Discussão frequente na prática jurídica refere-se à possibilidade, ou não, de concurso de crimes entre a corrupção ativa e a lavagem de dinheiro nas hipóteses em que se imputa o pagamento de vantagem indevida ao funcionário público que ocorre com ocultação ou fraude.
Não é nenhuma novidade que, em muitos casos de corrupção, o pagamento de propina a funcionários públicos não ocorre diretamente ao funcionário, e sim com a utilização de sofisticados esquemas que envolvem a participação de terceiros “laranjas” e/ou a utilização de negócios fraudulentos para que a quantia possa chegar ao destinatário final sem levantar muitas suspeitas das autoridades de persecução criminal.
Em casos tais, é comum verificar a dupla imputação de lavagem de dinheiro e corrupção ativa - aos particulares envolvidos na transação. A aplicação cumulada dos tipos penais não nos parece acertada.
Em primeiro lugar porque os valores pagos a título de vantagem indevida representam, para o corruptor ativo, um decréscimo patrimonial, não sendo possível falar-se em produto de crime. Na perspectiva do corruptor ativo, o valor direcionado para o pagamento da vantagem indevida é um mero instrumento do crime, pois não configura benefício auferido com a prática delitiva. E, como instrumento do crime – e não produto – não pode ser objeto material da lavagem de dinheiro. Como ensina Blanco Cordero: Con respecto a los instrumentos (instrumenta sceleris) utilizados para cometer el delito previo, entiende la doctrina mayoritaria que no constituyen objeto idóneo del delito de blanqueo. Son dos las razones fundamentales: una de carácter framatical, porque no se puede decir que tales instrumentos tengan su origen en un delito; y otra de caráter teleológico, porque no es el fin de la norma del blanqueo castigar los comportamientos que recaen sobre dichos bienes.”1
A rigor, o valor correspondente à vantagem indevida é destinado ao corruptor passivo, sendo produto do crime apenas para este. E, importante mencionar, a natureza ilícita somente se verifica quando o destinatário da vantagem indevida tem disponibilidade sobre esta. Neste sentido são os ensinamentos de Nuno Brandão, quando afirma que:
“(...) a corrupção ativa é, por definição, insuscetível de gerar vantagens aptas a serem lavadas. Nesta modalidade de corrupção o corruptor abre mão do bem que forma o suborno, pelo que, como é obvio, deixa essa vantagem de poder ser lavada em seu benefício. Claro que do ato funcional que figura como contrapartida da vantagem poderão resultar benefícios patrimoniais para o corruptor, esses, sim, suscetíveis de serem lavados em seu benefício. Mas o branqueamento da vantagem propriamente dita, a que integra a factualidade típica dos crimes de corrupção, parece-nos só ser cogitável no plano da corrupção passiva (...)”2
No crime de corrupção ativa em transação ativa em transação internacional (CP, art.337-B) ainda há mais uma questão: o tipo penal prevê a modalidade de dar a vantagem indevida, direta ou indiretamente, verbo que não existe no tipo penal de corrupção ativa simples, limitado aos atos de prometer ou oferecer a propina (CP, art.333).
Nesse caso, a transferência de recursos por interpostas pessoas ou estruturas integra o tipo penal do art.337-B, uma vez que o termo indiretamente abriga todas essas modalidades de repasse. A entrega dos valores indevidos, ainda que de forma indireta, é uma das etapas do crime de corrupção e não pode ser apenada como lavagem de dinheiro.
Esse foi o entendimento recente da 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região no julgamento da Apelação 0022500-03.2014.4.02.5101/RJ. No caso concreto, funcionários de uma empresa brasileira foram acusados de oferecer, prometer e efetivamente pagar vantagem indevida a um funcionário público no exterior. De acordo com a acusação, o pagamento ocorreu por intermédio de contratos fraudulentos de representação comercial firmados com terceiros, que seriam responsáveis por repassar os valores ao funcionário público estrangeiro. Por estes fatos, os envolvidos foram denunciados e condenados pelos crimes de corrupção ativa em transações internacionais (art. 337-B, CP) e lavagem de dinheiro (art. 1º, L. 9.613/98).
O TRF2, no julgamento da apelação, entendeu que não seria possível configurar-se o delito de lavagem de capitais. Nos termos do voto do Relator:
“A meu ver, a celebração do referido contrato integrou a própria materialidade da corrupção ativa internacional, até porque a consumação desse crime, na modalidade dar indiretamente, envolve, necessariamente, a entrega de forma dissimulada do valor que fora acordado entre os envolvidos. É valioso ressaltar que, embora o crime de corrupção ativa em transação comercial internacional seja um tipo penal misto alternativo, com três verbos nucleares, consistentes nos atos de “prometer”, “oferecer” e “dar”, é certo que os dois primeiros, além de serem absorvidos pelo último quando este ocorrer, nem mesmo gerariam produto passível de ocultação ou dissimulação, não podendo, pois, caracterizar-se como crimes antecedentes ao delito de lavagem de dinheiro, razão pela qual a discussão em torno do tema da consunção, na espécie, deve se limitar ao tipo penal relativo ao verbo “dar”. Assim, diante da natureza do crime de corrupção ativa internacional e das circunstâncias que norteiam os fatos, concluo que a dissimulação dos valores foi imprescindível para a consumação do delito de corrupção ativa internacional, na modalidade “dar indiretamente”, não podendo, por esse motivo, ser considerada como uma ação autônoma. Dessa forma, considerando-se que, no caso concreto, os atos de ocultação/dissimulação típicos da lavagem de dinheiro limitaram-se ao pagamento indireto, embora sob uma forma complexa, de valores frutos da corrupção ativa, havendo continência, portanto, entre os tipos penais, deve ser reconhecido o post factum impunível com relação ao crime de branqueamento de capitais, aplicando-se, em consequência, o princípio da consunção”.
Nota-se que o Tribunal reconheceu a consunção entre a corrupção e a lavagem de dinheiro, uma vez que o pagamento por interpostas pessoas e estruturas caracteriza a forma indireta de repasse prevista no tipo penal da corrupção internacional.
Mais uma vez, resta claro que nas hipóteses em que a ocultação já se encontra prevista e expressa no desenho típico do crime antecedente, não pode ser usada novamente para materializar a lavagem de dinheiro, sob pena de ver-se caracterizado o bis in idem, vedado na seara penal.
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1 BLANCO CORDERO, Isidoro. El delito de Blanqueo de Capitales. Madrid: Thomson Reuters: Aranzandi, 2015. p.348