Migalhas de Peso

Uma análise breve da atuação da Anatel sob a perspectiva da regulação responsiva

Esta mudança de discurso aponta para adoção de estratégias dialógicas, com maior dose de consensualidade e soluções diversas e inovadoras em relação ao que antes se empregava.

19/9/2022

1. Introdução:

A ANATEL iniciou um processo de revisão de seus regulamentos e passou a adotar um discurso aderente ao modelo de regulação responsiva.

Aparentemente, foi incorporada, dentro da Agência, a consciência de que o regramento técnico é rapidamente afetado pela obsolescência e que há grande assimetria de informação entre regulador e regulado. Como corolário os objetivos pretendidos são prejudicados por uma postura adversarial das partes envolvidas, razão pela qual foi dada preferência ao fomento do diálogo e da transparência no processo de regulação, assumindo a Agência que o foco da atividade de ordenação do mercado deve estar no resultado, na eficiência, esta aferida principalmente pela satisfação do usuário. Paralelamente, os próprios atores do mercado já assumem uma conduta mais ativa e de colaboração na resolução das questões, em direção a um futuro processo de autorregulação, buscam, por isso, formar mais consenso com a Agência.

Apesar do que foi dito, ainda é válida, para a melhor contextualização do problema, uma rápida abordagem histórica.

Até a década de 90 do século passado a telefonia no Brasil estava longe de ser um serviço universalizado, neste contexto se faz útil mencionar que, naquele tempo, existia um mercado paralelo de linhas telefônicas, e que não eram acessíveis, pois custavam muito dinheiro. Já as novas linhas eram adquiridas mediante contratos de investimento para expansão da rede (os chamados “planos de expansão”), firmados com empresas do Sistema Telebrás e que sujeitavam o usuário a contribuir financeiramente com a expansão da infraestrutura do serviço e a aguardar durante anos até que finalmente lhe fosse entregue a linha telefônica. A propósito, as linhas telefônicas eram de tão modo valorizadas que constavam no arrolamento de bens no processo de inventário de pessoas falecidas, algo que hoje pode parecer estranho para os mais jovens.

Em meados da década de 1990 começou o processo de privatizações, isto no curso do mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso. No mesmo período chegou ao Brasil a tecnologia de telefonia celular (atual Serviço Móvel Pessoal - SMP). Mas, como todo bem escasso, de alta demanda e de última geração, era extremamente valorizado, portanto alcançável por uma parcela muito pequena da população, assim não foi neste momento que de fato se viu iniciado o verdadeiro processo de universalização do serviço de telecomunicações.

Nesse período também não se falava muito em qualidade do serviço, seja porque o Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/90) era uma norma ainda em fase de amadurecimento, seja porque não haviam meios fáceis de acesso ao judiciário, aos reguladores e aos órgãos de defesa do consumidor, seja, enfim, pela escassez e simples desejo pelo bem, de modo que era muito mais relevante ao consumidor conseguir ter acesso a ele do que se importar se o serviço era prestado com eficiência, qualidade e modicidade.

Mas, paulatinamente todo o contexto começou a se alterar, pois evoluíram, a partir de então, as privatizações, o que melhorou o ambiente competitivo, paralelamente houve a formação de um sistema de proteção ao consumidor que, além de uma lei avançada, contou com a criação e consolidação dos Juizados Especiais e de órgãos de defesa do consumidor (especialmente, agência reguladora, Procons e representações especializadas dos Ministérios Públicos estaduais), ocorreu ainda, no curso dos anos, o aumento da concorrência pela via das “empresas espelho” e, finalmente, agora sim, o mercado começou a mudar radicalmente, mas era só o começo1.

Voltando a questão da qualidade dos serviços e ao cumprimento dos ditames regulatórios, o controle e fiscalização das operadoras que serviam o SMP e o STFC (Serviço Telefônico Fixo Comutado) era pautado no método regulatório denominado “comando e controle”, orientado por pesadas sanções que eram aplicadas por meio dos PADOs (Procedimento para Apuração de Descumprimento de Obrigações). E, foi assim que, no curso dos últimos 24 (vinte e quatro) anos, a Agência Nacional de Telecomunicações organizou o mercado, tendo na sanção pecuniária um meio de dissuasão, aplicada sempre que constatado o descumprimento de alguma obrigação contratual ou regulatória.

No entanto, da década de 90 para cá muita coisa mudou. O serviço público concedido (o STFC) praticamente caiu em desuso nas residências brasileiras, o celular (SMP), serviço autorizado e prestado em regime de direito privado, passou a ser muito mais relevante e este sim universalizou a telecomunicação no Brasil2. Mas não só.

Nos últimos 10 (dez) anos a indústria de telecomunicações entrou em um verdadeiro processo disruptivo. Empresas como Facebook, Instagram, Whatsapp, Telegram, Netflix, Amazon Prime, Spotify, Skype dentre outras, conhecidas como OTTs (Over-the-Top), a partir da infraestrutura servida pelas operadoras tradicionais, passaram a ofertar serviços que com aquelas abriam competição. E, se por um lado as operadoras sofriam forte regulação, eram submetidas às penalidades da Agência Nacional de Telecomunicações e viram parcela importante de sua receita sendo dragada por estas empresas entrantes3, por outro lado ainda hoje a regulação sobre as OTTs reclama por uma definição mais formal e precisa, mas as operadoras que antes eram refratárias ao novo modelo, hoje atuam em parceria com muitas das novas empresas de tecnologia em telecomunicações, reconhecendo que a realidade se impõe.

Enfim, dado este rápido quadro histórico, por mais que a agência reguladora pretenda se manter atualizada em suas normas, o mercado é demasiadamente dinâmico e isso demanda a adoção de estratégias mais condizentes com o contexto que se pretende regular. Talvez por isso a ANATEL, em linha com a necessidade atual, tenha no final do ano de 2019 aprovado a resolução 717 (Regulamento de Qualidade) e em 2018 lançou a Consulta Pública 53, que pretende alterar a resolução 589/12 (Regulamento de Aplicação de Sanções Administrativas – RASA) e substituir a resolução 596/12 (atual Regulamento de Fiscalização).

Outrossim, tanto na Resolução quanto na Consulta Pública há direta referência à adoção da regulação responsiva como estratégia de interação com o mercado. Diante desta afirmação a inferência lógica é que estaria superada a antiga estratégia de comando e controle (baseada na punição), uma vez que a regulação responsiva não somente difere do método anterior por perseguir o diálogo com os atores do processo antes de utilizar ferramentas de dissuasão, como visa promover o resultado mais eficiente e aderente à finalidade pública, ao invés de ter a multa como resposta imediata ao ato de infração.

Logo, esta mudança de discurso aponta para adoção de estratégias dialógicas, com maior dose de consensualidade e soluções diversas e inovadoras em relação ao que antes se empregava.

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1 Por mais que o senso comum seja extremamente crítico em relação à qualidade da prestação dos serviços de telecomunicações no Brasil seria uma utopia acreditar que os referidos serviços alcançariam a sofisticação e a universalização que tem hoje sem o processo de privatização das empresas do Sistema Telebrás, ainda que se possa criticar a forma como isso foi feito.

2 Em abril de 2020 o Brasil tinha 225,6 milhões de celulares, com tele densidade de 106,54 para cada 100 habitantes. Fonte: Teleco (https://www.teleco.com.br/ncel.asp) acesso em 8/7/20.

3 É possível mencionar que as receitas decorrentes de mensagens de texto e comunicação por voz foram muito afetadas pelo serviço do Whatsapp e similares, por exemplo. Isso sem mencionar que a viabilidade de serviços de streaming é totalmente dependente de investimentos em infraestrutura de rede, investimentos que ficam no orçamento das prestadoras do serviço de acesso à internet banda larga.

Alexandre Almeida da Silva
Mestrando em Direito Público no programa de mestrado profissional da Escola de Direito da FGV/SP, especialista em Direito Privado Patrimonial pela PUC/Rio e graduado em Direito pela UFRJ. Sócio da Jacó Coelho Advogados.

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