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O que fazer quando a criança ou adolescente não satisfaz à expectativa da família adotante?

A entrada na família substituta não pode ser uma experiência emocional desagradável para a criança, uma vez que os primeiros anos de vida são decisivos para orientar e conduzir a sua evolução no desenvolvimento e construção da personalidade.

20/9/2022

“Há que se cuidar do broto, para que a vida nos dê flor e fruto.” Milton Nascimento

Introdução

Recentemente tivemos notícia da desistência da guarda de duas irmãs na cidade de Uberaba/MG, causando repulsa em muita gente. O motivo alegado foi a falta de criação de vínculos do casal com as meninas. Trataremos do caso em tópico específico.

A convivência familiar é um direito da criança e do adolescente, em família natural ou substituta. A admissão em família substituta dá-se por meio da guarda, tutela ou adoção.

A guarda e a tutela podem ser revogáveis, no entanto, a adoção torna-se ato irrevogável após o trânsito em julgado da sentença judicial, atribuindo ao adotado a condição de filho, o que o desvincula da família biológica, e conferindo à nova relação jurídica os mesmos direitos e deveres verificados entre pais e filhos biológicos.

Desse modo, a família substituta adquire voluntariamente o poder familiar e assume a responsabilidade de oferecer a criança proteção e afeto. Contudo, o que fazer quando a criança ou adolescente não satisfaz à expectativa da família, seja por indisciplina, questões de saúde, aprendizado, desarmonia entre filhos adotivos e biológicos? É admissível devolvê-lo? Há danos para a criança? É cabível indenização? Em caso afirmativo, a quem deve ser destinada? Quem não recebe amor é capaz de dar amor? (VIEIRA; MUSTO, 2014)

Quando a família substituta desiste da criança, por não atender mais suas aspirações, ela se torna tendente à devolução. Assim procedendo, diversos são os efeitos psicológicos sofridos pelo infante com os atos de desacolhimento e com a devolução, cujas sequelas são insupríveis e irremediáveis.

Família Substituta e o Poder Familiar

A infertilidade, o temor da solidão na velhice, a substituição de um filho falecido, solidariedade à criança ou à sociedade, alguém para dividir as tarefas e fortuna, dentre outros fatores, são motivos que levam alguém a querer ter a guarda ou adotar um filho. É possível, entretanto, que o adotante não saiba qual a sua verdadeira razão para se candidatar à adoção. O arrependimento poderá ocorrer, e ele terá que saber lidar com o fracasso, caso a criança não corresponda com o que foi idealizado.

A criança deve ser aguardada, planejada, pois compartilhará da vida da família. Em geral, o histórico destas crianças é bastante triste, uma vez que foram vítimas de violências, negligências e abusos. Muitos são filhos biológicos de pais alcoólatras ou usuários de drogas e foram abandonados à própria sorte. Boa parte não se encaixa nas prioridades da pretensa família, que aceitaria certas particularidades nos filhos biológicos, mas nunca nos adotivos.

Segundo dispõe art. 46, caput e § 4º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, o processo de adoção será precedido de estágio de convivência entre a família e o filho adotivo, acompanhado por profissionais da Vara da Infância e da Juventude, como psicólogos e assistentes sociais, para garantia do direito à convivência familiar. A colocação em família substituta somente será deferida quando manifestada a compatibilidade com a criança e a conjuntura de uma atmosfera familiar apropriada.

Consoante ressalta Tânia da Silva Pereira (2012, p. 347), acolher é dar carinho, atenção,  aconchego; é auxiliar a criança e o adolescente a serem capazes de atender as próprias necessidades, tornando-se responsáveis por sua própria vida. O que acolhe deve dar atenção integral, auxiliar e aceitar o outro de modo absoluto; é ouvir, sem julgar, mesmo que divirja; por fim, é estar presente para o outro, com bondade e compreensão.

O ingresso em família substituta não pode ser traumático para a criança, uma vez que os primeiros anos de vida são cruciais para direcionar o seu desenvolvimento e constituição da personalidade e identidade.

Efeitos psicológicos causados na criança devolvida

A rebeldia e a indisciplina são resultantes da insegurança, da falta de referencial motivado pela imaturidade. A criança deve se sentir amada, pois o sentimento de rejeição é uma marca que ela já carrega consigo.  Ela espera ter família, lar, proteção, carinho e amor. Da criança se espera  disciplina e afeto. No entanto, sentimentos não são inatos e, por vezes, a criança não corresponde às expectativas da família, que conjectura a probabilidade de devolução da criança.

Nesse situação, elucida Maria Tereza Maldonado (2001, p. 93) que “[...] o ódio por ter sido ‘jogada fora’ contribui para que ela se sinta desprezível, com dificuldade de dar e de aceitar carinho. [...] sente-se horrível, esmagando todo mundo, sem conseguir sentir nem receber amor e, ao mesmo tempo, ansiando por isso”.

É possível também que a criança rejeitada pela família  sofra discriminação em relação ao filho biológico, e, quando o conflito prossegue, seja advertida com a devolução. O modo de tratar com  desigualdade, intolerância, além da cominação de repreensão e punição, pode ocasionar graves danos e traumas psicológicos.

Muitas destas crianças já passaram por diversos lares e não é nada fácil enfrentar pela segunda, terceira, quarta vez casos de rejeição e desamparo, chegando a pensar não ser digna de uma família, suportando danos morais e psicológicos irreparáveis.

Responsabilidade civil pelos danos causados ao filho adotivo devolvido

Se observarmos o disposto nos arts. 186 e 927 do Código Civil, concluiremos pela existência de responsabilidade civil quando ocorre a violação do dever jurídico e o dano, gerando o dever de indenizar. Art. 186: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Art. 927: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.  O dano moral sucede no campo subjetivo, ou seja, na parte mais íntima da personalidade da criança ou do adolescente, verificando-se que a devolução origina traumas psicológicos intensos.

Em 2011, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina  condenou uma família adotiva a pagar indenização por danos morais a dois irmãos adotados e devolvidos, pelas práticas de maus-tratos físicos, morais, castigos imoderados, abuso de autoridade, tratamento desigual e discriminatório entre os filhos adotivos e o filho biológico.

Os dois irmãos foram adotados em 2004. Contudo, a mãe adotiva queria somente a menina, então com três anos, e não o menino, com seis anos, uma vez que já possuía um filho biológico. Aceitou adotar os dois, por não poder separar os irmãos. Entretanto, segundo consta nos autos, a mãe não criou fortes vínculos de afeto com o menino, rejeitando-o e discriminando-o em relação ao filho biológico.

Depois de seis anos da adoção, os pais adotivos quiseram devolver o menino, porém foram destituídos do poder familiar em relação aos dois filhos adotivos e condenados a pagar indenização por danos morais, no valor de R$ 80.000,00. Vejamos o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina:

APELAÇÃO CÍVEL. Poder familiar. Destituição. Pais adotivos. Ação ajuizada pelo Ministério Público. Adoção de casal de irmãos biológicos. Irrenunciabilidade e irrevogabilidade da adoção. Impossibilidade jurídica. Renúncia do poder familiar. Admissibilidade, sem prejuízo da incidência de sanções civis. Aplicação analógica do art. 166 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Perda do poder familiar em relação ao casal de irmãos adotados. Desconstituição em face da prática de maus-tratos físicos, morais. Castigos imoderados, abuso de autoridade reiterada e conferição de tratamento desigual e discriminatório entre os filhos adotivos e entre estes e o filho biológico dos adotantes. Exegese do art. 227, § 6º, da Constituição Federal c/c arts. 3º, 5º, 15, 22, 39, §§ 1º e 2º, e art. 47, todos do Estatuto da Criança e do Adolescente c/c arts. 1.626, 1.634, 1.637 e 1.638, incisos I, II e IV, todos do Código Civil. Manutenção dos efeitos civis da adoção. Averbação do julgado à margem do registro civil de nascimento dos menores. Proibição de qualquer espécie de observação. Exegese do art. 163, parágrafo único, do Estatuto da Criança e do Adolescente c/c art. 227, § 6º, da Constituição Federal. Dano moral causado aos menores. Ilícito civil evidenciado. Obrigação de compensar pecuniariamente os infantes. Aplicação do art. 186 c/c art. 944, ambos do Código Civil. Juros moratórios. Marco inicial. Data em que a sequência de ilicitudes atinge o seu ápice, matizada, no caso, pelo abandono do filho adotado em Juízo e subscrição de termo de renúncia do poder familiar. Exegese do art. 398 do Código Civil em interpretação sistemática com o art. 407 do mesmo diploma legal. Princípio da congruência. Pertinência entre o pedido e o pronunciado. Necessidade de flexibilização e relativização das regras processuais clássicas em sede de Direito da Criança e do Adolescente. Mitigação da disposição contida no art. 460 do Código de Processo Civil. Vítimas que, na qualidade de irmãos biológicos e filhos adotivos dos réus, merecem receber, equitativamente, a compensação pecuniária pelos danos imateriais sofridos. Hipoteca judiciária. Efeito secundário da sentença condenatória. Aplicação do art. 466 do Código de Processo Civil. [...]. (Ap. Cível nº 2011.020805-7, 1ª Câmara Cível, Rel. Des. Joel Figueira Júnior, julgado em 21.06.11).

De igual modo,  o Ministério Público de Minas Gerais ajuizou Ação Civil Pública, solicitando a destituição do poder familiar e o pagamento de indenização por danos materiais e morais acarretados ao filho adotivo que sofrera abandono físico, material e moral. O Tribunal de Justiça, em sede de Apelação Cível, manteve a condenação de indenização aos pais adotivos pelos danos morais causados ao filho adotado e devolvido, nos termos do acórdão:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. ADOÇÃO. DEVOLUÇÃO DO MENOR. RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PAIS ADOTIVOS CONFIGURADA.

Tendo os pais adotivos abandonado o menor, devolvendo-o ao abrigo, não tendo demonstrado sequer um mínimo de esforço para se reaproximarem da criança, patente o dever de indenizar, não só porque o filho foi privado do convívio de seus pais mas, primordialmente, de sua irmã de sangue de quem sente muita saudade. Negligenciando os requeridos na criação e educação do adotado, mormente por terem ciência de que a adoção somente foi concedida para possibilitar o convívio entre os irmãos, ferindo, assim, o princípio constitucionalmente assegurado da dignidade da pessoa humana, cabe-lhes indenizar a criança pelos danos sofridos. (Ap. Cível nº 1.0702.09.568648-2/002, 8ª Câmara Cível, Rel.ª Des.ª Teresa Cristina da Cunha Peixoto, julgamento em 10.11.11)

O pedido foi julgado parcialmente procedente, tendo a Juíza de Primeiro Grau condenado os demandados a pagar, a título de pensão alimentícia, a quantia de 15% do salário-mínimo, até a idade de 18 anos, ou 24 anos, se estudante, ou até ser adotado, e a reparar os danos morais ocasionados ao adotado, no valor de R$ 15.000,00.

 Os réus apelaram, contudo a Relatora negou provimento ao recurso, declarando que a devolução ao abrigo evidenciou que não houve empenho no sentido de reaproximação, portanto, patente o dever de indenizar, uma vez que o menor foi privado do convívio não apenas de seus pais, mas, principalmente, de sua irmã, com quem mantém laços afetivos, negligenciando os requeridos quanto à criação e educação do menor, sobretudo, por saberem que a adoção somente fora concedida, porque manteria juntos os irmãos.

Nesse sentido, continua a Relatora (fls. 321-322):

“[...] patente o ato ilícito perpetrado pelos apelantes, que causou profunda dor moral ao adolescente, acarretando-lhe abalo psicológico que, certamente, não será apagado de sua vida, devendo, por isso, prevalecer a sentença em todos os seus termos, por se mostrar devida, não somente a indenização por danos morais, mas, também, por danos materiais, na forma de alimentos, como meio de propiciar o tratamento psicológico necessário ao desenvolvimento sadio do adolescente e sugerido por todos os profissionais que se manifestaram nos autos.

De acordo com as decisões acima, a criança ou adolescente não é um mero objeto para ser desprezado, rejeitado, quando não mais atende às expectativas da família substituta. Trata-se de um ser humano vulnerável que deve ser resguardado e protegido.

Desistência da guarda de criança em processo de adoção

A desistência da guarda de duas irmãs na cidade de Uberaba-MG causou enorme espanto, provocando reflexões profundas acerca da finalidade do instituto, da real motivação dos pretensos pais para a guarda e da importância da criação de percucientes vínculos afetivos.

Trata-se do caso em que um casal desistiu da guarda das crianças, quatro anos depois de  começar o processo de adoção.  A parelha alegou que não foi possível a criação de vínculos com as meninas. Em 2018, após o convívio de quatro meses com as crianças, o casal  manifestou interesse pela guarda definitiva, ocasião em que recebeu  um parecer positivo do setor psicossocial do Juízo de Sacramento. No entanto, depois de quatro anos, o homem e a mulher decidiram abdicar do processo de adoção, que já se achava na etapa de desfecho. O casal foi ouvido por profissionais da área psicossocial, os quais constataram que havia grande aversão por uma das irmãs. (IBDFAM, 2022)

Em 2017, antes da adoção, consoante o Ministério Público de Minas Gerais, as irmãs tinham sido levadas para um abrigo na cidade de Sacramento, em decorrência da condição de violência e negligência sofridas. Em 2018, o casal conheceu as meninas, iniciando assim o exercício de convivência.

Após manifestação da rejeição, o Ministério Público de Minas Gerais propôs uma Ação Civil Pública solicitando a indenização de mais de 100 mil reais por danos morais e materiais, para cada menina. (IBDFAM, 2022)

Conforme asseverou a promotora de Justiça Ana Catharina Machado, na Ação Civil Pública, a família:

“Tratou os infantes (crianças) como um mero objeto de desejo e não como seres humanos, dependentes de atenção, afeto e amor e sujeitos a traumas e dores diante de situações de abandono e rejeição”. (ISTOÉ, 2022)

Por sua vez, a advogada Silvana do Monte Moreira, que preside a Comissão Nacional de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família, declara que o reabandono representa um retrocesso, uma vez que:

"Pessoas como essas não entendem o que é adoção, não têm consciência do que é parentar com responsabilidade. Filhos, nascidos de nós ou para nós, são iguais em direitos e deveres, não há diferenciação alguma. Descartá-los como objetos é um verdadeiro crime cometido contra sujeitos de direitos absolutamente vulneráveis".

"As condutas omissiva e comissiva desses adotantes, que não cumpriram com seus deveres parentais, causaram violação à integridade corporal, psicológica e emocional  das irmãs, além de terem feito as crianças perderem a chance de serem filhas de outra família, o que configura descumprimento das obrigações parentais e gera direito à indenização por danos morais, emocionais e alimentos".(IBDFAM, 2022)

Infelizmente, o reabandono de crianças tem ocorrido. Aliás, a adoção ocorre por meio de um processo justamente para que haja tempo para o fortalecimento dos vínculos afetivos. Há que se verificar até onde o casal investiu no desenvolvimento e efetivação dos necessários liames afetivos.

Considerações finais

A entrada na família substituta não pode ser uma experiência emocional desagradável para a criança, uma vez que os primeiros anos de vida são decisivos para orientar e conduzir a sua evolução no desenvolvimento e construção da personalidade.

As condenações de indenização aplicadas pelos Tribunais têm o condão de penalidade e são impostas aos pais pelos danos morais e psicológicos causados aos filhos adotados e devolvidos. Esta penalidade serve exatamente para que a devolução não se torne algo corriqueiro na sociedade, uma vez que referido ato é causador de danos irreparáveis à criança ou ao adolescente.

A família substituta perde o poder familiar com relação àquela criança/adolescente, entretanto, subsiste o vínculo jurídico até que ela possa ser novamente adotada, o que confere ao adotado devolvido a garantia, por exemplo, aos alimentos e direitos sucessórios e previdenciários.

No caso de guarda, a falta de criação de vínculos pode ser constatada em prazo bem menor, causando menos danos às crianças com a devolução. Será que estas famílias estavam realmente aptas a assumir a parentalidade responsável.

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IBDFAM. Casal desiste da guarda de duas irmãs após quatro anos do início da adoção. Edição de 15 set. 2022.

ISTOÉ. MG: Depois de quatro anos, casal desiste de adoção e devolve meninas. Edição de 02 set. 2022.

MALDONADO, M. T. Os caminhos do coração. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

PEREIRA, T. da S. Vicissitudes e certezas que envolvem a adoção consentida. PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Família: entre o público e o privado. Porto Alegre: Magister/IBDFAM, 2012.

VIEIRA, Tereza Rodrigues; MUSTO, Fulvia Andreia Tizziani. É possível a devolução de filhos adotivos? Seção Direito e Bioética da Revista Jurídica Consulex, edição nº 414, de 15 de abril de 2014.

Tereza Rodrigues Vieira
Pós-Doutora em Direito Université de Montreal. Mestre/Doutora em Direito PUC-SP. Especialista em Bioética Fac. Medicina da USP. Docente Mestrado Direito Processual e nagraduação em Medicina e Direito

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