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A mulher da casa abandonada: desdobramentos e aspectos jurídicos do caso

A ação policial reuniu muitas pessoas, influencers, defensores dos direitos dos animais e diversos jornais e telejornais que acompanharam a invasão.

22/9/2022

Se você estava atento às redes sociais ou acompanhou os noticiários nos últimos meses, especialmente, a partir de junho, você deve ter ouvido falar  sobre o Podcast “A mulher da casa abandonada”. A produção é do jornalista Chico Felitti, da Folha de São Paulo e conta a história de Margarida Bonetti, acusada por submeter uma empregada à condição análoga à escravidão.

A ampla divulgação do podcast - que contou com mais de 4 milhões de ouvintes -  ocasionou em novas denúncias de situações similares. Mas também aconteceram outras situações em que, nas palavras de Chico para o Podcast de notícias “Café da manhã”, também da Folha de São Paulo:

"Foi se derivando e se tornando outra coisa que fugiu ao nosso controle…, Mas é uma questão de alcance, a partir do momento que milhares de pessoas se interessam pelo assunto, vão se criando várias narrativas paralelas."

Acontece que, a história possui diversos desdobramentos, alguns inclusive descobertos após o fim da investigação do jornalista, como, exemplo, o fato de que houve sim uma investigação na justiça brasileira sobre o caso.

Este artigo visa, então, discutir estes pontos e agrupar as opiniões de especialistas jurídicos e da legislação sobre o caso. Confira!

O caso: Margarida Bonetti

Em resumo, o podcast conta como o jornalista descobre que, a casa abandonada de Higienópolis, na verdade, não se trata de uma casa abandona. Margarida Bonetti mora ali. Essa descoberta leva o jornalista a buscar saber mais sobre a moradora da casa.

É quando descobre quem é Margarida Bonetti, sua família e o crime cometido pela mesma.

Bonetti é herdeira de uma família importante da elite paulistana. Entretanto, o que chama atenção é sua história fora do Brasil. Margarida foi acusada de manter uma empregada em condições análogas à escravidão.

O então marido de Margarida foi julgado e recebeu condenação pelo crime, pelo qual ficou preso por 6 anos. Entretanto, Margarida voltou para o Brasil e não recebeu condenação alguma.

A princípio, Felitti acreditava que Margarida havia fugido e sequer sido julgada em território brasileiro. Mas, após o fim do Podcast, ele descobriu que houve sim investigações do caso, mas por falta de provas, o caso foi encerrado.

Aspectos jurídicos do caso da mulher da casa abandonada

Segundo Chico, existe um inquérito que mostra que sim, a justiça brasileira fez uma investigação sobre Margarida Bonetti.

Ocorre que, segundo reportagem do fantástico, em 2000, um representante da embaixada dos Estados Unidos disse à Polícia Civil que o governo americano pediria extradição de Margarida e que todas as informações referentes ao caso seriam enviadas a justiça brasileira.

Entretanto, em 2003, o juiz do caso pediu que o ministério da justiça intervisse na investigação, uma vez que, a embaixada americana não respondeu às solicitações da justiça brasileira. Seis meses depois, outro representante da embaixada americana disse que, de fato, o governo não havia enviado as informações necessárias para que o caso fosse a julgamento  no Brasil.

Além disso, a polícia civil brasileira não conseguiu encontrar Margarida Bonetti.

Em 2005, o delegado optou por fazer o indiciamento direto de Margarida Bonetti. Este ato encontra-se na lei 12.830, de 2013, que dispõe em seu 6º parágrafo:

"§ 6º O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias."

Mas, o promotor do caso não concordou com o indiciamento e pediu arquivamento do caso. Isso porque, segundo ele, não existiam provas de que Margarida houvesse entrado no Brasil, e portanto, não poderiam indiciá-la. O Juiz concordou com a promotoria e arquivou o caso.

O professor de Direito Penal da USP, Gustavo Badaró, informou em entrevista que, sem alguns elementos, como depoimentos de testemunhas, imagens da casa, depoimento da vítima, entre outros, de fato, a autoridade brasileira não podia fazer muita coisa.

A prescrição do crime

Além de todos esses desdobramentos, como Felitti comentou no podcast “Café da manhã", da Folha de São Paulo, novos acontecimentos marcaram a história da mulher da casa abandonada. Isso porque, no dia 20 de julho de 2022, a polícia civil entrou na casa onde vive Margarida.

A ação policial reuniu muitas pessoas, influencers, defensores dos direitos dos animais e diversos jornais e telejornais que acompanharam a invasão.

Muitas pessoas em todo o Brasil, acreditam ser injusto o fato de Margarida nunca ter pagado pelo crime e que a polícia deveria, hoje, iniciar nova investigação.

Acontece que, Margarida Bonetti não deve nada a justiça brasileira. Isso porque, o crime cometido há mais de dez anos já prescreveu.

Segundo o código penal, o caso de margarida enquadra-se na prescrição antes de trânsito em julgado, assim:

"Prescrição antes de transitar em julgado a sentença

 Art. 109.  A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1º do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se:

         I – em vinte anos, se o máximo da pena é superior a doze;

         II – em dezesseis anos, se o máximo da pena é superior a oito anos e não excede a doze;

         III – em doze anos, se o máximo da pena é superior a quatro anos e não excede a oito;

         IV – em oito anos, se o máximo da pena é superior a dois anos e não excede a quatro;

         V – em quatro anos, se o máximo da pena é igual a um ano ou, sendo superior, não excede a dois;

         VI – em 3 (três) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano."

O crime prescrevendo, extingue-se a punibilidade, segundo o mesmo código:

"Extinção da punibilidade

        Art. 107 – Extingue-se a punibilidade:

(...)

IV – pela prescrição, decadência ou perempção;"

Do crime

Quando um cidadão brasileiro comete um crime nos Estados Unidos – ou qualquer outro país – e volta a seu país de origem, seja por vontade própria ou por extradição, ele não será necessariamente julgado no seu país de origem.

Isso porque, existem diferenças nas legislações. Ou seja, o que é crime em um país, pode não ser em outro. Apesar disso, o crime cometido pela mulher da casa abandonada, Margarida Bonetti, é crime tanto nos Estados Unidos, como no Brasil e está disposto no art. 149 do Código Penal:

"Redução a condição análoga à de escravo

         Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:

         Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

         § 1º Nas mesmas penas incorre quem:

         I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;

         II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

         § 2º A pena é aumentada de metade, se o crime for cometido:

         I – contra criança ou adolescente;

         II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.".

É importante atentar-se ainda que, no § 2º, a pena para quem mantém uma pessoa em situação análoga à escravidão aumenta, segundo o inciso II do artigo supracitado.

Aline de Souza Pereira
Analista de Conteúdo do SAJ ADV. Graduanda de Jornalismo na UFSC.

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