Ao decidir explorar uma atividade econômica lucrativa o empresário compreende e aceita os riscos que nela enfrentará, pois sabe que pode administrá-los por meio da utilização de diversos instrumentos, a exemplo da celebração de contratos de seguro que cobrirão diversos eventos potenciais danosos futuros. Mas não lhe é possível administrar fatos que se colocam no plano da incerteza, tal como foi perfeitamente percebido com o advento da pandemia da Covid-19.
Como operador do direito (especialmente do direito empresarial) pretendo tecer algumas considerações sobre a incerteza jurídica deflagrada em muitos momentos dessa atividade, seus sujeitos e seus efeitos
1. O empresário e a lei
Em primeiro lugar é na lei que o empresário deveria encontrar com tranquilidade o suporte necessário para que pudesse atuar nos limites da licitude, sabendo que ao contrariá-la estaria sujeito a sofrer as sanções nela previstas. Mas, entre outros fatores que iremos aqui analisar é no âmbito da lei que se localiza a fonte de diversos problemas para o empresário.
Em tese toda a lei legitimamente emanada do Poder Judiciário seria justa e, portanto, de cumprimento indiscutível, não cabendo ao destinatário discuti-la sob esse ponto de vista. Sabe-se que essa questão tem atormentado desde muito tempo os operadores do direito, a partir de discussões infindáveis na seara da filosofia do direito, presentes considerações no sentido de que a lei pode ser formalmente válida, mas intrinsecamente injusta e neste último caso passível de contestações sobre a sua validade. E os conceitos de justo e de injusto têm desafiado os pensadores desde priscas eras. Passarei ao largo dessa questão, que foi objeto de tratamento entre outros escritores, por Norberto Bobbio em uma das suas mais importantes obras, “Jusnaturalismo e Positivismo Jurídico”1, o qual afirma que ainda hoje é fonte de estudos de uma boa teoria de justiça o Livro V da Ética a Nicômaco de Aristóteles, ao completar os seus merecidos vinte e quatro séculos de vida e onde se lê que na justiça se encontra toda a virtude somada.
Partamos do pressuposto de que no direito brasileiro – integrante do sistema jurídico romano-germânico - todas as leis devem estar diretamente ou indiretamente fundadas na Constituição Federal e que nesta as suas normas devem ser consideradas justas, sabendo-se da possibilidade da existência naquela de normas injustas, porque desligadas dos seus princípios fundamentais e/ou orientadas para o atingimento de objetivos a ela estranhos2. Infelizmente no Brasil em tempos recentes uma sanha inaceitável de mudanças na nossa Magna Carta por meio de emendas constitucionais a tem desfigurado de forma alarmante. Eventualmente acima da Constituição Federal poderão ser encontrados princípios gerais de direito que nela não tenham sido agasalhados e cuja obediência também é devida.
A injustiça das normas constitucionais no plano do direito empresarial pode ser configurada (i) a partir da ignorância do legislador nesse campo; (ii) da existência de preceitos abertos; e (iii) de duas possibilidades de sua captura, a auto captura e a captura externa, as quais o desviariam da elaboração de normas justas (porque inconstitucionais), qualquer que possa ser a sua configuração.
O direito comercial, ainda que originado da prática dos comerciantes, apresenta muitas vezes sensíveis dificuldades na sua construção teórica, refletidas no seu enfrentamento por meio da edição de leis que dele cuidem, o que tem sido um problema histórico. Isso ocorre porque, entre outras razões, o currículo das faculdades de direito de todo o país é muito pobre quanto a ele e não apresenta importância relevante nos diversos concursos públicos da área jurídica periodicamente realizados. Nesses a grande ênfase é dada ao processo. Daí que são promulgadas muitas leis empresariais substancialmente erradas, embora formalmente válidas.
Outro óbice significativo está na presença de normas constitucionais abertas, cujo preenchimento depende do que a seu respeito entende o legislador infraconstitucional, definidas elas na sua gênese e na sua aplicação como de natureza ideológica, ou seja, foi adotada determinada orientação pela CF. Um exemplo está no dever de atendimento da função social quanto a alguns institutos jurídicos, como acontece com o direito de propriedade. Normas abertas devem ser evitadas tanto quanto possível, mas elas são necessárias em muitas situações em relação às quais não se pode legislar de forma concreta, cabendo, portanto, fazê-lo abstratamente. E a razão para tanto está na ampla possibilidade da existência de interpretações diversas quanto àquelas normas. E isso tem a ver em parte com a questão da auto captura, tratada em seguida.
Começando pela gênese das leis, a auto captura é de natureza interna de cada membro do Poder Legislativo, na sua elaboração, a partir da uma visão ideológica do mundo, não se fazendo aqui referência particular ao plano político. Esse tipo de captura opera a partir do background que forma cada pessoa, configurada na sua experiência pessoal, familiar e social, impregnando-a com os princípios que internamente desenvolvidos. Não sendo o caso de aprofundar o tema neste momento, essa seria uma fonte dos preconceitos que uma pessoa porta. Para desligar o botão da sua auto captura é necessário que – no nosso caso o legislador – o agente seja direcionado para dela se afastar por meio da atuação de incentivos apropriados, segundo um convencimento que possa ser objetivo quanto ao entendimento dos preceitos jurídicos fundamentais e de sua obediência a eles. A observação da realidade social nos mostra, no entanto, que é muito difícil desfazer a cabeça de alguém que está contaminado por alguma ideologia, a qual se torna um verdadeiro dogma na sua maneira de pensar e de agir. Um dos aspectos da ideologia se coloca no campo religioso, quando o legislador é capturado em função das concepções fruto da sua crença pessoal, o que é muito grave no âmbito de um estado democrático de direito, onde tem lugar o laicismo.
Na situação acima essa auto captura mostra-se distorcida em seus fundamentos, devendo ser combatida externamente pelos meios adequados, especialmente o controle jurisdicional.
De outro lado, a captura externa é aquela que resulta da compra (termo duro, mas absolutamente verdadeiro) do legislador por determinados grupos de interesse, internos e externos, dando-se como preço dinheiro propriamente dito – o vil metal – de forma direta ou indireta, caracterizando-se o superfaturamento nas licitações como uma das modalidades campeãs. Outra maneira está na distribuição de cargos públicos. Mas quando se fala na captura legislativa, sabe-se que ela reside também na frenética luta interna pelo poder nos órgãos que promulgam leis, a qual resultará para quem ganha em benefícios de grande monta em favor dos lobbies ali construídos. Nesse sentido a presidência de mesas no Legislativo é uma das expressões desse poder. Seu efeito é extremamente nefasto, como se percebe, por exemplo, quanto ao que tem acontecido no tocante ao famigerado orçamento secreto, saindo aqui um pouco do campo do direito empresarial. Mas a engenharia é a mesma.
Destaque-se, ainda, verdadeiro sistema de captura externa desenvolvida pelo legislador na figura do Centrão e nas duas casas legislativas federais, que cooptou a presidência da República e o orçamento federal, destacadamente por meio das chamadas emendas do relator que, de forma absolutamente inaceitável, reivindica e destina vultosos recursos públicos para beneficiários e finalidades ignorados. Sendo a incerteza um fenômeno que obscurece a realidade, no caso dessa forma de captura externa ela atingiu o seu paroxismo.
2. O empresário e os advogados
Em segundo lugar como agentes da incerteza surgem os advogados empresariais, na qualidade de intérpretes das leis correspondentes, os quais muitas vezes adotam de teses juridicamente inadequadas, e isso tem a ver numa primeira abordagem como efeito da grande ignorância do direito empresarial, o que os leva a orientar indevidamente os seus clientes empresários.
Mas a segunda abordagem mostra um aspecto deletério da atuação dos advogados, no atendimento dos objetivos dos empresários em situações concretas, os quais muitas vezes os procuram realizar sem devido conhecimento do direito, na busca de algum resultado que melhor favoreça a sua atividade, dessa forma ferindo algum instituto jurídico. Essa situação acontece muitas vezes na concepção das chamadas operações estruturadas, concernentes a uma estratégia que engloba dois ou mais ativos financeiros na busca de maior eficácia financeira. Nessas operações muitas vezes o direito empresarial é violado e em boa parte dos casos também o direito tributário.
Ora, o advogado é indispensável à administração da justiça, prestando serviço público e exercendo uma função considerada social (art. 2° do Estatuto da OAB) e, consequentemente, lhe é vedado compactuar com caminhos inadequados propostos pelos empresários imbuídos de boa ou de má fé, tão somente porque não deseja perder o cliente. E nesses casos o advogado pode causar prejuízos muito grandes no final aos empresários, quando suas teses futuramente forem derrubadas nos tribunais em ações judiciais supervenientes. É claro que o direito empresarial todos os dias cria institutos novos de avaliação inicial indefinida, mas a sua legalidade deve ser conferida à luz do substrato jurídico em vigor, não devendo ser abertas portas para aventuras jurídicas.
3. O empresário e os juízes
Finalmente cabe falar do último grande temor dos empresários, os juízes, que têm adotados decisões verdadeiramente estapafúrdias, não somente do ponto de vista do direito empresarial, como também do direito em geral. É altamente significativo o grau de incerteza que os empresários alimentam diante do Judiciário, e o resultado é uma elevação muito significativa dos custos de transação, com prejuízo geral para a atividade econômica.
Da mesma forma como dito acima, os juízes são sujeitos a uma auto captura, muitas vezes decorrente de uma percepção inadequada do funcionamento do sistema financeiro, por exemplo, resultando uma visão jurídica inconscientemente ordenada de maneira prévia na abordagem de casos sob a sua jurisdição. Como primeiro exemplo indicamos a Teoria Jurídica do Coitadismo, segundo a qual o cliente do banco – especialmente quando se trata de pessoa natural – é sempre um coitadinho a ser protegido a qualquer custo, pois o banco sempre que pode dele se aproveita. Essa visão leva o juiz a julgar de forma a determinar o restabelecimento de uma situação econômica e financeira que se revelou injusta para o cliente do banco, segundo a sua visão, mercê da revisão e até mesmo do perdão de dívidas contratuais.
Outro exemplo – muitas vezes ligado ao primeiro - está ligado ao desconhecimento do fato de que o banco não é dono do dinheiro nele depositado, mas, no fundo, um intermediário financeiro entre quem tem recursos disponíveis e os que deles necessitam para o atendimento dos seus interesses (na linguagem técnica, agentes superavitários e deficitários). Assim sendo, para os juízes que assim pensam, a condenação dos bancos ficaria limitada nos seus efeitos ao patrimônio daquelas instituições financeiras, ignorando que a recepção pelo Judiciário de teses desprovidas do verdadeiro fundamento econômico e, também, jurídico, serão revertidas de forma geral em respostas relacionadas ao encarecimento do crédito e ao abandono de operações que se revelarão invariavelmente danosas.
Nessa última situação ficou famoso o caso de desaparecimento do leasing cambial, acontecido no final da década de noventa do século passado, como decorrência de uma forte desvalorização do real frente ao dólar e seus efeitos nas obrigações de devedores brasileiros que haviam obtido recursos dessa forma junto a bancos brasileiros, os quais haviam levantado linhas de crédito para tal fim junto a banqueiros no mercado internacional. A solução que o Judiciário pátrio engendrou foi a substituição do dólar pelo INPC para o cálculo do débito e dividir o prejuízo entre o banco brasileiro e o seu cliente, cada qual assumindo geralmente a metade da obrigação correspondente à operação que havia sido contratada. O problema é que os bancos internacionais, credores no exterior dos bancos nacionais não aceitaram essa solução, exigindo dos últimos o pagamento integral dos seus créditos. O efeito que se deu foi que não mais foram oferecidos contratos de leasing daquela modalidade. E decisões esdrúxulas como essa se têm multiplicado, com os efeitos negativos acima apontados.
Mesmo fora do direito empresarial, exemplo recente de decisões estranhas foi o da concessão de divórcio após a morte de um dos cônjuges, conforme notícia do jornal Valor Econômico de 22/8/22. Ou seja, o falecido morreu casado e onde se encontra agora se transformou em divorciado, podendo até livremente se casar de novo, isso sob o pretexto da defesa dos interesses de alegados herdeiros. Como diria alguém, no direito brasileiro até a morte é incerta.
De outro lado, a captura externa do Judiciário se faz por meio da pressão de grupos organizados, que buscam impor a sua visão particular em detrimento do direito bancário, segundo os seus princípios e normas. Esse fato é muito corriqueiro quando da realização de jornadas jurídicas, organizadas de forma a que nelas somente (ou predominantemente) possam se manifestar arautos defensores das teses de interesse dos patrocinadores. A par da observação de que muitas vezes a ética fica de lado em tais certames, naturalmente neles não se apresenta uma discussão adequada das questões apresentadas, que se revestem de interpretações unilaterais em favor dos organizados de tais certames.
A forma mais comum da exteriorização das teses aprovadas nessas reuniões é a sua transformação em famigerados enunciados, que passam a ter a força indevida de súmulas, às quais mais à frente os juízes adotarão como fundamento de suas decisões em clara ofensa ao direito. Veja-se a esse respeito a posição de Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave, Andressa Solon Borges e Carlos André Maciel Pinheiro, para quem
“os enunciados administrativos não possuem uma natureza jurídica específica e são carentes de força normativa. Ainda, o conteúdo material dos enunciados é deveras desalinhado com as teorias e construções doutrinárias do direito intertemporal. No final da observação, conclui com uma postura crítica dos enunciados administrativos, sendo necessária uma revisão legislativa do Código de Processo Civil a ser feita com ampla participação da doutrina processualista para assim prover segurança jurídica ao jurisdicionado3”.
Veja-se que o Conselho Nacional de Justiça relaciona cento e sessenta e oito enunciados civis em sua página (acesso em 28/9/22), com nenhuma ou com parca indicação das fontes correspondentes, tendo se tornado eles um fundamento de direito para o deslinde de ações judiciais, como forma de captura externa do Judiciário. Isso é um completo absurdo.
Conclusão
Em conclusão, determinadas todas essas incertezas para a atividade empresarial, os empresários necessitarão contratar os serviços de uma cartomante para que esta, usando a sua bola de cristal, lhes dê uma visão do futuro e dessa forma possam dar andamento à sua atividade.
1 Editora UNESP, São Paulo, 2015.
2 São mais de cento e vinte emendas dessa natureza desde a promulgação da CF de 1988 e uma das mais demolidoras do seu texto foi a recentemente originada da PEC Kamikase ou da Emergência, promulgada acintosamente em julho deste ano de cunho nitidamente eleitoral. Nos envergonha saber que são apenas vinte e sete as emendas à Constituição norte-americana, e isto desde 1787.
3 Cf. “Os Enunciados Administrativos do Superior Tribunal de Justiça: Desnaturação Jurídica e Direito Intertemporal”, in Revista FADISP, (https://fadisp.com.br/revista/ojs/index.php/pensamentojuridico/article/view/16).