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O direito de assistência à saúde suplementar tem limites?

É preciso evoluir ainda mais na discussão deste tema sensível para todos.

30/9/2022

O Estado-juiz, através da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, por maioria de votos, no dia 8 de junho de 2022, unificou entendimento no EREsp 1.886.929 e no EREsp 1.889.704 para delimitar o direito de assistência à saúde suplementar, na moldura de ser o Rol da ANS taxativo, comportando excepcional cobertura, todavia, desde que “(i) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol da saúde suplementar; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como Conitec e Natjus) e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS”.

Por sua vez, o Estado-legislativo, após a decisão do STJ, apresentou, no dia 13 de julho de 2022, o PL 2033/22, para alterar a lei 9.656/98 (Lei dos Planos de Saúde), fato concretizado por meio do Estado-executivo ao sancionar, em 22/9/22, a lei 14.454/22, que considera o Rol da ANS como “referência básica”, admitindo-se que tratamentos ou procedimentos que não estejam nele previsto sejam autorizados desde que “I - exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou II - existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.".

Oportuno registrar que o Estado-regulador, ou seja, a Agência Nacional de Saúde Suplementar defende que o direito de assistência à saúde do consumidor está delimitado positivamente nos parâmetros do “Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde” por ela editado.

A independência dos poderes proporciona, em alguns casos, posicionamentos conflitantes do Estado. A Carta Magna brasileira impõe ao Estado lato sensu, na forma da lei, a defesa de um sujeito de direitos denominado como consumidor. Determina, também, que a ordem econômica deve respeitar, entre outros, os princípios da iniciativa privada, livre concorrência e a defesa do consumidor. Disso depreende-se, em brevíssima síntese, que o empreendedor de uma atividade econômica, responsável por fornecer produtos e serviços ao mercado, não pode exercê-la a seu bel prazer, encontrando a sua autonomia da vontade limites nos direitos à proteção dos consumidores e das empresas concorrentes contra abusos.

O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), em seu artigo 4º, III, designa como política pública a harmonização e compatibilização dos interesses nas relações jurídicas de consumo, visando a proteção do sujeito vulnerável e proporcionando o “desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”.

De um lado, tem-se o interesse do consumidor, fragilizado e sem conhecimento técnico, que ao receber a prescrição do seu médico entende ter o direito de receber de maneira irrestrita a melhor e mais adequada assistência à saúde suplementar. Do outro, encontra-se a figura do empreendedor que almeja arcar somente com os custos da promoção, recuperação e reabilitação mediante as regras estabelecidas pelo órgão regulador para atuação no mercado de saúde suplementar. Como harmonizar e compatibilizar esse potencial conflito?

Com efeito, o ideal seria que os posicionamentos do Estado estivessem alinhados no intuito de proporcionar a segurança jurídica a todas as partes envolvidas. Porém, diante da divergência dos órgãos estatais, vivencia-se na atualidade o fenômeno da “judicialização da assistência à saúde”, com tendência para sua continuidade.

O tema, por sua natureza, é sensível e a relação jurídica de consumo de saúde suplementar é muito complexa, envolvendo vários outros interesses, como dos prestadores de serviços (médicos, hospitais, clínicas, profissionais da saúde e laboratórios) e dos fabricantes de insumos (medicamentos, órteses, próteses, materiais especiais).

O Rol da ANS atinge somente os planos novos e nele constam mais de 3.000 procedimentos e eventos em saúde obrigatórios.

Os principais argumentos para que o Rol da ANS seja considerado exemplificativo consiste no discurso de que o médico assistente é quem sabe o melhor para seu paciente, além de que o referido Rol é defasado e suas atualizações não acompanham a evolução tecnológica da medicina. Do lado contrário, para que o Rol da ANS seja taxativo, as críticas traduzem na postura do caráter absolutista que o Poder Judiciário concede ao pedido do médico assistente, bem como que deve ser respeitada a competência do órgão regulador que visa a sustentabilidade do mercado de saúde suplementar.

A proteção e defesa do consumidor é imperiosa, por ser ele o elo fraco da relação jurídica, principalmente pela falta de conhecimento técnico e por, na maioria das vezes, estar debilitado. Contudo, há de se ressaltar que não há sustentabilidade para um sistema ilimitado que seja obrigado a arcar com toda e qualquer assistência à saúde. As operadoras de planos de saúde mantêm e desenvolvem suas atividades mediante o recebimento das contraprestações pagas pelos usuários. A liberação de procedimentos fora dos parâmetros legais e contratuais certamente impactará nos preços dos planos para os consumidores passivos, que nesse contexto acabarão por suportar os necessários reajustes nas mensalidades.

Para o devido equilíbrio os limites assistenciais são necessários. A questão é saber se a delimitação negativa da prestação configura ou não abuso, como ocorria com a limitação da internação ou das sessões de terapias.

As recentes alterações promovidas na lei 9.656/98 confirmam, por um lado, a taxatividade dos transplantes e procedimentos de alta complexidade. Por outro lado, preveem que “o rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, atualizado pela ANS a cada nova incorporação, constitui a referência básica para os planos privados de assistência à saúde contratados a partir de 1º de janeiro de 1999 e para os contratos adaptados a esta Lei e fixa as diretrizes de atenção à saúde”. Desta forma, na prática, pode-se afirmar que a prescrição unilateral do médico assistente não será suficiente para concessão da tutela antecipada, devendo vir acompanhada de estudos técnicos que comprovem a eficácia do tratamento, à luz da medicina baseada em evidências ou por recomendações de órgãos e entidades que atuam com avaliação de novas tecnologias em saúde.  

É preciso evoluir ainda mais na discussão deste tema sensível para todos. O diálogo deve acontecer despido de utopias e interesses particulares para a efetiva evolução na busca do melhor modelo assistencial à saúde. A verdade é que não existe cobertura integral para os consumidores sem a devida contraprestação equilibrada.

Marlus Riani
Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra. Advogado no Moura Tavares, Figueiredo, Moreira e Campos Advogados.

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