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A (in)violabilidade do direito ao voto dos presos provisórios

A transferência das urnas eletrônicas e todo o fomento que se demanda com esse aparato não faz sentido nesse modelo, o cerne do processo é se associar custos mais baixos com o incentivo à votação por mais de duzentos mil eleitores em potencial.

3/10/2022

No dia 2 de outubro de 2022 tivemos eleições para Presidente da República, 27 Governadores, 27 Senadores, 513 Deputados Federais e Deputados Estaduais (Para Estados com até 12 deputados federais, o número de deputados estaduais deve ser o triplo da representação na Câmara dos Deputados) e a cada pelito eleitoral exsurge uma controvérsia: o direito de votar dos presos provisórios.  

A resolução 23.669, de 14 de dezembro de 2021, que dispõe sobre os atos gerais do processo eleitoral para as eleições de 2022, é clara ao prever no artigo 39 que as juízas e juízes eleitorais dos TREs deverão disponibilizar seções em estabelecimentos penais e em unidades de internação tratadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. O critério está previsto no parágrafo único do mesmo dispositivo, pois, consideram-se presas e presos provisórios as pessoas recolhidas em estabelecimentos penais sem condenação criminal transitada em julgado, da mesma feita os adolescentes maiores de dezesseis anos e menores de vinte e um anos submetidos a medida socioeducativa de internação ou a internação provisória, como preconiza o ECA.

O dispositivo está em consonância com o artigo 15, inciso III, da Constituição Federal de 1988. Portanto, não haveria controvérsia e os ditos presos provisórios têm o direito de votar, se assim o quiserem, em todos as unidades da Federação e, também, no Distrito Federal. Todavia, na prática, a disponibilidade é restrita e o direito dos presos provisórios tem sido violados.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022 temos 820.689 pessoas privadas de liberdade no Brasil, número este que já houve incremento no ano corrente, uma vez que os dados são do ano anterior. Deste número absoluto temos 586.862 presos condenados e 233.827 presos provisórios. Logo, segundo a determinação da Resolução 23.669/21, deveria ser disponibilizada a estrutura eleitoral necessária para que 233.827 pessoas pudessem exercer o seu direito ao voto, porém, respeitada a regra de que para uma seção eleitoral seja instalada nos estabelecimentos prisionais e nas unidades de internação de adolescentes é necessário o mínimo de 20 eleitores aptos a votar. A realidade mostra, entretanto, que apenas 12.346 eleitores, já incluindo mesários e funcionários desses estabelecimentos, poderão votar  nessas seções especiais.

Apenas 22 Tribunais Regionais Eleitorais disponibilizarão seções eleitorais em penitenciárias e em unidades de internação. Os Estados do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte, Tocantins e o Rio de Janeiro não terão seções especiais. Assim se questiona se os direitos dos presos provisórios em poder votar são violados ou não. Refletimos.

A Constituição Federal de 1988 conhecida popularmente como a “Constituição Cidadã” tem como construtos basilares princípios que permeiam e fundamentam a sociedade brasileira: a soberania, a igualdade entre os povos, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, a defesa dos direitos individuais e sociais e o conjunto de direitos tidos como fundamentais que formam o Estado Democrático de Direito. A Carta magna destaca no parágrafo único do artigo 1° que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

A fim de compreender a construção constitucional temos de visualizar o conjunto pretendido pelo constituinte senão iremos lobrigar sem alcançar o conceito intrínseco de cidadão pretendido.

O que se almeja na Carta é que as pessoas sejam iguais em direitos e deveres, que tenham sua dignidade humana respeitada, sua soberania e que possa ter a liberdade de expressar seus pensamentos, exercer suas crenças e não ter sua intimidade ou vida privada violadas, e que este coletivo fundamental seja protegido e defendido pelos representantes legislativos eleitos pelo voto.

De tal sorte que os presos provisórios podem ou não serem considerados como cidadãos? A resposta está expressa na própria Constituição com a presunção de inocência, isto é, todos são inocentes até que a culpa seja comprovada com uma sentença condenatória transitada em julgado, portanto, o preso provisório aguarda julgamento para determinar se há ou não culpabilidade. Logo, é um cidadão na plenitude de seus direitos e cabe ao Estado Democrático de Direito lhe garantir e efetivar essas prerrogativas, respeitadas as limitações impostas pela privação da liberdade.

Desde a eleição municipal de 2020 há uma intensa companha para que as pessoas regularizem seu título de eleitor e estejam aptos para exercer sua cidadania em sua plenitude, porém, não houve uma única campanha para que os presos provisórios pudessem ter a ciência que o seu domicílio eleitoral passou a ser o local em que está detido, assim, deve transferir o domicílio eleitoral para exercer sua cidadania, cujo prazo terminou em 18 de agosto, então se alguém se tornou um preso provisório no dia seguinte, por exemplo, já não mais poderá votar e igualmente àqueles que não realizaram a alteração.

Ademais, muitos não sabem dessa exigência e, muito menos, da necessidade de ter vinte presos para que seja instalada uma urna. Então, se houverem dezenove eleitores aptos a votar os mesmos estarão impedidos porque assim a legislação prevê e assegura a isenção estatal para a instalação eleitoral.

No Brasil temos 67% da população carcerária até 34 anos, 67% composta por negros e 29% por brancos. Somente no Rio de Janeiro temos 18.678 presos provisórios que serão alijados de exercer seu direito constitucional ao voto. E neste Estado a proibição é recorrente. 233.827 presos provisórios no Brasil, dos quais apenas 12.346 estão aptos a votar o que perfaz apenas 5,27% da população nestas condições. Claro está que o Estado dá na balda em suas funções fundamentais e viola os direitos dos presos provisórios. Como veremos adiante, se é o não uma estratégia, o efeito prático é onerar irremediavelmente os próprios cofres.

Ora, então temos de aprofundar no círculo hermenêutico de Paul Ricoeur, afinal, o fim pretendido pela figura do encarceramento não é apenas e tão somente apartar e excluir os criminosos do convívio social, pois, é dever do Estado Democrático de Direito lhes aplicar a ressocialização e garantir que, após o cumprimento da pena, estejam aptos para o convívio em harmonia social para com os cidadãos brasileiros. Assim, é obrigação do Estado investir na recuperação do preso.

Na prática, o Estado falha sistematicamente ao não garantir a dignidade humana dos presos, sejam provisórios ou não, com lotações prisionais, com amontoados humanos, violência dos agentes, e a isenção de preocupação para que aquele detento recupere sua dignidade, fortaleça ou desenvolva sua educação, conheça o conjunto de seus direitos e, concomitantemente, possa exercer sua cidadania e contribuir para eleger seus representantes através do voto. O que se nota é o alijamento dos presos, sejam provisórios ou não, dos acontecimentos sociais, jurídicos e eleitorais do Estado brasileiro, o resultado é o afastar dos presos da vida social em caminho diametralmente oposto ao preconizado pela ressocialização.

O preso é parte integrante da sociedade brasileira, goste ela ou não. Algumas justificativas se desenvolvem, como por exemplo, a questão dos presos potencialmente poder eleger um representante de uma facção criminosa, então, ao não se permitir a votação se protege a sociedade. Intrigante, porque no Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, é sabido e conhecido que as milícias elegem seus representantes políticos e não possuem qualquer tipo de controle por parte do Estado. Atenção, não defendemos aqui que as facções devem ter representantes, mas sim, que se supostamente há um controle para a população carcerária, por que não o ter para com as milícias? E ainda assim, significa que todos os presos provisórios são integrantes das facções criminosas? A resposta nos parece falsa.

Outro argumento é que o preso não é idôneo, pois então, não há qualquer tipo de diferenciação na Constituição Federal e o preso provisório, como dissemos, é inocente até que tenha sua culpa comprovada e sua sentença transitada em julgado, portanto, é um cidadão em sua plenitude de direitos e obrigações. Em verdade, o que se nota é uma discriminação social, há uma dupla punição antecipada, a da justiça e a da sociedade. As pessoas querem uma sociedade mais segura e a visão turva para isso é afastar o preso do convívio pelo maior tempo possível, mesmo se for um provisório sem a assunção de culpa. Como resultado claro está que o atual sistema prisional não regenera, tampouco ressocializa e, muito menos, recupera.

O que se vê é um empilhar de condenados ou cumprindo penas sem condenação, como no caso dos provisórios, sem qualquer planejamento com custos que se somatizam sem retorno para uma população prisional que logo em breve ultrapassará 1 milhão de pessoas. Sem que se consiga construir unidades prisionais na velocidade necessária para abarcar a quantidade de presos existente. Com o incremento do déficit se acentuam os vilipêndios de direitos e o ônus retorna ao próprio Estado.

Falta respeito, dignidade humana, cidadania e a violação dos direitos dos presos provisórios é evidente. Mesmo Estados modelo não mantem a excelência, o Rio Grande do Sul, por exemplo, na eleição de 2006 conseguiu realizar a maior votação da América Latina com 4.000 presos e em 2022? Dos 13 mil presos provisórios somente cerca de 600 estarão em condições de votar. Será que 2006 foi sorte ou 2022 demonstra incompetência?

Como transformar a inviolabilidade de direito na respeitabilidade dos direitos fundamentais, dentre eles os eleitorais? A resposta está longe de ser simples, entretanto, o que devemos ter como norte fundamental é o que o Estado se desapercebeu: que ao abandonar e suplantar os direitos dos presos, inclusive os provisórios, ele gera um ônus econômico exclusivo para si, sem nenhum tipo de recuperação do gasto no espaço tempo. Ao não ressocializar e não reinserir os presos na sociedade o resultado é duplo: primeiro a não aceitação da sociedade de um condenado no seu convívio cotidiano e a segunda parte é o regresso ao sistema prisional ou a não saída do mesmo, o que se reflete na mantença econômica mensal a ser suportada pelo Estado que hoje gira no importe de quase R$1.600,00. Quando se multiplica essa expensa por quase um milhão de presos os números assustam, então por que não potencializar a recuperação, a educação e a reinserção social como forma de desonerar o próprio Estado? Portanto, a solução perpassa por reconhecer as dificuldades e trabalhar na construção de um conjunto de direitos da população carcerária, inclusive para viabilizar a eleição ou a participação no pleito eleitoral.         

Ora, se o poder emana do povo através do povo e os presos provisórios não estão excluídos da sociedade já que a maioria deles se encontram em Centros de Detenção Provisória, assim, é plenamente possível que se desenvolvam campanhas de conscientização eleitoral e inclusive informativa acerca dos candidatos e suas respectivas propostas, o que na prática é muito mais importante do que o próprio direito de votar, se você está alienado de quais são os candidatos e suas plataformas, como eleger um representante de maneira eficaz?

Por fim, mas não menos importante, está a necessidade premente de se criar um modelo de votação específico para os presos provisórios e, para tanto, podemos utilizar o que já funciona em outros países como o envio de cédulas antecipadas ao pleito eleitoral que devem ser lacradas e retornadas para as respectivas zonas eleitorais. A transferência das urnas eletrônicas  e todo o fomento que se demanda com esse aparato não faz sentido nesse modelo, o cerne do processo é se associar custos mais baixos com o incentivo à votação por mais de duzentos mil eleitores em potencial.

Com isso ganha o eleitor, se reconhece o direito dos presos provisórios, viceja o Estado e se favorece a população brasileira, que se faça valer os ditames constitucionais em sua plenitude. 

Antonio Baptista Gonçalves
Advogado, pós-doutor em Desafios en la postmodernidad para los Derechos Humanos y los Derechos Fundamentales pela Universidade de Santiago de Compostela, pós-doutor em Ciência da Religião pela PUC/SP.

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