbologia, olha as bandeiras de simbologia lá, olha nossas togas, a que a senhora vai vestir aí e a senhora vem fazer uma sustentação oral de camiseta? Se for para fazer, eu saio”... “Em todo o incidente, tratei a nobre advogada com urbanidade. Interrompi o ato, a doutora se paramentou e o seu processo foi julgado”. (G1, Goiás)

Em julho de 2020, durante a 25ª sessão ordinária de julgamento da Câmara Criminal do Tribunal de Justiça da Paraíba, o desembargador Ricardo V. A. advertiu o advogado por estar sem gravata, sob a alegação de que todos eles usavam gravata e é o padrão de quem exercita o labor jurídico, sobretudo em uma sessão solene, mesmo que fosse por videoconferência (MIGALHAS, 2020).

Os fatos não se restringem aos juízos de primeira instância. No dia 27 de outubro de 2020, o Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Gurgel Faria, pediu que os advogados se vestissem de maneira adequada. Para o Ministro, qualquer advogado que se faça presente no tribunal deve usar vestimenta adequada, mesmo que se trate sessão telepresencial ou de videoconferência (MIGALHAS, 2020)

Outra situação deve ser levantada no âmbito do Poder Judiciário, são as vestimentas necessárias para adentrar no Supremo Tribunal Federal ou no TRF2. Para o Tribunal Regional Federal, a vestimenta deve se compatibilizar com o decoro necessário à prática jurisdicional, da qual a advocacia é parte essencial (JUDICIÁRIO NACIONAL, 2011).

Fato inusitado ocorreu com o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Néfi C., o qual apareceu sem calças durante a transmissão de um julgamento virtual de uma sessão da Sexta Turma, realizada no dia 21 de outubro de 2020. O magistrado se levanta para mexer no celular e é possível vê-lo usando somente cuecas na parte de baixo, apesar de estar de camisa, gravata, paletó e toga (capa). O ministro volta a se sentar logo após aparecer de corpo inteiro nas imagens, e os demais presentes na videoconferência não comentam sobre o fato ou interrompe a sessão. (MINISTRO, 2021) Não foi noticiada nenhuma punição ou advertência formal para o juiz.

No ano de 2016, no que diz respeito ao Supremo Tribunal Federal, o ministro Ricardo Lewandowski, então presidente do Supremo Tribunal Federal, editou um Código de Ética dos Servidores, o qual previa a obrigatoriedade de apresentar-se ao trabalho com vestimentas adequadas ao exercício do cargo ou função. Na gestão da Ministra Cármen Lúcia, como Presidente do Supremo Tribunal Federal, a Corte recebeu um ar menos formal. A ordem ao cerimonial era de que ninguém poderia ser barrado pelo quesito vestimenta, fazendo cair por terra qualquer código de vestuário no âmbito daquela corte (BRÍGIDO, 2018).

Ao se analisar alguns casos ocorridos no âmbito do Poder Judiciário, percebeu-se, implicitamente, a existência de um dress code para aqueles que frequentam e se utilizam das dependências do judiciário, com fundamento na dignidade da justiça, o que culmina, em algumas situações, com o afastamento do cidadão das classes minoritárias dos seus direitos (MOSSOI; VIEIRA, 2020), que são alcançados por meio daqueles que instituem vestimentas para adentrar em recintos.

Nos dias de hoje, as pessoas se vestem com trajes cada vez mais informais, mesmo em ambientes formais. No concerne à Corte, a vestimenta não pode restringir o acesso de ninguém, portanto, não se deve exigir roupas formais, como tailler, saia abaixo do joelho, terno, paletó, gravata, sapato de verniz ou salto alto, principalmente de  pessoas simples e vulneráveis.

2.2 Geisy Arruda e a imposição de dress code na universidade

Há um código de vestimenta (dress code) implícito para os alunos e alunas nas universidades?  O transgressor poderá ser expulso?

Em 22 de outubro de 2009, um caso que gerou polêmica no país questionou o vestido curto cor de rosa  usado naquele dia pela universitária Geisy Arruda. A polêmica provocou muita confusão na Universidade Bandeirante de São Paulo, Uniban (ÚLTIMO SEGUNDO, 2010).

Ao chegar para assistir às aulas, a jovem foi cercada por estudantes, ouviu xingamentos (puta, vagabunda), vaias e ameaças, e acabou se trancando em uma sala de aula para se proteger, de onde só saiu escoltada pela Polícia Militar, vestindo um jaleco branco mais longo por cima do vestido, emprestado por um professor. (ÚLTIMO SEGUNDO, 2010). As imagens do incidente tiveram grande repercussão midiática, principalmente na internet.

Após o tumulto ocorrido na universidade, Geisy foi expulsa pela reitoria, que alegou ter sido uma atitude de desrespeito à moralidade e à dignidade acadêmica por parte da aluna. A discente ficou sabendo da decisão por meio de um anúncio publicado em jornais de São Paulo e um comunicado veiculado pela televisão, em horário nobre (REDAÇÃO, 2010).

No mês seguinte, Geisy prestou depoimento em sindicância aberta pela Uniban, que concordou com o retorno da aluna às aulas, com a promessa de garantia de sua segurança (REDAÇÃO, 2010). Devido ao ocorrido, Geisy não mais retornou àquela universidade, preferindo ajuizar ação de indenização fundamentada na falha da prestação de serviço, que culminou com a violação de seus direitos de consumidora.

Fabrício Veiga Costa e Alysson Thiago de Assis Campos esclarecem (2019, p. 94-95):

No caso em tela, afirma-se que a Uniban praticou conduta ilícita omissiva, ou seja, deixou de prestar de forma efetiva ou prestou de forma ineficiente o serviço de segurança e vigilância, de modo a evitar que o tumulto que ensejou a humilhação e os xingamentos ao qual foi submetida a aluna Geisy Arruda fosse evitado. No momento em que a instituição de ensino superior autorizou (expressa ou tacitamente) ou permitiu a entrada da aluna em suas dependências com “o tal microvestido rosa”, assumiu a obrigação contratual e o dever legal de garantir sua integridade física, moral e psicológica. Ou seja, a instituição em tela deveria ter evitado ou reprimido qualquer tumulto, humilhação ou xingamento à aluna, algo que não ocorreu, uma vez que a acadêmica, à época, foi exposta e julgada moralmente de forma sumária pelos demais estudantes em virtude da comprovada omissão da instituição de ensino superior.

Explanam os autores supra que o reflexo da omissão institucional permitiu a intensa “manifestação de comportamentos machistas, sexistas, ofensivos pelos alunos que se aglomeraram nos corredores da universidade com o condão de violentar física e moralmente a estudante.” (COSTA; CAMPOS, 2019, p. 94). A dor moral da estudante de Turismo resultou da “discriminação e do pré-julgamento moral sofrido, do desrespeito à sua integridade física e psicológica, da permissividade e não repressão da instituição de ensino aos fatos ocorridos e da absoluta vulnerabilidade da sua condição de mulher.” (COSTA; CAMPOS, 2019, p.94)

Ao ponderar sobre o caso, o Tribunal de Justiça de São Paulo condenou a universidade, por seu comportamento omissivo, a indenizar a estudante ao pagamento de R$40.000,00 (quarenta mil reais) em razão da reparação dos danos provenientes do sofrimento moral experimentado. Com sua omissão, a universidade permitiu as agressões à dignidade humana e à honra da acadêmica, com xingamentos e humilhação em decorrência do uso de uma simples vestimenta. (ESTADÃO, 2012) A condenação teve o caráter pedagógico e compensatório, uma vez que a aluna foi expulsa sumariamente, sendo compelida a  interromper o seu curso universitário.

3 O dano existencial causado na vítima

Mister se faz ressaltar que, ainda que o dano ocorra apenas no plano imaterial, a Constituição Federal brasileira de 1988, no Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, art. 5.º, V, assegura o direito à indenização por “dano material, moral ou à imagem”, ao dispor no inciso X, do mesmo artigo, que: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Afinal, o patrimônio do homem corresponde a todos os bens, materiais e imateriais, inatos ou adquiridos pelo indivíduo no transcorrer da sua vida, logo, lesão a qualquer direito tem como conseqüência a obrigação de indenizar.

O dano existencial ocorre independente de lesão física ou psíquica, uma vez que altera a agenda do indivíduo, frustrando seu projeto de vida, colocando-o em uma situação de inferioridade, ao ultrajar diretamente a sua dignidade enquanto pessoa, privando-o de um direito fundamental constitucionalmente garantido, o direito à liberdade de ir e vir.

Destarte, para a reparação do dano à pessoa humana, esta deve ser considerada em si mesma, sem estimá-la apenas em função da renda por ela produzida. Este critério já está superado (SESSAREGO, 1992). O dano existencial tem o condão de cercear o crescimento pessoal, social e profissional, provocando a frustração e a restrição à liberdade de participar no mundo a sua maneira.

4 Direitos fundamentais, o direito à não discriminação e o direito à diversidade cultural

 O dano existencial fere o projeto de vida da pessoa, sendo a responsabilização o único meio de amenizar essa consternação. Ocorre que, o ordenamento jurídico brasileiro não prevê  expressamente a reparação do dano existencial, sendo necessário aplicar outros dispositivos legais, como os artigos. 186, 187 e 927, do Código Civil brasileiro, bem como artigos 1º, III,  5º, V e X, e 37, § 6º, todos da Constituição Federal brasileira.

É importante sublinhar que as privações de direitos fundamentais e sociais afetam a pessoa em sua dignidade, sendo esta considerada um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme prevê o artigo 1º, III, da Constituição Federal. Por vezes, a vergonha e o vexame são tão grandes que suprimem as oportunidades do ser humano, frustrando as possibilidades de aprimoramento escolar, profissional e os momentos de lazer, um dos direitos fundamentais assegurados pelo art. 6º da Constituição Federal brasileira.

Não há como falar sobre dress code sem mencionar a diversidade cultural brasileira, a qual é riquíssima, devido à dimensão territorial do país e ao pluralismo dos diferentes grupos sociais que integram a nação.

O direito à identidade cultural possibilita o livre desenvolvimento da personalidade, o qual está vinculado ao princípio da dignidade da pessoa humana. De igual modo, o direito de viver de acordo com os usos e costumes do grupo do qual faz parte, integra o direito à vida, direito fundamental consagrado no caput do art. 5º, da Constituição Federal brasileira de 1988.

Segundo conclui Karam (2011) tem-se que os direitos à identidade cultural e à diversidade cultural são, ontologicamente, fundamentais, uma vez que são indispensáveis para o livre desenvolvimento da personalidade, ligados ao princípio da dignidade humana, o direito à diversidade, previstos nos artigos 215, 216 e 231, todos da Constituição Federal brasileira.

O direito de viver conforme a sua cultura depara, no estatuto dos direitos fundamentais, instrumentos vocacionados ao seu amparo, diante da ameaça de assimilação imposta pelos padrões culturais difusamente arraigados nas instituições e na sociedade. Ademais, a falta de reconhecimento das diferenças culturais (inclusive, a forma de se vestir) pelo Estado e pela sociedade ofendem, duplamente, as injustiças impostas às minorias, pois esta ausência fere a autoestima destes grupos e, também, aumenta a dificuldade de acesso aos serviços públicos estatais (KARAM, 2011 apud Mossoi; Vieira, 2020).

Conforme estabelece a Constituição Federal, cumpre ao Estado proteger as “manifestações  das  culturas  populares,  indígenas  e  afro-brasileiras  e  das  de  outros  grupos  participantes  do  processo  civilizatório nacional” (BRASIL, 1988), explicitando assim a garantia  do  direito  de  acesso  da população  à  sua  cultura  em  sua  diversidade e a garantia do direito  de participação  das  pessoas  no  processo  criativo  e  na expressão  da  própria cultura (CARDOSO; MUZZETI, 2007).

A multiculturalidade é uma característica da sociedade brasileira, ou seja, compreende a diversidade étnica e cultural dos diferentes grupos sociais que  a integram, no entanto, é importante observar que as desigualdades  no  acesso  a  bens  econômicos  e  culturais  pelos  diferentes  grupos são determinantes  de  classe  social,   gênero, etnia  e diversidade  cultural.

Convivendo e trabalhando juntos, os mais diversos grupos humanos criam sua própria cultura, as quais formam um mosaico rico e variado. A diversidade cultural é fundamental para o desenvolvimento sustentável de indivíduos, comunidades e países. Essa diversidade cultural multiplica escolhas, nutre uma gama de habilidades, valores humanos e visões de mundo e extrai do passado a sabedoria necessária para iluminar o futuro (UNESCO, 2021).

A cultura, segundo a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural da UNESCO (2002) é o conjunto de traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viverem juntos, os sistemas de valores, tradições e as crenças, podendo aí se enquadrar, a vestimenta das pessoas. Em seu art. 4º, a referida declaração traça a relação entre diversidade cultural e dignidade humana, ao registrar que a defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito da dignidade humana (KARAM, 2011 Apud Mossoi; Vieira, 2020).

A cultura é considerada intrínseca a todo homem e não há nenhuma cultura que possa ser considerada superior em relação às demais, na medida em que está vinculada à dignidade da pessoa humana. Além disso, as leis nacionais devem também prezar pela igualdade de todos, reconhecendo os direitos das minorias.

A diversidade cultural é direito humano fundamental, o qual garante a sua proteção.  Isso inclui a luta contra os estereótipos e o conformista, pois não devemos nos encaixar no mesmo molde. Enfim, mesmo entre pessoas da mesma comunidade, é impossível serem todas iguais. A diversidade cultural permite um equilíbrio, pois cada membro que a compõe sempre dá um pouco de colorido. Aprendendo quem é o outro,  tem-se a oportunidade de entender sua situação, pelo menos em parte. Basicamente, a diversidade cultural evita a rotina e permite que a sociedade seja melhor. No longo prazo, isso só pode ser benéfico. (LE MONDE DE L’AUTRE, 2018)

A instituição de um dress code implica, em muitos casos, ferir a cultura de determinada pessoa ou grupo de pessoas, entendido, na maioria das vezes, como uma minoria. As minorias recebem, quase sempre, um tratamento discriminatório por parte da maioria, por isso, os direitos específicos devem ser a elas garantidos, permitindo assim, a preservação de sua identidade.

Considerações Finais

O dress code é um código de vestimenta que indica a maneira mais “adequada” para se vestir em determinada ocasião. Esse código de vestimenta imposto por alguém ou grupo que detém poder viola alguns direitos dos indivíduos que se encontram impedidos de entrar em algum lugar público ou de acesso ao público, usufruir de algum direito ou cumprir algum dever.

Percebe-se que os direitos mais violados ao se tratar de um código de vestimenta (dress code) são o direito à autodeterminação, o direito de ir e vir, direito à dignidade humana, direito à igualdade, direito à diversidade cultural, configurando em assunto relevante na temática nacional e internacional, por  tratar-se de problema vivenciado em muitos países.

Apesar da aparente evolução da sociedade em muitos aspectos, o preconceito direcionado aos menos favorecidos economicamente tem permanecido, dificultando suas oportunidades de inclusão, vivendo ainda na marginalidade social em decorrência de preconceitos e discriminações, aumentando ainda mais a sua vulnerabilidade.

A diversidade cultural é direito humano fundamental. Em geral, a vestimenta depende de diversos motivos, tais como fatores sociais, razões ambientais, personalidade, influência de amigos, religião, espírito de integração, etc. A diversidade cultural não deve gerar tensões a ponto de excluir indivíduos do grupo. Conhecer culturas diferentes e encampar outros costumes torna a sociedade mais tolerante, respeitosa e inclusiva.

Os tribunais devem se aproximar mais do cidadão, e, não afastá-lo com constrangimentos baseados em sua forma simples de vestimenta. Respeitar o outro é fundamental para o processo civilizatório. O Estado deve garantir o mínimo essencial para proteger as pessoas de quaisquer abusos praticados por ele ou por aqueles que desrespeitam o direito à igualdade.

Portanto, mais do que aceitar a diferença (incluídas as vestimentas em determinados locais e ocasiões), o Estado deve criar as condições para que estes grupos vivam dignamente e possam se desenvolver econômica, cultural e socialmente, dando-lhes condições para lutar em busca do direito à felicidade.

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AGÊNCIA ESTADO. Juíza mede saia de advogadas com régua e barra entrada, denuncia OAB-RJ. Disponível em:https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/10/25. Acesso em: 9 maio 2021.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. 

BRÍGIDO, Carolina. Como se vestir no Supremo. Disponível em: https://epoca.globo.com/como-se-vestir-no-supremo-23217671. Acesso em: 03 dez. 2019.

CARDOSO, Sônia Maria Vicente. MUZZETI, Luci Regina. Tema: as dimensões da diversidade cultural brasileira. Disponível em: file:///D:/Downloads/Dialnet-AsDimensoesDaDiversidadeCulturalBrasileira-6202517%20(2).pdf. Acesso em: 26 nov. 2019.

COSTA, Fabrício Veiga; CAMPOS, Alisson Thiago de Assis.  Dano moral e descumprimento de contrato de prestação de serviço educacional no ensino superior privado: um estudo do caso Geisy Arruda e os critérios de quantificação. [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/2020 Coordenadores: Ignacio Durbán Martín; Valéria Silva Galdino Cardin; Tereza Rodrigues Vieira – Florianópolis: CONPEDI, 2020 / Valência: Tirant lo blanch, 2020.

ESTADÃO. Justiça mantém indenização para Geisy Arruda. Edição de 13 mar. 2012. 

G1, Goiás. Juiz constrange advogada por achar sua roupa ‘inapropriada’. Ed. 19 Ago. 2017.

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Juiz que adiou audiência porque lavrador usava chinelos terá de pagar R$ 12 mil. Disponível em: https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/2017/03/geral/551070 Acesso em: 11 maio 2021.

KARAM, Juliano Stella. O direito fundamental à diversidade cultural e a sua vinculação aos poderes públicos. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 5, n. 18, abr./jun. 2011. 

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SESSAREGO, Carlos Fernandez. Proteción a la persona humana, Ajuris. Revista da Associação dos Juízes de Direito do Rio Grande do Sul, n. 56, 1.992, nov., p. 129.

ÚLTIMO SEGUNDO. Uniban é condenada a pagar R$ 40 mil para Geisy Arruda. Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/uniban-e-condenada-a-pagar-r-40-mil-para-geisy-arruda/n1237792140496.html. Acesso em: 12 maio 2021.

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YANAGUI, V.B. Vestimentas da corte: a indumentária do ritual do julgamento. Monografia (Graduação em Direito). Orientador: Luís Roberto Cardoso de Oliveira. Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Brasília-DF, 2013, 88p.

Tereza Rodrigues Vieira
Pós-Doutora em Direito Université de Montreal. Mestre/Doutora em Direito PUC-SP. Especialista em Bioética Fac. Medicina da USP. Docente Mestrado Direito Processual e nagraduação em Medicina e Direito

Alana Caroline Mossoi
Docente do curso de Direito e Mestra em Direito Processual Civil na Universidade Paranaense (UNIPAR). Pós-Graduada em Direito Penal e Processo Penal na Universidade Paranaense (UNIPAR). Assessora de Magistrado do 1º Grau do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.

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