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Aspectos da nova lei de improbidade administrativa e os seus impactos nos processos disciplinares

Reflexões acerca do impacto da nova redação da lei de Improbidade Administrativa na análise dos Processos Administrativos Disciplinares.

27/9/2022

1.CONTEXTUALIZAÇÃO

Em outubro de 2021 foi publicada a lei 14.230, que alterou sensivelmente a lei 8429, de 2 de junho de 1992 (LIA), a qual dispõe sobre as sanções aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade administrativa, além de conceituar e definir os atos de improbidade administrativa.

Como se sabe, os atos de improbidade implicam, além da responsabilização civil (judicial), a instauração de processos administrativos disciplinares, uma vez que a lei 8.112, de 1990, prevê, em seu artigo 132, inciso IV, a penalidade de demissão ao servidor público que pratique ato de improbidade. Entretanto, o estatuto do servidor não conceitua improbidade, o que nos remete às definições da lei 8.429 vestida de fins ilícitos e que tenha o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade (vide artigos 1º, §§1º, 2º e 3º, e 11, §§1º e 2º).

Alguns atos que anteriormente eram considerados ímprobos e fundamentavam demissões calcadas no art. 132, IV, da lei  8.112, de 1990, passaram a demandar capitulação disciplinar diversa, diante das mudanças no texto legal.

Ao mesmo tempo, o §4º do artigo 1º da LIA, recém incluído, inegavelmente associa o diploma ao direito processual disciplinar, na medida em que dispõe: Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.

Diante desses contornos, a advocacia já começou a enfrentar, nas análises dos processos disciplinares, os desafios das alterações sofridas pela LIA. Sem a pretensão de esgotar o tema, discorreremos sobre os principais pontos que impactam na nossa atuação.

2. PRINCIPAIS IMPACTOS DA LEI 14.320, DE 2021, NA ANÁLISE DE PROCESSOS ADMINISTRATIVOS DISCIPLINARES.

Primeiramente, danos causados por imprudência, imperícia ou negligência não podem mais ser configurados como atos de improbidade, pois a lei passou a contar com texto expresso no sentido da exigência de dolo para responsabilização por improbidade. Anteriormente, a atuação culposa também poderia ensejar punição nesse sentido.

Com efeito, essa já era uma tendência bastante forte na doutrina e jurisprudência, de modo que o novo marco legal veio apenas a consagrar a regra. Os dispositivos que incluíam a culpa como elemento subjetivo do tipo da improbidade foram todos modificados para deixar apenas a ação ou omissão dolosa. Bem assim, o dolo genérico não é mais admitido, pois a finalidade de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade passou a ser explícita no texto legal.

Assim, com o advento da lei 14.230, de 2021, para que seja considerado ímprobo, o ato deve derivar de vontade livre e consciente do agente público de causar algum tipo de prejuízo ao erário, ferir os princípios da Administração Pública ou enriquecer ilicitamente, não bastando a voluntariedade ou o mero exercício da função. Também ficou explícito na nova redação que não pode ser punida como improbidade a ação ou omissão decorrente de divergência na interpretação da lei.

A conceituação do instituto é cara ao direito disciplinar, pois como dito, é necessário utilizar as definições da LIA para enquadrar infrações administrativas no artigo 132, IV, da lei 8.112, de 1990. Daí o impacto que tais alterações causam na condução e julgamento de processos disciplinares.

Os artigos 9º e 10 da LIA, que estabelecem os atos de improbidade que importam prejuízo ao erário, tiveram suas redações modificadas para excluir a possibilidade de condenação culposa, mantendo rol exemplificativo de condutas que se enquadram na descrição do caput.

Entretanto, a prática vem demonstrando que a alteração que mais impacta a análise de procedimentos disciplinares é aquela promovida no artigo 11 da lei, que conceitua o ato de improbidade administrativa por violação a princípio.

Tratava-se do chamado de ato de improbidade administrativa stricto sensu, utilizado como fundamento da quase totalidade de punições por improbidade na esfera administrativa disciplinar.

Vejamos a redação anterior do artigo 11 da lei de Improbidade:

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:

  1. praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;
  2. retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;
  3. revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo;
  4. negar publicidade aos atos oficiais;
  5. frustrar a licitude de concurso público;
  6. deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo;
  7. revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço.
  8. descumprir as normas relativas à celebração, fiscalização e aprovação de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas.

Como se vê, tratava-se de conceituação aberta, calcada no malferimento a princípios da Administração Pública, seguida de rol exemplificativo de condutas que poderiam configurar, em tese, improbidade.

Assim, para caracterização do ato de improbidade, não era necessário prejuízo ao erário ou enriquecimento ilícito do agente, bastava que fosse demonstrada a violação a um princípio administrativo constitucional. E como em sede disciplinar não é comum a quantificação de prejuízo e a mensuração financeira de danos e favorecimentos ilícitos, a utilização do artigo 11 era comum em casos de corrupção.

Contudo, o novo marco legal assim passou a prever:

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas: (Redação dada pela lei 14.230, de 2021)

(revogado); (Redação dada pela lei 14.230, de 2021)

(revogado); (Redação dada pela lei 14.230, de 2021)

revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo, propiciando beneficiamento por informação privilegiada ou colocando em risco a segurança da sociedade e do Estado; (Redação dada pela lei 14.230, de 2021)

negar publicidade aos atos oficiais, exceto em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e do Estado ou de outras hipóteses instituídas em lei; (Redação dada pela lei 14.230, de 2021)

V - frustrar, em ofensa à imparcialidade, o caráter concorrencial de concurso público, de chamamento ou de procedimento licitatório, com vistas à obtenção de benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros; (Redação dada pela lei 14.230, de 2021)

deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo, desde que disponha das condições para isso, com vistas a ocultar irregularidades; (Redação dada pela lei 14.230, de 2021)

 revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço.

 descumprir as normas relativas à celebração, fiscalização e aprovação de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas. (Vide Medida Provisória  2.088-35, de 2000) (Redação dada pela lei 13.019, de 2014) (Vigência)

 (revogado); (Redação dada pela lei 14.230, de 2021)

 (revogado); (Redação dada pela lei 14.230, de 2021)

 nomear cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas; (Incluído pela lei 14.230, de 2021)

 praticar, no âmbito da administração pública e com recursos do erário, ato de publicidade que contrarie o disposto no § 1º do art. 37 da Constituição Federal, de forma a promover inequívoco enaltecimento do agente público e personalização de atos, de programas, de obras, de serviços ou de campanhas dos órgãos públicos. (Incluído pela lei 14.230, de 2021)

§ 1º Nos termos da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, promulgada pelo decreto 5.687, de 31 de janeiro de 2006, somente haverá improbidade administrativa, na aplicação deste artigo, quando for comprovado na conduta funcional do agente público o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade. (Incluído pela lei 14.230, de 2021)

§ 2º Aplica-se o disposto no § 1º deste artigo a quaisquer atos de improbidade administrativa tipificados nesta lei e em leis especiais e a quaisquer outros tipos especiais de improbidade administrativa instituídos por lei. (Incluído pela lei  14.230, de 2021)

§ 3º O enquadramento de conduta funcional na categoria de que trata este artigo pressupõe a demonstração objetiva da prática de ilegalidade no exercício da função pública, com a indicação das normas constitucionais, legais ou infralegais violadas. (Incluído pela lei 14.230, de 2021)

§ 4º Os atos de improbidade de que trata este artigo exigem lesividade relevante ao bem jurídico tutelado para serem passíveis de sancionamento e independem do reconhecimento da produção de danos ao erário e de enriquecimento ilícito dos agentes públicos. (Incluído pela lei 14.230, de 2021)

§ 5º Não se configurará improbidade a mera nomeação ou indicação política por parte dos detentores de mandatos eletivos, sendo necessária a aferição de dolo com finalidade ilícita por parte do agente. (Incluído pela lei 14.230, de 2021) .

A nova redação continua possibilitando a caracterização de improbidade por desobediência a princípios da Administração Pública, porém especifica em quais casos poderá haver o enquadramento.

Dessa forma, os incisos do artigo 11, que anteriormente traziam exemplos de condutas ímprobas, passaram a prever taxativamente as hipóteses em que o malferimento a princípios da Administração Pública classifica-se como improbidade. Além disso, algumas previsões constantes do rol exemplificativo anterior foram excluídas.

Portanto, para que o acusado seja condenado nos termos no artigo 132, IV, da lei 8.112, de 1990, com base no artigo 11 da lei 8.429, de 1992, os atos investigados no processo administrativo disciplinar devem ser enquadrados exatamente em um ou mais incisos do dispositivo.

Nos casos em que resta caracterizada conduta inadequada, imoral ou desleal, que todavia não esteja abarcada pelas hipóteses citadas no artigo 11 da LIA, a comissão de PAD não poderá fazer o enquadramento em improbidade administrativa. A nova redação do dispositivo significa grande impacto nos atos violadores de princípios da administração pública em que não haja provas de enriquecimento ilícito, devido à taxatividade imposta pelo novo dispositivo.

Inúmeros eram os casos em que a falta de moralidade e/ou deslealdade do servidor lhe rendia a demissão por improbidade. Esclarecemos: a demissão continua sendo plenamente possível por malferimento a princípios da Administração Pública. Todavia, se não houver em tais condutas a constatação de prejuízo ao erário ou enquadramento em um dos incisos do artigo 11 da LIA, a condenação por improbidade não terá fundamento.

Ocorre que, como dito, na maior parte dos casos, é inviável a quantificação de prejuízos em sede disciplinar, de modo que também restarão sensivelmente reduzidas as condenações por improbidade que dependam dessa comprovação.

Bem assim, apesar da possibilidade de apuração de enriquecimento ilícito, por meio de sindicância patrimonial, o aparato de que dispõe a Administração Pública para tal mister não permite aprofundamento e por vezes as investigações são frustradas por falta de meios.

Por tais razões, já existe doutrina defendendo que não se pode mais cogitar a configuração de ato de improbidade em sede administrativa.

Pois bem, não se estando mais diante de um regime jurídico que permitia a caracterização do ato de improbidade quando constatado o elemento subjetivo dolo genérico na conduta do agente, é preciso ter em mente que o novo marco legal traz a necessidade de uma maior sofisticação e esmero na instrução dos processos penaliformes que são instaurados para apurar a prática de atos pretensamente ímprobos.

À luz da nova lei de Improbidade Administrativa, as mesmas fragilidades no contraditório e na ampla defesa apontadas pelo STF nos processos que tramitam nos Tribunais de Contas (e que inclusive levaram o Supremo a afirmar no julgamento do RE 636.886/AL que as cortes de contas não têm poder para imputar a prática de improbidade) estão igualmente presentes nos processos administrativos disciplinares que aplicam as penalidades de demissão calcadas na ocorrência de improbidade.

Como na esfera administrativa não há um terceiro imparcial e equidistante entre as pretensões das partes, esse redesenho da configuração do ato de improbidade promovido pela lei 14.230/21 claramente demanda a necessidade de que a mesma somente ocorra em juízo, e não administrativamente.

Militar em sentido contrário seria admitir a existência de duas espécies de atos ímprobos: os configurados após apuração em juízo em que se avaliou adequadamente a existência de dolo específico e os configurados após mera apuração em sede administrativa, em que a aferição do dolo é feita por um ente que acumula as funções de instrução, acusação e julgamento.

Portanto, não nos parece uma solução aceitável ignorar o overruling da súmula 651/STJ, vez que ela é claramente infensa ao novo paradigma trazido pela lei 14.230/21.

A nosso ver, ainda é muito cedo para abolir a possibilidade de condenação administrativo-disciplinar por ato de improbidade. Porém, é certo que o novo marco legal traz a necessidade de maior sofisticação e primor na instrução dos processos instaurados para apurar a prática de atos supostamente ímprobos, sob pena de haver grandes dificuldades para seu enquadramento ao final do processo administrativo apuratório.

3. PRAZO PRESCRICIONAL E RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA

A lei 14.320, de 2021, efetivou, ainda, modificação no prazo prescricional para apuração de atos de improbidade, que aumentou de cinco para oito anos. Como muitas vezes se tratam de eventos de investigação complexa, esse aumento de prazo favorece a apuração e repressão das infrações.

Quanto à retroatividade da norma mais benéfica, não houve tempo hábil para a formação de jurisprudência, mas, a nosso sentir, a melhor cautela determina que feitos nos quais já houve julgamento pela autoridade julgadora não retroajam, pois o enquadramento foi realizado com base em norma em vigor à época da decisão. No ponto, vale esclarecer que não é necessário o esgotamento das vias recursais (trânsito em julgado), pois na esfera administrativa vige o princípio da autoexecutoriedade.

Entretanto, no que toca a fatos praticados e/ou aos processos iniciados sob a égide anterior, porém ainda pendentes de julgamento, deverão ser analisados com base nas disposições da nova redação da LIA, devendo a norma retroagir nesse ponto, por força do Princípio Constitucional da retroatividade da lei sancionadora mais benéfica.

4.CONCLUSÃO

Como se percebe, o impacto das alterações na lei de Improbidade, promovidas pela lei 14.230, de 2021, foi grande e significativo nas análises de processos administrativos disciplinares, demandando por parte das Comissões Processantes perspectiva jurídica distinta da lógica que vinha sendo há muito aplicada.

A ótica do enriquecimento ilícito e/ou prejuízo ao erário ganhou especial relevo para a caracterização da improbidade, relegando a poucos casos, taxativos na lei, a condenação por improbidade calcada somente no malferimento a princípios da Administração Pública, o que reduz significativamente as possibilidades de condenação administrativa por atos de improbidade nesta hipótese de descumprimento de princípios.

De toda forma, os desafios apenas começaram. Esperamos que as comissões de PAD adaptem-se rapidamente ao novo marco legal, e que possamos todos trabalhar em conjunto para o alcance de um processo disciplinar justo e sempre mais condizente com as garantias constitucionais e leis pátrias.

Ygor Werner
Advogado. Mestre em D. Constitucional (UFRN), com extensão realizada na Faculdade de Direito da Univ. de Coimbra, em Portugal. Pós-graduado em D. Civil e Proc. Civil (UFRN) e em D. Tributário (IBET).

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