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A preservação da anterioridade no DIFAL

Supremas Cortes vivem da sua autoridade. Essa autoridade é preservada sempre que a jurisdição constitucional reafirma, a partir das súplicas que lhe chegam, sua trajetória jurisprudencial emancipadora.

26/9/2022

Cortes Constitucionais mundo afora têm adotado, em determinados casos, a técnica decisória constituída por um “apelo ao Legislador”, seguida da tentativa de estabelecimento de um “Diálogo Institucional” com o Poder Legislativo capaz de superar inconstitucionalidades por meio da edição de dada lei ou ato normativo.

No Brasil, um dos últimos Diálogos Institucionais exitosos entre o Supremo e o Congresso se deu em 2021, quando o Tribunal julgou o RE 1.287.019 (Tema 1093) e a ADIn 5469, reputando inconstitucionais as cobranças do diferencial de alíquota de ICMS (DIFAL-ICMS) pelos estados e Distrito Federal nas operações interestaduais cujo destinatário é o consumidor final, uma vez que as exações se baseavam tão somente no Convênio ICMS 93/15, do CONFAZ, não em lei complementar.

Naquela oportunidade, duas proposições exegéticas se antagonizaram no Plenário. A primeira, do ministro Alexandre de Moraes, sustentou não ser necessária a edição de lei complementar, pois não se estaria tratando de criação de um novo tributo. “Muito pelo contrário, o que houve foi a estipulação de novas regras e divisão de receitas do ICMS na circulação interestadual de mercadorias e serviços”, fundamentou Sua Excelência.

Prevaleceu, contudo, a interpretação do ministro Dias Toffoli, relator, segundo a qual, qualquer que fosse o disciplinamento do DIFAL, ele reclamaria a definição, pelos menos, das seguintes questões: “(i) quem é o contribuinte dessa exação, isto é, se é o remetente ou o destinatário; (ii) se há ou não substituição tributária na hipótese; (iii) quem deve ser considerado o destinatário final, se, v.g., o destinatário físico ou se o destinatário jurídico dos bens; (iv) quando ocorre o fato gerador da nova obrigação, se, por exemplo, na saída da mercadoria do estabelecimento, na entrada dela no estado de destino ou, ainda, em sua entrada no estabelecimento ou no domicílio do consumidor final; (v) onde ocorre o fato gerador, para efeito de cobrança da exação.”

Tal conclusão fez o STF fulminar o Convênio ICMS 93/15, por reputá-lo inconstitucional, e, apenas em nome da segurança jurídica, modular os efeitos dessa decisão para este ano de 2022, ressalvadas as ações então em curso. Cobranças inconstitucionais continuariam até 31/12/21. A partir de então, apenas se houvesse lei complementar que regulasse a matéria.

O Supremo, por sua decisão, terminou por fazer um apelo ao Legislador. Respondendo a esse apelo, o senador Cid Gomes (PDT/CE) apresentou o Projeto de Lei Complementar 32/21. Em sua justificativa, registrou: “No julgamento da ADI 5469, o STF declarou a inconstitucionalidade formal das cláusulas primeira, segunda, terceira, sexta e nona do Convênio ICMS nº 93, de 2015”.

Também o senador Jaques Wagner, relator, demonstrou se tratar do estabelecimento de um Diálogo Institucional: “O Difal a não contribuinte foi regulamentado pelo Convênio ICMS 93, de 2015, porém o Supremo Tribunal Federal decidiu, no julgamento da citada ADI nº 5.469/DF, que era necessária lei complementar. Ainda assim, na modulação da decisão, a Suprema Corte obrigou as empresas não optantes do Simples Nacional a recolher o Difal a não contribuinte, sob a égide do Convênio, até 31 de dezembro de 2021. Após essa data, a obrigação subsiste somente se prevista em lei complementar, na qual o projeto sob exame pretende se convolar”.

Enquanto o Congresso debatia o tema, pelo menos 8 estados1, além do Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda dos Estados e do DF (COMSEFAZ), enviaram ofícios ao presidente do Senado Federal, reconhecendo que era aplicável, ao caso, as anterioridades nonagesimal e anual. Eis trecho: “Assim, diante dessa decisão, o Congresso Nacional, no seu mister, necessita urgentemente aprovar as leis complementares que irão disciplinar a cobrança do DIFAL, atentando para os princípios da anterioridade e noventena, sob pena dos Estados e Distrito Federal arcarem com um impacto anual de 9,8 bilhões de reais por ano, conforme demonstrado na tabela anexa.”

Mas não foi apenas isso. O parecer do senador Jaques Wagner foi eloquente ao anunciar a opção legislativa de tornar aplicável ambas as anterioridades. Uma opção legislativa deliberada, consciente, refletida..., na verdade, uma determinação decorrente das razões de decidir do precedente firmado pelo Supremo. Constou do parecer do Senador: “O art. 4º do projeto, que é a cláusula de vigência e de eficácia, está eivado de inconstitucionalidade material. De acordo com as alíneas ‘b’ e ‘c’ do inciso III do art. 150 da Constituição, é proibido cobrar tributos no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou (anterioridade plena) e antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada essa lei gravosa (anterioridade nonagesimal). A omissão do art. 4º em relação à anterioridade plena será corrigida por meio do acolhimento da Emenda nº 4-PLEN, do Senador Izalci Lucas.”

O projeto foi votado e aprovado pela Câmara dos Deputados e novamente pelo Senado Federal, em dezembro de 2021, não tendo havido a sanção presidencial, contudo. O exercício de 2022 se iniciou sem que no plano normativo houvesse o convênio do CONFAZ, nem a modulação de efeitos, tampouco a lei complementar. Na aurora de 2022, tudo o que existia era um grande vazio normativo relativo ao DIFAL. A sanção ao projeto veio apenas em 4/1/22, resultando na LC 190/22, publicada em 5/1/22.  

O art. 3º da LC 190/22 diz: “Esta Lei Complementar entra em vigor na data de sua publicação, observado, quanto à produção de efeitos, o disposto na alínea ‘c’ do inciso III do caput do art. 150 da Constituição Federal”. No texto do art. 150, III, “c” da Constituição, consta a regra de anterioridade nonagesimal, “observado o disposto na alínea b”, que impõe a anterioridade anual.

Mesmo assim, os estados seguiram, por um lado, cobrando o DIFAL do ICMS no próprio exercício de 2022 e, por outro, pedindo que a Suprema Corte os autorize a desrespeitar a cláusula pétrea da anterioridade tributária. Assim se comportaram o estado de Alagoas, que ajuizou a ADIn 7070 e o estado do Ceará, que ajuizou a ADIn 7078. O ministro Alexandre de Moraes relata as duas ações.  

Em razão da iniciativa, foi ajuizada, pelos contribuintes, a ADIn 7066, igualmente de relatoria do ministro Alexandre de Moraes, pedindo que seja conferida interpretação conforme à Constituição ao art. 3º, da LC 190/22, no sentido de que determine seja observada, quanto à produção de efeitos, o disposto na alínea “b” e “c” do inciso III do caput do art. 150 da Constituição, ou seja, produção de efeitos tão somente a partir de 1/1/23, respeitadas as anterioridades nonagesimal e de exercício.

Manifestaram-se na ADIn 7066 a Procuradoria Geral da República (peça 142) e a Advocacia Geral da União (peça 139), concluindo pela incidência da anterioridade, tanto a anual quanto a nonagesimal. Nesse sentido também se manifestaram o Senado (peça 124), a presidência da República e a Consultoria-Geral da União (peça 119).

O STF recebeu, ainda, estudos de dois experts, os professores Luís Eduardo Schoueri (peça 147) e Daniel Sarmento (peça 155). Eles concluíram pela necessidade de observância ao princípio da anterioridade (nonagesimal e de exercício).

Ocorre que agora, iniciado o julgamento da ADIn 7066 – feito em conjunto com as ADIns 7070 e 7078 -, o ministro Alexandre de Moraes, relator, trouxe posição no sentido de que “a LC 190/2022 não modificou a hipótese de incidência, tampouco da base de cálculo, mas apenas a destinação do produto da arrecadação, por meio de técnica fiscal que atribuiu a capacidade tributária ativa a outro ente político – o que, de fato, dependeu de regulamentação por lei complementar – mas cuja eficácia pode ocorrer no mesmo exercício, pois não corresponde a instituição nem majoração de tributo”.

O racional hermenêutico empregado no voto, de modo a afastar as bases normativas que reclamariam a incidência do princípio da anterioridade tributária, rejuvenesce pontos submetidos ao STF quando do primeiro julgamento relativo ao DIFAL, mas suplantado pela corrente liderada pelo ministro Dias Toffoli.

Ocorre que as duas correntes hermenêuticas são irreconciliáveis entre si. Isso porque não parece possível se tratar de mera repartição de receitas e, simultaneamente, que o DIFAL é uma nova relação jurídica tributária. Caso se tratasse apenas repartição de receitas, seria uma questão de Direito Financeiro. Mas o que há é uma definição de sujeição ativa da exação, e não apenas de distribuição de recursos entre entes federados, e tanto já foi afirmado pelo STF. Se o exercício de 2022 se iniciou sem que houvesse regra-matriz completa – o que inclui o critério pessoal e, logo, a quem se deve pagar o tributo –, quando sobreveio a LC 190/22 houve, sim, agravamento da exação de ICMS nas operações interestaduais destinadas ao consumidor final.

Para além de fragilizar o primado da segurança jurídica, a posição não desperta preocupações apenas quanto à funcionalidade deliberativa do STF, ou à autoridade do colegiado, ou mesmo à segurança hermenêutica. Em disputa está a manutenção de uma conquista reconhecida pela Suprema Corte há quase 30 anos2 como sendo uma cláusula pétrea: a anterioridade tributária. Trata-se de direito fundamental cuja supressão em casos concretos acarreta grave retrocesso em tudo incompatível com o próprio papel do STF.

A reafirmação do vitorioso conceito de direitos fundamentais se deu por ciclos. O primeiro deles ergueu-se com a Carta Magna de 1215, que há pouco completou 800 anos e tem uma réplica emoldurada e exposta na antessala do gabinete de Sua Excelência, o ministro Alexandre de Moraes, no Supremo. A Carta Magna de 1215 lá está porque reverbera um ideal do qual o constitucionalismo moderno se alimenta, um ideal que abriu caminho para muitas outras conquistas. Que ideal é esse? A anterioridade tributária.

E não é só. Há também, na posição, uma quebra de compromisso para com o Congresso Nacional que pode custar muito à autoridade das decisões futuras do Supremo que reclamem, para a superação de determinadas inconstitucionalidades, o estabelecimento de um Diálogo Institucional com o Congresso Nacional.

É que após ter o Supremo exortado o Congresso a aprovar a lei complementar a partir das razões de decidir vitoriosas no julgamento do RE nº 1.287.019 (Tema 1093) e da ADIn 5469, a posição do douto Ministro Relator censura o Poder Legislativo por ter salvaguardado os contribuintes a partir da leitura que o Congresso fez do precedente vinculante do STF e da própria Constituição, em seu art. 150, III, “b” e “c”.

Segundo o ministro Alexandre de Moraes, “uma vez afirmada a não incidência do art. 150, III, ‘b’ e ‘c’, CF, em sede de Jurisdição Constitucional, esse mesmo efeito não pode ser estabelecido pelo legislador infraconstitucional, a pretexto de observar princípios constitucionais editando uma interpretação autêntica sobre os mesmos, sob pena de violação da supremacia da Constituição”. Sua Excelência então conclui: “é inconstitucional o art. 3º da LC 190/2022, na medida em que, pela remissão direta aos limites constitucionais do poder de tributar inscritos no art. 150, III, “b” e “c”, da CF, pretendeu dispor sobre a incidência desses dispositivos constitucionais”.

A censura ao Congresso Nacional, combinada com a quebra do Diálogo Institucional estabelecido por iniciativa do ministro Dias Toffoli, relator do RE 1.287.019 (Tema nº 1093) e da ADIn 5469, se agrava ao se convidar o Plenário do Supremo a fixar o entendimento de que o Congresso não tem mais a competência de, a partir da sua leitura da Constituição, salvaguardar legislativamente direitos fundamentais.

O próprio Supremo reconheceu tal possibilidade, no tema 6603, quando fixou que direitos fundamentais como o contraditório, a ampla defesa, o devido processo legal e a coisa julgada são intermediados – e, portanto, regulados – pelas leis ordinárias produzidas pelo Congresso. Compete-lhe, sim, regular o exercício de direitos fundamentais, podendo exercê-lo inclusive para ampliá-los.

Supremas Cortes vivem da sua autoridade. Essa autoridade é preservada sempre que a jurisdição constitucional reafirma, a partir das súplicas que lhe chegam, sua trajetória jurisprudencial emancipadora. Também se incrementa a partir da manutenção de um diálogo leal com o Poder Legislativo para, juntos, superarem inconstitucionalidades cuja cura reclama atuação positiva do Legislador.

Os estados-membros ficaram com os recursos inconstitucionalmente recolhidos dos contribuintes no que diz respeito ao DIFAL de ICMS. Mais do que isso, seguiram incrementando inconstitucionalmente seus cofres até o final de 2021. Em seguida, esses mesmos estados, após terem apontado, no Congresso Nacional, a necessidade de respeito à anterioridade tributária, permaneceram cobrando o DIFAL tal como antes, mesmo que o exercício de 2022 tenha se iniciado sem qualquer lei complementar disciplinadora de tal cobrança. Agora, vão à Suprema Corte para, perante todos nós, pedir que a guardiã da Constituição lhe autorize a machucar uma cláusula pétrea e, ainda por cima, que censure o Congresso Nacional por tomar como referência na elaboração da norma um precedente vinculante da Suprema Corte. Como algo assim ainda é possível?

Atribui-se a Mark Twain a famosa frase de que a história não se repete, mas ela, frequentemente, rima. Quando particulares suplicam à sua Suprema Corte para que, nas relações de sujeição que mantêm com o Estado, se imponha o respeito a cláusulas pétreas, ouve-se uma rima, quase um eco de todos esses séculos em que os ordenamentos jurídicos se aperfeiçoaram incrementando as salvaguardas dos contribuintes diante da sabida necessidade de arrecadação dos Estados.

Essa história, caso se pretenda continuá-la, não se faz sem a necessária preservação da autoridade de julgamentos e do respeito à fundamentalidade de determinadas disposições constitucionais. O DIFAL veicula uma dessas oportunidades históricas de reafirmação do plexo de direitos e garantias conferidas aos contribuintes, por um lado, e, do outro, do dever de pacificação social e de orientação institucional que reside dentre os misteres do Supremo.

________________

1 São eles: Paraíba, Roraima, Mato Grosso Sul, Rio Grande do Norte, Pará, Ceará, Acre e Minas Gerais.

2 ADIn nº 939 (Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 18/3/94).

3 “Violação dos princípios do contraditório e da ampla defesa quando o julgamento da causa depender de prévia análise da adequada aplicação das normas infraconstitucionais. Extensão do entendimento ao princípio do devido processo legal e aos limites da coisa julgada.”

Saul Tourinho Leal
Saul Tourinho Leal, é doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP, tendo ganhado, em 2015, a bolsa de pós-doutorado Vice-Chancellor Fellowship, da Universidade de Pretória, na África do Sul. Foi assessor estrangeiro da Corte Constitucional sul-africana, em 2016, e também da vice-presidência da Suprema Corte de Israel, em 2019. Sua tese de doutorado, "Direito à felicidade", tem sido utilizada pelo STF em casos que reafirmam direitos fundamentais. É advogado em Brasília.

Cairo Trevia Chagas
Advogado na Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia, graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), graduando em Ciências Contábeis pela Universidade de Brasília (UNB), pós-graduando em Direito Tributário e Contabilidade Tributária pela Faculdade Brasileira de Tributação (FBT), membro-consultor da Comissão Especial de Direito Tributário do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CEDT/CFOAB)

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