Migalhas de Peso

A violência do controle penal e a vítima da delinquência sexual

O nascimento do Direito Penal, mais ou menos como hoje concebido, está inegavelmente associado à usurpação do conflito de seus verdadeiros titulares, vítima e vitimário.

19/9/2022

Apesar de terem se ocupado de promover análises sobre as agências de controle enquanto fatores criminógenos, as criminologias críticas e latino-americanas deram passos importantes à retomada do protagonismo das vítimas nas relações endo e exoprocessuais.

Conforme Salo de Carvalho (2013, p. 226), o processo penal deve ser capaz de garantir os direitos fundamentais enunciados em face dos envolvidos, e essa é uma das marcas do metadiscurso crítico. Além disso, embora tenham lançado outro olhar sobre os sistemas de criminalização, essas vertentes do pensar criminológico não negam que a delinquência é capaz de produzir danos; melhor, que existe uma vítima, detentora de garantias inalienáveis.

Aliás, essa perspectiva estava presente já entre os criminólogos positivistas. Garofalo, a título de exemplo, reconhecia a importância do ressarcimento das vítimas pelos danos suportados, pois entendia o delito como violação de sentimentos de probidade e piedade (delito natural). No que pesem as censuras que possa merecer, Garofalo estava à frente de seu tempo pelo tratamento que dispensara às vítimas dos delitos sexuais, ao dizer que “os crimes contra o pudor” tutelam não os costumes, mas a liberdade individual e o sentimento de piedade (GAROFALO, 1890, p. 78).

Os registros históricos demonstram que a vítima, por longa data, ocupou posição secundária na solução do conflito penal. Para fins de categorização, o tratamento do ofendido pode ser cindido em três períodos: idade de ouro, período de neutralização e período de redescobrimento das vítimas.

O primeiro período foi marcado por um modelo de vingança privada, embasado no preceito da autotutela. Compreende o interregno temporal que se estende dos princípios do agrupamento humano até a baixa idade média. Naquele contexto, ressaltou-se a legitimidade da vítima, como titular do conflito, para empregar o perseguimento do crime e o seu castigo (FERNANDES, 2014, p. 14).

Após a ascensão e o declínio do império romano ocidental, a Europa organizou-se em um modelo de sociedade feudal-estamental, resultado da interação entre os povos germânicos e o que subsistia da sociedade romana. Ocorre que o vácuo de poder, dividido entre o alto clero, as dinastias monárquicas e a incipiente classe burguesa, plasmou a necessidade de recentralização do Estado, o que se deu na forma de monarquias absolutas. Nesse contexto de recrudescimento, as condutas criminais deixaram de ser entendidas como violação da dignidade das vítimas e passaram a ser vistas como direta afronta ao soberano. Em tais moldes, a relação bilateral autor/vítima foi solapada por outra, triangular, entre autor/Estado/vítima, que, “consoante ensina Ferrajoli, marca o nascimento do Direito Penal” (RODRIGUES, 2013, p. 24).

O nascimento do Direito Penal, mais ou menos como hoje concebido, está inegavelmente associado à usurpação do conflito de seus verdadeiros titulares, vítima e vitimário. Na lição de Hulsman (1986, p. 64), é inerente ao sistema de justiça criminal que os conflitos que ocorrem entre as pessoas na sociedade não seja resolvido no interesse dessas pessoas, mas de acordo com as regras de funcionamento do próprio sistema.

O momento histórico de desimportância ficou conhecido como fase de neutralização das vítimas. Deve-se pontuar que não está ele superado. É um acontecimento histórico pendular, uma vez que a atuação de um Estado personalizado perpassa a invasão da esfera de liberdades públicas, em busca de uma segurança enunciada, mas não garantida. O desprestígio das vítimas, usando-se da metáfora de Boaventura (2020), é como os unicórnios de Da Vinci, desaparecem mas continuam vivos, “parecem fracos quando permanecem fortes”.

Não obstante a derrocada das monarquias absolutas, continuou a vítima negligenciada, uma vez que as primeiras construções liberais se voltaram quase estritamente à preservação do criminoso, diante das atrocidades cometidas pelo poder público nas respostas dadas ao fenômeno delitivo (FERNANDES, 1995, p. 16). A relação processual-penal compor-se-ia, a partir de então, por três sujeitos: juiz, acusador e acusado. A retomada do protagonismo da vítima somente ocorreu no século XX, quando as duas grandes guerras modernas (1914-1945) puseram em xeque as pretensões iluministas de humanização e racionalidade, que já não eram bastantes para promover a dignidade da pessoa humana. A partir dali, percebeu-se necessário fortalecer as instâncias internacionais de controle como forma de prevenção dos problemas que exsurgiram, ou ao menos foram visibilizados no novo ocidente, os massacres, os genocídios, a xenofobia, o preconceito e a degradação ambiental (RODRIGUES, 2013, p. 28).

Discute-se na academia qual a referência doutrinária responsável pela sistematização da vitimologia enquanto disciplina autônoma. A primeira corrente atribui-a a Benjamin Mendelsohn, por suas obras Giustiza Penale (1940) e La victmologie (1956). Por outro lado, há quem a impute a Hans Von Henting, que, em 1948, publicou o estudo The Criminal and His Victim (RODRIGUES, 2013, p. 30; FATTAH, 2014, p. 5).

Em um primeiro momento, procurou-se explicar a medida de participação do ofendido na eclosão do evento-crime, estudo atualmente condensado no recorte vitimodogmático da disciplina. Essa abordagem não foi capaz de realizar em favor das vítimas o princípio humanitário, pelo contrário, ensejou verdadeira imagem culpabilizadora do ofendido, muitas vezes, em benefício do infrator (MOLINA, 1998, p. 46).

A vitimologia nasceu oficialmente no âmbito científico em 1979, por ocasião do Terceiro Simpósio Internacional, realizado na Alemanha. Não se olvide, todavia, que, a partir de 1973, no Primeiro Simpósio de Vitimologia, celebrado em Jerusalém, já se haviam apresentado ao mundo os trabalhos inaugurais de Mendelsohn sobre o tema (BERISTAIN, 2000, p. 83). Foi nesse cenário, referido como o redescobrimento da vítima, que o ofendido reconquistou o seu protagonismo no conflito penal. Por outro lado, reputa-se pertinente a sua cisão em dois momentos: a) o redescobrimento da vítima, stricto sensu (1950-1985); b) o novo paradigma vitimológico ou paradigma vitimológico contemporâneo (após 1985). A separação é relevante porque o atendimento ao princípio humanitário no benefício das vítimas só veio a ser ocupação central do estudo vitimológico a partir de 1985, com o advento da 96ª Sessão Plenária da Assembleia Geral das Nações Unidas, onde se instituíram os princípios básicos de justiça relativos às vítimas da criminalidade e do abuso de poder.

Se naquele primeiro momento a vitimologia conservadora voltou seus olhos estritamente à participação vitimal no acontecimento do crime, a partir do conceito de dupla penal, ou, na lição de Manzanera (1999, p. 81), parelha penal, no segundo momento acentuou-se o protagonismo das vítimas como sujeitos de direito: “la víctima en el proceso adquiere relevancia no sólo como testigo de cargo sino también como detentor de un derecho a la reparación del daño”.

O paradigma vitimológico contemporâneo importa-se com a efetivação da dignidade da pessoa humana em benefício dos ofendidos, sob uma perspectiva tríplice: estudo e pesquisa, alterações na legislação e assistência vitimal. A renovação nos quadros conceituais da disciplina é particularmente positiva na esfera da criminalidade sexual, onde as suas propostas, eram de aplicação, no mínimo, temerária.

A nova vitimologia adotou como função central a proteção da vítima e o reconhecimento de seu papel preponderante, bem como a releitura da dogmática penal no sentido de atender às suas expectativas (JORGE, 2005, p. 27). Rompeu-se com o princípio monológico de compreensão do delito para adotar-se um princípio dialógico, cujo resultado é o fortalecimento do “outro” (LARRAURI, 1992, p. 21). Uma das principais contribuições desse modelo foi reconhecer que o sofrimento vitimal não se esgota nas consequências diretas e indiretas do crime, pois ecoa no contato entre as vítimas e a investigação policial, a judicatura e seus grupos de convívio (MOLINA, 1998, p. 84).

Segundo fundamenta Baratta (1993, p. 46), a violência é a suspensão dos direitos humanos. Ensina que a ideia de justiça deve sempre aproximar o direito do ideal da dignidade humana. Carvalho (2009, p. 167) acentua que a intervenção do Estado, na órbita da repressão e da punibilidade, em vez de estar associada à garantia da dignidade humana, demonstra um potencial de romper com a justiça, produzindo ofensa aos direitos de todos os envolvidos, as vítimas, pela usurpação do conflito e a revitimização operada no curso do processo.

Para Baratta (1997, p. 176), a seletividade do sistema, verificada pelos criminólogos críticos, ladeia a imunização de certos grupos hegemônicos. Os operadores do sistema criminal valem-se do não-conteúdo do direito penal, do alegado caráter de fragmentariedade, para deixar de punir quando julgarem conveniente.

Zaffaroni (1988, p. 130) afirma que o sistema penal alcança um número reduzidíssimo de infratores, por critérios seletivos e não repara a vítima, desde os Estados Absolutos, expropriando-lhe a indenização. No campo sexual, isso se reflete em altos números de criminalidade não registrada. Cria-se uma longa distância entre a criminalização primária, mediante a edição da norma penal, e a secundária, consistente na efetiva responsabilização.

Vera Regina é enfática ao dizer que: “o tratamento que o sistema de justiça criminal confere à violência sexual, particularmente ao estupro, pode ser formulado na promessa de punir em definitivo, não há esta punição, e na forma de impunidade imunidade, reafirma-se o continuum e a solidariedade masculina destes controles” (ANDRADE, 2010, p. 99).

No que diz respeito ao vetor da autodeterminação, na lição de Antônio Beristain (2000, p. 105), a vítima, no processo penal, é um convidado de pedra. Não há espaço para a articulação de seus interesses. O que ocorre, em realidade, é que o sistema penal age violentamente também em seu desfavor. Com efeito, pode-se afirmar que existe uma relação intrínseca entre as cifras ocultas da delinquência sexual, a impunidade e a atuação do sistema formal de justiça. Isso porque os operadores da Lei estão imersos em suas estereotipias e projetos de poder, inviabilizando as necessidades do ofendido e rotulando-o de forma demeritória (vitimização secundária).

A vitimologia nesse gênero delitivo recobra a prevenção dos danos suportados pelos ofendidos não somente decorrentes do evento-crime, mas, também, das respostas estigmatizantes dadas pelo subsistema de justiça e pelo sistema social. Além da violação primária, tornam-se vítimas da violência institucional subjacente ao processo, que, a partir de um modelo de sociedade patriarcal, recria e reproduz estereótipos de desigualdade (BARATTA; STRECK; ANDRADE, 1999, p. 113), ou de negação da diferença, que, montados em pretenso discurso igualitário, discriminam, excluem, desidentificam e despersonificam (BARATTA; STRECK; ANDRADE, 1999, p. 60).

De se observar então que, assim como se operou a virada criminológica com a adoção do conceito de reação social (labeling approach), a revolução nos quadros conceituais da vitimologia, notadamente no pertinente à criminalidade sexual, demanda o exame não só dos danos que decorrem diretamente da prática do delito ou a propositura de profilaxias para evitar a vitimação, pois deve considerar ainda a violência do controle penal como fator vitimizante.

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Thales Sousa da Silva
Assessor Judiciário no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, especialista em Direito Penal e Processual Penal pelo Centro Universitário UNA.

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