Para além das questões propriamente arquitetônicas, o profissional da Arquitetura deve ter diversas preocupações antes de iniciar a atividade projetual. Dentre elas estão as preocupações jurídicas, que se colocam ao lado das financeiras (orçamento), das características geológicas do solo (sondagem), etc. Juridicamente, antes de iniciar um projeto, o arquiteto deve fazer três perguntas fundamentais, a saber:
- o solo será edificável e poderá ser ocupado pela obra edilícia?
- se sim, qual o potencial construtivo do lote abstratamente considerado?
- quais as demais regras de uso e ocupação desse lote?
Estas perguntas sucessivas devem ser feitas para buscar a inserção harmônica do edifício (a parte) no contexto da cidade (o todo), a partir daquilo que está explicitado na lei, notadamente no plano urbanístico diretor - que visa promover a ordenação o espaço urbano. Para tanto, o Poder Público deve disciplinar por norma jurídica o aproveitamento urbanístico do solo em cada zona da cidade, definindo assim o conteúdo do direito de propriedade de cada lote, unidade edilícia mínima.
A primeira daquelas perguntas é relativa à natureza edificável ou não do solo pretendido: pode-se ocupá-lo com alguma obra edilícia lançada ao solo natural ou não? De fato, há diversos casos de solo urbano não edificáveis, como, por exemplo, áreas de preservação permanente (APPs, previstas no “Código Florestal”), áreas envoltórias de bens tombados por razões naturais ou culturais, faixas não edificáveis (da lei 6766/79, art. 4), as praias marítimas (bens da União), as unidades de conservação da natureza, etc. Em muitas hipóteses, pode haver propriedade privada do solo mas ele não será edificável total ou parcialmente, conforme a circunstância de cada caso. Ocorre aquilo que na Itália se dá o nome de “vincolo di inedificabilità” do solo motivado por razões várias: ambientais, paisagísticas, patrimoniais, até sanitárias. E, assim, a obra abusivamente feita deve ser demolida sobretudo em se tratando de uma nova edificação1.
No Brasil, é importante destacar que construção em solo não edificável constitui crime tal como prevê o art. 64 da lei 9605/98, que é a lei dos crimes ambientais. Diz o texto da norma: “Promover construção em solo não edificável, ou no seu entorno, assim considerado em razão de seu valor paisagístico, ecológico, artístico, turístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida: Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa”. O arquiteto pode ser enquadrado neste crime se for o responsável técnico pela obra ilegal que está sendo erguida – o que constitui uma das formas de reação do ordenamento jurídico diante do abuso edilício.
Em segundo lugar, o arquiteto deve verificar o potencial construtivo do lote para fazer a adequação entre ele e o programa de necessidades definido pelo proprietário. Sendo grande a discrepância, parece perfeitamente necessário que o proprietário reconsidere ou o lote ou o programa. Para verificar o potencial construtivo, o arquiteto deverá fazer a multiplicação simples da área do lote pelo coeficiente de aproveitamento, que é um fator que pode mudar em cada zona, conforme o plano urbanístico assim o determine. O coeficiente é definido pela lei local de cada Município brasileiro ou por seu plano urbanístico diretor.
Se houver mesmo necessidade de área construída maior para o desenvolvimento do projeto o arquiteto deverá verificar dois aspectos: (a) se não é possível a compra de potencial construtivo da Prefeitura, utilizando-se do instrumento da outorga onerosa do direito de construir ou, então, do CEPAC – Certificado de Potencial Construtivo Adicional, se o lote se inserir em perímetro de operação urbana consorciada, ambos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade; (b) verificar se houve o desconto correto das chamadas “áreas não computáveis” no cálculo do potencial construtivo. Isto porque, para incentivo de certos tipos de edifício ou aspectos internos da edificação, os Municípios permitem a exclusão de certas áreas no cálculo do potencial, como, por exemplo, a caixa de escada, o espaço de estacionamento para até um veículo por unidade habitacional ou a fachada ativa. No Município de São Paulo, as dezesseis hipóteses de exclusão do potencial são definidas pelo art. 62 da lei 16402/16 (LPUOS, lei de parcelamento, uso e ocupação do solo) e não as esgotam porque a legislação edilícia contém outras (cf. inciso VI). Aquela lei paulistana inclui no rol as “áreas ocupadas por vestiário de usuários de bicicletas” (inciso XV), exatamente para incentivar este tipo de modal de transporte na cidade.
Sendo incentivo para a permeabilidade visual da via ao evitar a formação de planos fechados na interface entre lote e logradouro, a fachada ativa, assim como outras hipóteses previstas em cada lei local de urbanismo, não consome potencial construtivo. Em Curitiba, a lei 15.824/21 – que dispõe sobre prêmios e incentivos construtivos (e se trata disso exatamente) – dispõe, no art. 15, que “como incentivo à implantação da fachada ativa, será concedido o acréscimo de um (1) pavimento que não será computado no coeficiente de aproveitamento nem na altura da edificação”2. O arquiteto poderá optar por ela, no projeto, para ampliar o potencial construtivo do lote e assim cumprir o programa de necessidades pretendido.
Em comparação com o requisito anterior, verifica-se que a natureza não edificável do lote pode se dar mediante lei editada por qualquer esfera da federação brasileira, enquanto o coeficiente, por se tratar de instrumento relativo à ordenação do solo urbano, é definido especificamente pela lei municipal (art. 30/VIII da Constituição Federal) – e só por ela -, inclusive as possibilidades de exclusão do cálculo. Verificado que o lote é edificável e qual seu potencial construtivo exato, em metros quadrados, o arquiteto deve passar para a terceira etapa que são as regras de uso e ocupação, também de competência municipal.
Primeiro as regras de ocupação. Deve o profissional conhecer as várias regras de ocupação definidas todas normalmente pela lei de zoneamento de ocupação. Assim, por exemplo, recuos (lateral, frontal), taxa de ocupação (percentual da superfície do lote que pode ser ocupado com a projeção horizontal da edificação), gabarito de altura máxima, etc. São várias regras que visam estabelecer certa homogeneidade em cada zona urbana, em consonância com a capacidade da infraestrutura existente. De outro lado, deve verificar também as regras de uso porque o arquiteto não poderá projetar um empreendimento comercial, por exemplo, em zona onde ele não é permitido, o que lhe cumpre verificar antes de se lançar à atividade projetual. Neste caso, haveria uma falta técnica, enquadrando-se ele, por completo, no disposto no art. 18/IX da lei 12.378/10 (lei do CAU) porque estará deixando de “observar as normas legais e técnicas pertinentes na execução de atividades de arquitetura e urbanismo”. Eventuais honorários recebidos deveriam até mesmo ser devolvidos.
Aquelas três questões não devem ser respondidas previamente como mero “capricho” do Poder Público para cercear a atividade criadora do arquiteto. Não: isto não será verdade. Tais regras são definidas por lei, democraticamente, para promover, como dito acima, a inserção harmônica do edifício na cidade. Este é o objetivo. A lei não incide sobre todos os comportamentos humanos mas sobre alguns comportamentos apenas na medida em que eles tenham impacto social negativo – como ocorre no aproveitamento urbanístico ilegal ou excessivo do lote, que afeta o tecido urbano por completo.
Em outras palavras: se uma edificação desrespeita a lei, inserindo-se desarmonicamente no espaço, ela estará desrespeitando o plano urbanístico que a comunidade definiu como seu, podendo causar enormes consequências negativas no entorno. Defender a aplicação da lei urbanística é defender, afinal, a própria cidade, a democracia urbana. Vejamos, por exemplo, o desenvolvimento de projeto que promova adensamento edilício intenso num miolo de bairro, composto apenas por vias locais: é um caso paradigmático que se vê, no entanto, com certa frequência.
Neste caso, o caos urbano, ao invés de combatido – porque é o oposto da ordenação exigida pela Constituição -, seria gerado pelo próprio Município caso permitisse a construção de prédios altos em locais inadequados, em bairros antigos e sem a infraestrutura necessária. Por óbvio, a elevação da densidade só deveria ser permitida ao longo de vias arteriais, de avenidas, jamais em vias de estrutura local. Isto parece claro mas acontece que, sem planejamento urbano real e efetivo, tudo é possível. Os chamados “eixos viários” é que poderiam ser adensados e jamais o coração de bairros antigos e sem acesso a vias arteriais.
As consequências do desrespeito a tais regras são distintas: no primeiro caso, temos um crime, como já dito, sanção mais grave que o Direito consagra. No segundo e terceiro casos, caberá sanção administrativa pela infração do ordenamento urbano: multa, embargo de obra e o seu ajustamento ao que manda a lei, eventualmente com demolições de parte já construída que a viole. No caso de uso em desconformidade com a lei, caberá, além de multa, eventual interdição da atividade ilegal na zona em que se situa. Tais sanções são administrativas e dependem da verificação do que manda a lei municipal.
A finalidade do Direito é tornar possível a convivência humana (“ubi societas, ibi jus”). A finalidade das normas urbanísticas – e do Direito Urbanístico – é tornar possível a convivência humana dentro do espaço das cidades, isto é, retirando o arbítrio individual daqueles que pretendam intervir no espaço urbano, espaço coletivo por natureza. Daí que, antes de iniciar o projeto edilício, o arquiteto deve verificar as normas jurídicas que incidem sobre o lote, tornando possível – ou não – a edificação pretendida ou projetada. Para repetir a frase de Ortega Y Gasset, o lote é o lote e as determinações jurídicas que incidem sobre ele e que precisam ser consideradas e obedecidas, como deveres, pelo profissional da Arquitetura.
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1 Sobre o tema, v. a recente sentença 4700 do Conselho de Estado, de maio de 2022 (https://www.giustizia-amministrativa.it/portale/pages/istituzionale/visualizza?nodeRef=&schema=cds&nrg=202107286&nomeFile=202204700_11.html&subDir=Provvedimenti).
2 A redação da norma é equivocada: deveria dizer que a fachada ativa não será computada no cálculo do potencial construtivo do lote e nem no gabarito de altura máxima da edificação.