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Propriedade Intelectual e a proteção normativa das cultivares

A proteção das cultivares é um assunto amplo e que merece atenção.

19/9/2022

O agronegócio é um ramo essencial para o desenvolvimento da economia nacional. Segundo o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada, da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” - ESALQ/USP, em conjunto com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil - CNA, estima-se que, somente no primeiro semestre de 2022, o agronegócio tenha impacto de 26,24% no PIB brasileiro.

Assim, para que a área do agronegócio seja impulsionada, é extremamente necessário que o Estado fortaleça o desenvolvimento tecnológico, ou seja, ampare e incentive a criação de novas variedades de espécies, produtos e tecnologias, com vistas a propiciar um crescimento substancial da economia brasileira.

Nesse contexto, o Brasil é signatário de acordos internacionais (como a UPOV, União para a Proteção de Obtenções Vegetais) e possui também legislação própria para o incentivo da criação tecnológica de novas variedades de cultivares, que compõe a propriedade intelectual conhecida como sui generis. Os sui generis são compostos pela topografia de circuito integrado, pelas cultivares, pelo acesso ao patrimônio genético e pelo conhecimento tradicional, sendo cada um protegido por lei própria.

A proteção de cultivares é um ramo da propriedade intelectual que objetiva conceder o título de invenção ao criador pelo desenvolvimento de novas variedades de plantas e, assim como nas demais propriedades intelectuais, ofertar direito exclusivo para sua exploração.

A lei 9.456/97, que institui a tutela de cultivares, estabelece que a proteção das invenções voltadas para o ramo somente será constituída mediante a concessão de certificado.

Art. 2º A proteção dos direitos relativos à propriedade intelectual referente a cultivar se efetua mediante a concessão de Certificado de Proteção de Cultivar, considerado bem móvel para todos os efeitos legais e única forma de proteção de cultivares e de direito que poderá obstar a livre utilização de plantas ou de suas partes de reprodução ou de multiplicação vegetativa, no País.

Como nos ensina Renato Buranello, a “(...) obtenção de licença para produzir cultivares, embora existissem tentativas de introduzir uma regulamentação desde 1947, somente passou a ser matéria disciplinada com a lei 9.456/97. Introduz-se mecanismos para organização, sistematização, controle da produção e comercialização de sementes e mudas”.

Nesse sentido, é necessário compreender que as cultivares protegidas por lei são as variedades de vegetais que apresentem clara diferença em relação a outras já conhecidas. As sementes são consideradas estruturas vegetais e são utilizadas para propagar uma cultivar.

Art. 3º Considera-se, para os efeitos desta lei:

IV - cultivar: a variedade de qualquer gênero ou espécie vegetal superior que seja claramente distinguível de outras cultivares conhecidas por margem mínima de descritores, por sua denominação própria, que seja homogênea e estável quanto aos descritores através de gerações sucessivas e seja de espécie passível de uso pelo complexo agroflorestal, descrita em publicação especializada disponível e acessível ao público, bem como a linhagem componente de híbridos; (...)

XIV - semente: toda e qualquer estrutura vegetal utilizada na propagação de uma cultivar;

Segundo Newton Silveira, a proteção será conferida às sementes, conforme estabelecido em lei, pois será aplicada sobre o material de reprodução ou multiplicação da cultivar: “Art. 8º A proteção da cultivar recairá sobre o material de reprodução ou de multiplicação vegetativa da planta inteira”.

Outra forma de se comprovar que as sementes são o meio de proteção das cultivares é que, conforme expresso em lei, a proteção garante o direito do criador se opor à reprodução do material de propagação da cultivar por terceiro não autorizado. Observe que, novamente, a lei explora o conceito de semente para ofertar a proteção.

Art. 9º A proteção assegura a seu titular o direito à reprodução comercial no território brasileiro, ficando vedados a terceiros, durante o prazo de proteção, a produção com fins comerciais, o oferecimento à venda ou a comercialização, do material de propagação da cultivar, sem sua autorização.

Desse modo, ao se conferir proteção às cultivares, tem-se o intuito de incentivar e estimular o seu desenvolvimento, pois, para se alcançar uma melhoria em cultivares, são despendidos esforço e investimentos. Conforme abordado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA, a obtenção de uma nova cultivar leva em média de 8 a 12 anos.

O órgão responsável pela proteção de cultivares é o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA, que atribuiu ao Serviço Nacional de Proteção de Cultivares -SNPC a competência para gerir o trâmite de proteção das cultivares. É por meio das decisões do SNPC que os pedidos de proteção são concedidos ou negados. Conforme o MAPA e o SNPC, são passiveis de proteção as cultivares que detenham as seguintes características:

“(...) ser produto de melhoramento genético; · ser de uma espécie passível de proteção no Brasil; · não haver sido comercializada no exterior há mais de 4 anos, ou há mais de 6 anos, no caso de videiras ou árvores; · não haver sido comercializada no Brasil há mais de doze meses; · ser distinta; · ser homogênea; · ser estável; · e possuir denominação apropriada que a identifique.

Assim, a proteção de uma cultivar visa garantir a exclusividade a quem a criou, gerando o livre exercício dos direitos do criador e impulsionando a ciência e tecnologia para a criação de novos modelos de cultivares no Brasil.

Como dito, o Brasil é signatário da Convenção Internacional para a Proteção das Obtenções Vegetais, promulgado por meio do decreto 3.109, de 30 de junho de 1999. Conjuntamente, o Brasil aderiu à União Internacional para Proteção das Obtenções Vegetais – UPOV. Assim, todos os Estados membros participantes da união visam proteger os recursos vegetais, promovendo-se um comércio seguro.

Artigo 5 - Direitos Protegidos; Âmbito da Proteção

1. O direito concedido ao obtentor tem o efeito de submeter à sua autorização prévia:

- a produção com fins comerciais;

- o oferecimento à venda;

- a comercialização.

do material de reprodução ou de multiplicação vegetativa, como tal, da variedade.

Nesse contexto, ao aderir à UPOV, o Brasil passa a deter reciprocidade com os demais 76 membros participantes. Isso significa que o Brasil protege todas as cultivares registradas pelos membros e, consequente, passa a deter proteção de seus cultivares em âmbito internacional.

Entretanto, a lei confere limites à proteção das cultivares. Dentre eles, podemos ressaltar a possibilidade de o agricultor utilizar para uso próprio uma cultivar, mesmo que protegida, sem o intuito de lucro. Poderá o produtor rural também utilizar ou vender como alimento ou matéria prima o produto obtido no plantio fruto da cultivar protegida, porém a comercialização não poderá apresentar fins reprodutivos.

 No mesmo sentido, terceiros terão o direito de utilizar a cultivar para o melhoramento genético ou pesquisa. Ainda assim, será possível a doação e a troca entre pequenos produtores rurais, quando estiver no âmbito de programas conduzidos por órgão públicos ou organizações.

Art. 10. Não fere o direito de propriedade sobre a cultivar protegida aquele que:

I - reserva e planta sementes para uso próprio, em seu estabelecimento ou em estabelecimento de terceiros cuja posse detenha;

II - usa ou vende como alimento ou matéria-prima o produto obtido do seu plantio, exceto para fins reprodutivos;

III - utiliza a cultivar como fonte de variação no melhoramento genético ou na pesquisa científica;

IV - sendo pequeno produtor rural, multiplica sementes, para doação ou troca, exclusivamente para outros pequenos produtores rurais, no âmbito de programas de financiamento ou de apoio a pequenos produtores rurais, conduzidos por órgãos públicos ou organizações não-governamentais, autorizados pelo Poder Público.

Semelhante à proteção das demais propriedades intelectuais, as cultivares possuem o prazo de proteção de 18 anos para as de espécies arbóreas e videiras, e de 15 anos para as demais. Após esse prazo, o cultivar cairá em domínio público, ou seja, todos poderão utilizar sem a necessidade de autorização.

Art. 11. A proteção da cultivar vigorará, a partir da data da concessão do Certificado Provisório de Proteção, pelo prazo de quinze anos, excetuadas as videiras, as árvores frutíferas, as árvores florestais e as árvores ornamentais, inclusive, em cada caso, o seu porta-enxerto, para as quais a duração será de dezoito anos.

Art. 12. Decorrido o prazo de vigência do direito de proteção, a cultivar cairá em domínio público e nenhum outro direito poderá obstar sua livre utilização.

Assim, as cultivares protegidas somente poderão ser utilizadas sem autorização quando se encaixarem em uma das exceções previstas na lei de cultivares. Distante dessas hipóteses, é necessária a autorização e o pagamento da retribuição devida, por meio de “royalties”, aos proprietários da proteção.

Por outro lado, aquele que utiliza uma cultivar sem a devida autorização, estará infringindo a lei e, consequentemente, responderá por seus atos. A resposta ao uso indevido poderá ser oferecida por meio de multa e outras sanções penais.

Art. 37. Aquele que vender, oferecer à venda, reproduzir, importar, exportar, bem como embalar ou armazenar para esses fins, ou ceder a qualquer título, material de propagação de cultivar protegida, com denominação correta ou com outra, sem autorização do titular, fica obrigado a indenizá-lo, em valores a serem determinados em regulamento, além de ter o material apreendido, assim como pagará multa equivalente a vinte por cento do valor comercial do material apreendido, incorrendo, ainda, em crime de violação dos direitos do melhorista, sem prejuízo das demais sanções penais cabíveis.

§ 1º Havendo reincidência quanto ao mesmo ou outro material, será duplicado o percentual da multa em relação à aplicada na última punição, sem prejuízo das demais sanções cabíveis.

§ 2º O órgão competente destinará gratuitamente o material apreendido - se de adequada qualidade - para distribuição, como semente para plantio, a agricultores assentados em programas de Reforma Agrária ou em áreas onde se desenvolvam programas públicos de apoio à agricultura familiar, vedada sua comercialização.

Além disso, caberá ao lesado reivindicar por danos morais causados pelo uso indevido de sua criação. Conforme o decidido no AREsp 722524 PR 2015/0133667-7, do Superior Tribunal de Justiça, não há a necessidade de demonstração objetiva do dano e prejuízo sofrido, sendo que a pirataria de sementes atinge a imagem dos proprietários, pois as sementes contrafeitas não possuem selo relativo à qualidade, podendo causar associação errônea dos consumidores.

AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL 722.524 - PR (2015/0133667-7) RELATOR : MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE AGRAVANTE : WALTER RIU TSUNETO AGRAVANTE : ALFREDO SHUJI ONUMA AGRAVANTE : NELSON AKIRA TSUNETO AGRAVANTE : LUCAS KENSHI TAKAKUSA ADVOGADO : LUIZ CARLOS DERBLI BITTENCOURT - PR006845 AGRAVADO : OR MELHORAMENTO DE SEMENTES LTDA AGRAVADO : COODETEC - COOPERATIVA CENTRAL DE PESQUISA AGRÍCOLA - COOCENTRAL ADVOGADOS : NEMO ELOY VIDAL NETO - PR020039 MATHIEU BERTRAND STRUCK - PR032066 THIAGO CANTARIN MORETTI PACHECO - PR038948 AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CAUTELAR INOMINADA. 1. ALEGADA VIOLAÇÃO AOS ARTS. 12 E 421, § 1º, DO CPC/1973. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. INCIDÊNCIA DAS SÚMULAS 282 E 356 DO STF. 2. SUPOSTA NULIDADE DA SENTENÇA. TESE DE DEDUÇÃO DE PEDIDO CERTO E PROLAÇÃO DE JULGADO ILÍQUIDO. AUSÊNCIA DE INTERESSE RECURSAL DOS RECORRENTES. SÚMULA 318/STJ. 3. INEXISTÊNCIA DE SOLIDARIEDADE. APONTADA CONTRARIEDADE AO ART. 186 DO CC. CONTEÚDO NORMATIVO DO REFERIDO DISPOSITIVO LEGAL INSUFICIENTE A AMPARAR A MATÉRIA. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. SÚMULA 284/STF. 4. DANOS MORAIS. PRETENSÃO DE DESCONSTITUIÇÃO DO PREJUÍZO EXTRAPATRIMONIAL. IMPOSSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. 5. AGRAVO CONHECIDO PARA NÃO CONHECER DO RECURSO ESPECIAL. DECISÃO

(...)

o ilícito está o prejuízo juridicamente presumido. [...] Demonstrada a violação aos direitos dos cultivares das apelantes, é presumível o abalo sofrido, o que dispensa a demonstração objetiva de prejuízos. Cumpre esclarecer que não é somente a comercialização dos produtos contrafeitos que atingem o patrimônio imaterial das empresas apelantes, mas também a violação das sementes, relacionada ao desenvolvimento e aperfeiçoamento dos seus produtos com a fabricação e comercialização sem a sua autorização. Ademais, verifica-se que a pirataria de sementes é algo que vem prejudicando o mercado de grãos, sendo conduta que deve ser efetivamente contida. Necessário levar em consideração, então, que as sementes contrafeitas atingiram o mercado consumidor, tornando o dano moral maior ainda, pois a imagem das apelantes efetivamente foi afetada com a associação de sementes contrafeitas e de qualidade duvidosa. Portanto, houve sim dano moral em sentido amplo, pela lesão a aspectos do patrimônio da empresa, sendo devida a reparação. Logo, para derruir a conclusão delineada no acórdão recorrido (acerca da ocorrência de comercialização ilegal dos cultivares das recorridas e, consequentemente, da demonstração dos danos morais), seria imprescindível o reexame dos elementos fáticos e das circunstâncias probatórias dos autos, o que não se admite nesta instância extraordinária, em decorrência do óbice disposto na Súmula 7/STJ. Ante o exposto, conheço do agravo para não conhecer do recurso especial. Publique-se. Brasília (DF), 13 de junho de 2019. MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Relator

(STJ - AREsp: 722524 PR 2015/0133667-7, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Publicação: DJ 19/6/19)

Frise-se, por fim, que a proteção das cultivares é um assunto amplo e que merece atenção. As sementes detêm lei própria com o intuito de registrar e resguardar as suas qualidades. No entanto, é por meio da lei de cultivares que elas passam a deter direitos, com vistas a beneficiar e ampliar a pesquisa e melhoramento das cultivares, que impactam diretamente o agronegócio no país. Dessa maneira, mais uma vez a propriedade intelectual e a sua proteção mostram-se como meio eficaz para o desenvolvimento tecnológico e ascensão do nosso país.

Fernando Zanetti Stauber
Advogado e Procurador do Distrito Federal. Formado em 2001, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestre em Direito Administrativo pela Universidad Complutense de Madrid - UCM (Máster Universitario). Já participou de diversas bancas de concursos públicos e de exames da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB.

Lorena Marques Magalhães
Advogada na Barreto Dolabella advogados, mestranda em propriedade intelectual e transferência de tecnologia na UNB

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