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Perspectiva de gênero: Apontamentos sobre equidade e antevisão de condenações da Justiça do Trabalho

Apresenta-se a necessidade de olhar e interpretar as normas pátrias pelas lentes da perspectiva de gênero, como forma de equilibrar as assimetrias existentes em regras supostamente neutras e universais, mas que de forma diferente atingem as pessoas às quais se destinam.

27/9/2022

A Constituição da República, como sabemos, considera a todos igualmente, garantindo-lhes a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Esse é o teor do art. 5º, que em seu inciso I complementa: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”.

O art. 7º, inciso XX, traz adicionalmente a garantia de "proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei", garantia de igualdade material entre os gêneros.

Por essas garantias fundamentais constantes da Carta Magna promulgada em 1988, a expressa e formal igualdade entre os homens e mulheres mostrou-se um marco, principalmente se considerado que pouco antes, as brasileiras não tinham direito ao voto e sequer contavam com a aprovação das famílias e da sociedade para seus anseios de formação profissional diferente do magistério, menos ainda para o exercício de atividade remunerada, o “trabalhar fora”.

A partir da magna norma, outras infraconstitucionais foram recepcionadas ou se delinearam de forma a demonstrar a igualdade de gêneros, distinguindo as mulheres apenas em normas dedicadas à sua proteção, como consta da CLT – Consolidação das Leis do Trabalho – capítulo III dedicado a “Proteção do Trabalho da Mulher” ou do ADCT sobre a estabilidade provisória à maternidade em complemento aos dispositivos celetistas.

Muitas dessas normas, mesmo dedicadas à proteção da mulher, acabaram por criar discriminação indireta já em processos seletivos, restringindo a contratação de mulheres e muitas vezes o próprio acesso ao mercado de trabalho. Até os dias de hoje, há empregadores que sequer cogitam a contratação de gestante por entender que “pagará para ficar em casa”, dispensando, provavelmente, grandes talentos.

Desde a promulgação da Constituição em 1988 mantém-se em nossa sociedade discussões sobre a igualdade entre homens e mulheres. Há certo tempo, as discussões foram ampliadas às questões de identidade de gênero, propriamente, que decorre de aspectos culturais, sociais e leva em conta as interações do indivíduo com a sociedade; o gênero feminino não é composto exclusivamente por indivíduos que nasceram com o aparelho reprodutor feminino, dentre outras considerações, mas ao tratarmos do gênero feminino, tratamos de mulheres, especialmente buscando a igualdade de direitos e obrigações no dia a dia, no mercado de trabalho, nos deparamos com desigualdades, discriminação, assédio e impossibilidades de ascensão profissional.

Sabemos que ambiente de trabalho é naturalmente terreno fértil para discriminações devido à assimetria inerente à relação empregatícia que pode favorecer a prática velada de condutas discriminatórias, seja por subordinação à hierarquia, seja entre colegas no mesmo nível hierárquico, também. Ainda que se evidencie a ausência de intenção objetiva de discriminar e de situações nas quais não há a utilização de formas de diferenciação legalmente vedadas, as discriminações ocorrem e de forma mais recorrente, sobre as mulheres.

Para ilustrar, é comum o relato de mulheres que em reuniões são cerceadas em suas falas, recebem explicações desnecessárias como se fossem incapazes ao entendimento, veem suas ideias apropriadas por homens, são desqualificadas em sua sanidade mental e observam seu comportamento e imagem colocados em julgamento por colegas. Todas essas condutas recebem denominações próprias, em inglês (manterrupting, mansplaining, slut shaming, gaslighting), língua universal a demonstrar que a hostilidade sobre o gênero feminino ocorre no mundo todo e em todos os aspectos da vida, inclusive.

Para além de “apenas” discriminações, a Convenção 190 da OIT – Organização Internacional do Trabalho – ainda pendente de ratificação pelo Estado brasileiro, reconhece que a violência e o assédio baseados em gênero no mundo do trabalho afetam desproporcionalmente as mulheres, o que requer urgente abordagem inclusiva, integrada e com perspectiva de gênero, em contraposição sobre as formas várias (e veladas) de discriminação e desigualdade nas relações de poder devido ao gênero.

Surge, em decorrência, o questionamento: se a Constituição Federal preconiza a igualdade de todos perante a lei, inclusive garantindo a proteção ao trabalho da mulher e se as leis infraconstitucionais decorrem dos preceitos oriundos dessa garantia fundamental, já não há ordenamento suficiente a garantir a isonomia entre todos, independente do gênero, guardadas as garantias ao trabalho da mulher?

A resposta é sim, em tese há ordenamento suficiente a garantir a igualdade, ou melhor, a equidade. Contudo, esse ordenamento é pautado em regras supostamente neutras e universais que atingem de forma diferente as pessoas; normas que têm como base, “o homem médio”, paradigma androcêntrico, branco e heterossexual.  Logo, a forma e o resultado da aplicação da norma afastam a isonomia e podem se tornar instrumentos de discriminação, não atingindo a todos igualmente e ferindo assim a equidade tão almejada em nossa sociedade.

Vale dizer, a suposta neutralidade e universalidade das leis as torna insuficientes para resolução das desigualdades, posto que essas decorrem naturalmente deste ou daquele individuo construído por aspectos sociais, culturais e resultantes da interação com outros, que são submetidos a um marcador de gênero masculino, o acima citado paradigma androcêntrico, branco e heterossexual.

Apresenta-se, então, a necessidade de olhar e interpretar as normas pátrias pelas lentes da perspectiva de gênero, como forma de equilibrar as assimetrias existentes em regras supostamente neutras e universais, mas que de forma diferente atingem as pessoas às quais se destinam.

Partindo do reconhecimento das desigualdades às quais foram as mulheres submetidas ao longo do tempo em nosso país e que também influenciam o reconhecimento dos direitos em decisões emanadas pelo Poder Judiciário nas diversas searas de atuação, muitas vezes até eivadas de preconceitos, o CNJ – Conselho Nacional de Justiça – publicou em fevereiro a Recomendação CNJ 128/2022 direcionada a todos os órgãos do Poder Judiciário para adoção do “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero” editado e lançado em sessão plenária de 19 de outubro de 2021.

Seu alcance importa para além das fronteiras de nosso país, haja vista o compromisso assumido pelo Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça com a ONU, pois a igualdade de gênero é um dos “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda de 2030 da Organização das Nações Unidas”, constante dos “considerandos” da Recomendação.

Publicada em fevereiro do corrente ano, a Recomendação formalizou o “Protocolo” que vinha sendo adotado por magistrados desde meados de 2021 e está alterando a realidade das questões de gênero na Justiça brasileira, já contando com decisões que se pautam nas diretrizes do “Protocolo”, surpreendendo aqueles que acreditam no êxito de suas teses fundamentadas em interpretações tradicionais do conjunto de normas vigentes, desconsiderando as contradições de modelos interpretativos dominantes, assim como desconsiderando a necessária concretização do Direito de forma verdadeiramente igualitária e atual.

O documento é extenso e visa a adoção da imparcialidade no julgamento de casos contra mulheres evitando avaliações baseadas em estereótipos e preconceitos existentes na sociedade e promovendo uma postura ativa de desconstrução e superação de desigualdades históricas e de discriminação de gênero.

Afeito à seara laboral, o “Protocolo” assim se manifesta:

“O Direito do Trabalho tem sido impelido a superar o modelo de proteção do trabalho da mulher, que parte de uma premissa discriminatória de que seria o sexo frágil, para passar a promover ou proporcionar condições de igualdade de gênero. A perspectiva de gênero reconhece as diferenças entre os sexos, questionando o significado que tais diversidades adquirem dentro dos sistemas de valores histórica e culturalmente definidos e combatendo explicações essencialistas sobre a subordinação da mulher na sociedade. Além disso, é com as lentes de gênero que se torna visível na dinâmica saúde-trabalho a sobrecarga de trabalho para as mulheres decorrente da divisão sexual do trabalho (a “dupla jornada”), permitindo explicar os diferentes impactos que a exposição aos mesmos riscos químicos, ergonômicos e psíquicos nos locais de trabalho provocam em homens e mulheres, reorganizando o conhecimento científico na ótica de não desqualificação pela diferença sexual”.

Ao longo do “Protocolo” constam diretrizes ao julgamento com a perspectiva de gênero. Sem perder o norte de que é obrigação do empregador promover um ambiente de trabalho saudável e equilibrado a todos, destacam-se no item 4, “Justiça do Trabalho”, os itens seguintes:

- Atenção à discriminação indireta, identificada a partir dos resultados diferenciados produzidos por uma norma, supostamente geral e neutra, em relação a mulheres, ainda que não seja essa a intenção;

- Ocorrência da violência ou do assédio normalmente de forma velada e clandestina, o que pode ensejar uma readequação da distribuição do ônus probatório, bem como a consideração do depoimento pessoal da vítima e da relevância de prova indiciária e indireta;

- O necessário equilíbrio no meio ambiente laboral, que considere a variabilidade humana e promova a isonomia de direitos e a proteção de ambos os sexos, com a exclusão do risco ocupacional para todas e todos, e não com a exclusão de trabalhadoras das profissões de risco.

Convém ressalvar, ainda, que o “Protocolo” afirma a responsabilidade do setor privado em matérias de direitos humanos em vista de sua população empregada e do seu próprio entorno social, dele esperando um padrão mínimo de conduta garantidor da equidade.

Por essa razão é que o “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”, não obstante direcionado a todos os órgãos do Poder Judiciário como consta da Recomendação 128 do CNJ, deve ser visto e revisto por empresas como instrumento norteador a elaboração de novas políticas internas ou mesmo a revisão daquelas já estabelecidas, ou ainda fomentar a realização de uma auditoria de procedimentos para que profissionais da área Jurídica e/ou de Recursos Humanos mais atentos e sensíveis ao tema possam estabelecer novos padrões comportamentais que venham a adequar a conduta de toda a organização para as questões de gênero, concretizando uma antevisão sobre condenações e danos à imagem, a mitigação ou elisão de danos, cumprindo em última análise, a obrigação de promoção e manutenção de ambiente de trabalho saudável e equilibrado a todos os seus colaboradores.

Ana Lúcia Ceravolo Pikunas
Advogada no escritório Comparato, Nunes, Federici & Pimentel Advogados.

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