1. Introdução.
Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que oferta de creche e pré-escola é obrigação do Poder Público. O entendimento fixado pela Corte será aplicado a, pelo menos, 28.826 processos que tratam do tema. Declarou ainda que o atendimento em creche e pré-escola às crianças de até 5 anos de idade é de aplicação direta e imediata, sem a necessidade de regulamentação pelo Congresso Nacional.
Por unanimidade, o colegiado também estabeleceu que a oferta de vagas para a educação básica pode ser reivindicada na Justiça por meio de ações individuais. A questão foi decidida no Recurso Extraordinário (RE) 1008166, Tema 548 da repercussão geral, com relatoria do ministro Luiz Fux.
O recurso foi apresentado pelo Município de Criciúma (SC) para contestar decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ/SC) que manteve obrigação à administração local de assegurar reserva de vaga em creche para uma criança. No STF, a prefeitura argumentou que não cabe ao Poder Judiciário interferir nas questões orçamentárias da municipalidade, porque não é possível impor aos órgãos públicos obrigações que importem gastos, sem que estejam previstos valores no orçamento para atender à determinação.
STF decidiu que é dever do Estado garantir vagas em creche e pré-escolas. O problema agora, ou melhor, a questão jurídica que se coloca é: uma decisão judicial, ainda que seja prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, não muda a realidade das coisas.
Não há vagas em creches. Não há orçamento. Isto é um problema estrutural.
2. E agora, como implementar a decisão do STF?
Conforme esclareceu o ministro Luís Roberto Barroso, como o direito à educação básica é uma norma constitucional de aplicação direta, uma decisão do Judiciário determinado o cumprimento dessa obrigação não pode ser considerada uma intromissão em outra esfera de poder.
O ministro ressaltou que muitos dos direitos constitucionais necessitam de prazo para sua concretização, para que se adequem às necessidades orçamentárias, porém no caso das creches não é razoável dizer que a realidade fática ainda não permite essa implementação.
A decisão unânime do STF declarou que o atendimento em creche e pré-escola às crianças de até 5 anos de idade é de aplicação direta e imediata, sem a necessidade de regulamentação pelo Congresso Nacional. Porém, a decisão não faz surgir vagas em creches e pré-escolas da noite para o dia.
A situação é ainda mais grave porque a Suprema Corte estabeleceu que a oferta de vagas para a educação básica pode ser reivindicada na Justiça por meio de ações individuais!
3. O problema de demanda estrutural das Creches.
Há notícia de que a Defensoria Pública de São Paulo, embora detenha legitimidade para o processo coletivo, propôs, de 2014 a maio de 2017, aproximadamente 61 mil ações individuais pleiteando vagas para crianças em creches (média de quase 20 mil por ano). O motivo dessa proliferação de ações individuais é simples e foi explicado por um defensor público: “Nós sempre conseguimos. Nunca perdemos uma ação”1.
Conforme esclarece Edilson Vitorelli, o equívoco desse tratamento não estrutural do litígio é que ele acarreta apenas uma ilusão de solução, mas não produz resultados sociais significativos, eis que as causas do problema permanecem2.
A proliferação de processos individuais, agora chancelados pelo Supremo Tribunal Federal, aprofunda as desigualdades e a desorganização do serviço público que se pretendia melhorar. Além da fila diante da falta de vagas, agora passará a existir a fila das liminares, cuja realidade já é experimentada no Estado de São Paulo.
Quando problemas estruturais são tratados em processos individuais, quaisquer critérios de prioridade colapsam. Não é a decisão do STF que declara aplicação imediata de vagas em creche e em pré-escolas que irá mudar a realidade das coisas automaticamente. Só se ganha no processo, não na solução do problema. Este continua e tende a se agravar.
Simplesmente exigir que o Estado preste o serviço imediatamente não resolverá o problema das creches e das pré-escolas. Autorizar o ajuizamento de demandas individuais só piora o critério de ingresso. Quem buscar a jurisdição primeiro será atendido em detrimento de quem espera na fila regular.
A constatação, pelo STF, da existência de um problema que atinge o direito fundamental à educação deveria ser o ponto de partida para que o Supremo estabelecesse a meta a ser atingida – o estado ideal de coisas.
Poderia o Supremo ter proferido uma decisão estruturante com conteúdo programático, determinando a implementação das medidas necessárias ao atingimento da meta estabelecida na decisão estrutural.
Idêntico raciocínio se aplica ao direito a vagas na UTI. Qualquer decisão judicial que declare este direito de internação imediata na UTI não transformará a realidade, apenas passará na frente da fila o indivíduo que obteve a liminar.
Segundo Fredie Didier Jr., Hermes Zaneti Jr. e Rafael Alexandria de Oliveira, apontado o problema estrutural e uma vez identificada a necessidade de ajuste, ele pode ser feito por provocação do juiz ou mesmo consensualmente, respeitado o contraditório e a boa-fé. Assim, ainda segundo os autores, se o preso demanda a proteção de sua integridade física individual, se o proprietário rural que será atingido pela barragem demanda em relação à proteção de seus direitos ou se surge uma demanda individual que revele a falha no sistema de ensino público no garantir o acesso ao ensino pré-escolar, estes mesmos casos poderiam ser levados em consideração para fim de adequação da tutela estrutural3.
O direito de acesso a vagas em creches e pré-escolas é um problema estrutural, que somente será resolvido por meio de uma decisão estruturante, que poderia ter sido proferida pelo STF ao reconhecer o direito fundamental ao ensino. Contudo, assim não procedeu a Suprema Corte e agora fica a dúvida de como implementar a decisão imediatamente, conforme determinado.
O número de crianças na fila das creches apenas na cidade de São Paulo mais do que triplicou entre julho e setembro de 2021. Em junho de 2021, havia cerca de 8,7 mil solicitações de vagas em creches na capital; em setembro, o número chegou a 28,5 mil4. Esta é a espantosa realidade das coisas. Cada coisa é o que é.
Como implementar imediatamente as vagas de creches e pré-escolas?
4. A possibilidade de decisão estrutural e a atipicidade da cooperação judiciária para fins de implementação da decisão estrutural envolvendo política pública de ensino.
A interação entre órgãos judiciários, para que um coopere com o outro para a prestação do serviço jurisdicional, pode realizar-se de inúmeras maneiras. Os processos estruturais são ambientes adequados para o uso das técnicas de cooperação judiciária.
Desta forma, poderia o STF ao proferir a decisão determinar a implementação de medidas estruturantes por meio de técnicas de processos estruturais, utilizando-se da cooperação judiciária. Nesta situação a cooperação judiciária se daria por delegação, para fins de cumprimento do comando judicial.
Permite-se ao STF, por exemplo, delegar atribuições para a prática de atos processuais relacionados à execução dos seus julgados (art. 102, I, “m”, CF/1988). Bastaria estabelecer as diretrizes gerais para ser atingida a meta – o estado ideal de coisas – preservando o poder de fiscalizar as medidas.
Contudo, o STF apenas declarou o direito e determinou que a implementação deste direito fundamental poderá se dar por meio de ajuizamento de ações individuais.
Porém, sempre há chance de mudança de rumos e uma possibilidade é a instauração de uma mediação perante o STF.
5. A mediação como solução para implementação da decisão do STF
A mediação perante o STF é um caminho adequado para solução de conflitos que envolvem problemas estruturais.
No Supremo Tribunal Federal foi editada a resolução 697, de 06 de agosto de 2020, que dispõe sobre a criação do Centro de Mediação e Conciliação (CMC), responsável pela busca e implementação de soluções consensuais no STF. Tal resolução levou em consideração a densidade normativa do princípio da razoável duração do processo (art. 5º, inc. LXXVIII, CF) e a necessidade de se consolidar a prática permanente de incentivo aos mecanismos consensuais de solução de litígios.
O Centro de Mediação e Conciliação (CMC) poderá atuar tanto na solução de conflitos processuais, quanto pré-processuais (art. 2º, I e II), podendo, os interessados, peticionar à Presidência do STF para solicitar a atuação do CMC nas situações que poderiam deflagrar conflitos de competência originária do Supremo Tribunal Federal (art. 3º, § único), como ao ministro relator nos casos de competência recursal, de modo a viabilizar a solução pacífica das controvérsias.
Diversos casos foram solucionados perante o CMC do STF, como a ADO 25 (Lei Kandir), RE 1171152 (prazos máximos para a análise dos processos administrativos do INSS), ADPF 165 (planos econômicos), dentre outros.
Ainda há tempo para a instauração de uma mediação no STF para tratar das vagas de creches e pré-escolas, com debate plural e democrático para que todos os interessados possam contribuir, juntos, com a solução deste problema estrutural que é o direito fundamental ao ensino.
6. Conclusão.
O STF decidiu que é dever do Estado garantir vagas em creche e pré-escolas imediatamente, porém não apontou caminhos para que esta decisão seja implementada.
A falta de vagas em creches e pré-escolas é um problema estrutural.
A reinvindicação de vagas por meio de ações individuais, conforme declarado pelo STF, aprofunda as desigualdades e a desorganização do serviço público que se pretendia melhorar.
A judicialização individual de um problema estrutural criará a fila das liminares para acesso as creches e pré-escolas, cuja realidade já é experimentada no Estado de São Paulo.
O direito de acesso a vagas em creches e pré-escolas é um problema estrutural, que somente será resolvido por meio de uma decisão estruturante.
A mediação perante o STF pode ser um caminho para tratar das vagas de creches e pré-escolas, com debate plural e democrático para que todos os interessados possam contribuir, juntos, com a solução deste problema estrutural que é o direito fundamental ao ensino.
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1 VITORELLI, Edilson. Levando os conceitos a sério: processo estrutural, processo coletivo, processo estratégico e suas diferenças. In: Revista de Processo. 2018. p. 333-369.
2 VITORELLI, Edilson. Levando os conceitos a sério: processo estrutural, processo coletivo, processo estratégico e suas diferenças. In: Revista de Processo. 2018. p. 333-369.
3 DIDIER JR, Fredie; ZANETI JR, Hermes; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro. In: Revista de Processo, São Paulo. 2020. p. 71.
4 Notícia extraída do site https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/12/09/numero-de-criancas-na-fila-das-creches-na-cidade-de-sao-paulo-mais-do-que-triplicou-entre-julho-e-setembro-de-2021.ghtml Acessado em 26/09/2022.