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Alguns apontamentos sobre o projeto de Código de Defesa do Contribuinte em trâmite no Congresso Nacional

Espera-se que o Poder Legislativo reflita sobre a oportunidade de reconstruir, sob regramento novo e conciliatório, o relacionamento entre fisco e contribuinte

21/9/2022

O empreendedor no Brasil seguramente não almeja apenas uma reforma tributária que leve à singela redução da carga fiscal. Embora isso seja desejável, no cotidiano da empresa boa parte dos problemas em matéria tributária surgem, antes de tudo, pela presunção de má-fé com que o contribuinte geralmente é tratado pelo fisco, que se revela na falta de compreensão fazendária quanto aos enormes ônus que recaem sobre os ombros do pagador de impostos no cumprimento da inútil complexidade de regras de nosso sistema tributário – o que amplia os riscos de multas e, em muitos casos, inviabiliza o próprio negócio.

Essas contingências incluem a dificuldade no cálculo dos impostos, por exemplo, em decorrência da costumeira superposição de incidências (vários tributos são “embutidos” propositalmente na base de cálculo uns dos outros), além de figuras grotescas como a tão disseminada substituição tributária (exigência antecipada do imposto correspondente aos fatos geradores de toda a cadeia econômica, com margens de lucro arbitradas de maneira errática em cada região do país), passando pela multiplicidade e redundância de obrigações acessórias, bem como as pesadíssimas multas aplicadas, no mais das vezes, sem levar em conta a intenção do agente – em situações onde, na verdade, o contribuinte é inevitavelmente induzido ao erro pelo cipoal burocrático de um sistema fazendário que investe muito em tecnologia mas dela não consegue extrair o mínimo que precisa para ser eficiente.

O empresário segue tentando recolher em paz os impostos devidos e luta para minimizar os riscos de autuação (enfrentamento desigual pois depende da contratação de grande contingente de profissionais especializados no assunto – o que é um luxo para pequenas e médias empresas). Neste cenário, portanto, até merece aplauso a urgência, dada pelo Poder Legislativo, no trâmite do Projeto de Código de Defesa do Contribuinte (PLP 17/22).

No que tange ao conteúdo de proteção do cidadão que paga impostos, a bem da verdade, não há grande dose de ousadia no projeto, pois a oportunidade de um código a respeito de tema tão relevante poderia ser melhor aproveitada para que a lei trouxesse ainda mais garantias do que aquelas já previstas no ordenamento (há várias redundâncias, como as dos arts. 10 e 11, 14 e 15, por exemplo).

Naquilo que poderia ousar, o projeto em tramitação prevê que a boa-fé do contribuinte deve ser presumida no relacionamento com o fisco (art. 7º). Ninguém discorda disso, mas para que esse comando não vire “letra morta” (nem seja mera repetição do que já vem previsto, dentre outros, na lei 9.784/99, arts. 2º e 4º), seria mais eficaz uma revisão (ou até mesmo a revogação) do art. 136 do Código Tributário Nacional – vala comum com base na qual o fisco sempre exige penalidades sem levar em conta o dolo: “a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente”.

O ideal seria que a previsão de regra segundo a qual o auto de infração só deveria ser lavrado se precedido, tanto quanto possível, de tratativas para uma transação fiscal (após a devida orientação por parte da autoridade fazendária e a leal colaboração do contribuinte), particularmente quando fosse necessário corrigir práticas adotadas incorretamente no passado – pelo menos em circunstâncias corriqueiras onde o descumprimento de normas fazendárias não decorresse de comprovado dolo.

Neste particular o projeto prevê uma “defesa prévia” do contribuinte antes da lavratura do auto de infração (art. 16), mas tal medida tende a se tornar um simples rito de passagem: o agente fazendário, no mais das vezes, manterá a postura de lavrar o auto de infração, qualquer que seja a “defesa prévia” – e aquilo que for alegado nessa defesa servirá, quando muito, para que o auditor fiscal tenha a oportunidade de corrigir erros que cometeria na lavratura do auto de infração, pois sempre terá interesse em ver o lançamento prosperar inteiramente na esfera administrativa (como qualquer pessoa tem interesse em ver seu trabalho ser prestigiado na instituição à qual pertence).

A disponibilidade fazendária para orientar o contribuinte é escassa porque não há estímulo à pacificação dos litígios em matéria tributária. Ao contrário, a mentalidade fiscal no Brasil, em grande parte, sempre prestigiou a cobrança de multas pelo agente fazendário como se fosse até mais importante que o próprio imposto. Tanto é assim que a quantidade e o valor das penalidades são, em muitos casos, critérios de avaliação da produtividade do servidor, chegando-se ao ponto de pagamento de bônus de eficiência para estimular as autuações – ao invés de se estimular a simplificação das normas e a orientação fazendária que podem contribuir, com muito mais eficácia, para a adesão do empresário à regularização fiscal.

Curioso observar que a penalidade nem de longe é o fator determinante para aumentar a arrecadação, mas quando exigida em excesso serve de elemento desnecessário de pressão adicional sobre o já sobrecarregado pagador de impostos, diante da dura realidade que é enfrentada pelo destinatário das severas regras fiscais das três esferas de governo.

Há um círculo vicioso, portanto, onde o fisco não se beneficia tanto quanto poderia das ferramentas de informática de que dispõe, além do que tem pouco empenho na simplificação dos deveres instrumentais a que se submete o contribuinte e não é estimulado a orientar antes de autuar. Uma postura fazendária mais dirigida à prévia orientação antes da autuação poderia trazer muito mais chances de fidelizar o contribuinte ao correto cumprimento de suas obrigações tributárias, diminuindo a litigiosidade nessa área. Isso sem considerar que um acordo com o fisco para evitar multas sobre fatos ocorridos no passado (sem dispensa do pagamento do imposto devido) poderia viabilizar a necessária segurança jurídica para o futuro do empreendimento – o que estimula novos empregos, investimentos privados e o comprometimento do contribuinte com a própria arrecadação.

No projeto, ademais, há regras que deixam dúvida sobre se a ideia é de fato assegurar os direitos do contribuinte, em especial os direitos mais relevantes em face das situações mais graves. O art. 9º garante a ampla defesa, o contraditório e o duplo grau no processo administrativo (o que é redundante, porque já está previsto, por exemplo, na lei 9.784/99), mas curiosamente excepciona desses princípios a pena de perdimento (prevista no decreto-lei 37/66 para diversas hipóteses de infrações aduaneiras). Até hoje o perdimento é aplicado em instância única na esfera administrativa – e por isso mesmo o projeto deveria inovar, sobretudo para essa sanção gravíssima em matéria aduaneira, assegurando também aqui as garantias que já são normalmente aplicadas em autuações corriqueiras.

Espera-se que, para além da urgência na votação do PLP 17/22 (Código de Defesa do Contribuinte), o Poder Legislativo reflita sobre a oportunidade de reconstruir, sob regramento novo e conciliatório, o relacionamento entre fisco e contribuinte – com o objetivo de que a paulatina simplificação do sistema tributário e o diálogo constante entre as partes sejam inseridos como ferramentas úteis (mais do que a imposição de penalidades) para viabilizar negócios e estimular a arrecadação.

Rogério Pires da Silva
Sócio do escritório Boccuzzi Advogados Associados.

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