Dentre as virtudes das instituições sociais, a justiça é a primeira delas, de modo que, caso ela não esteja presente, independentemente do grau de organização as leis e estruturas políticas devem ser reformadas ou extinguidas. A justiça é inviolável para as pessoas, e por conta disto, a perda de liberdade de alguns em prol do bem coletivo é inadmissível, tornando indisponíveis sacrifícios impostos a uma minoria para que a maioria usufrua de vantagens. A cidadania deve ser igual para todos, com liberdades invioláveis no gozo dos direitos assegurados pelo sistema de justiça, de modo não negociável (RAWLS, 2000-C).
Dito isso, a sociedade precisa ser justa como um todo, para que o mencionado até o momento possa ser aplicado. A cooperação da sociedade é fundamentada no interesse mútuo, para garantir que todos tenham melhores qualidades de vida do que teriam apenas com seus esforços individuais. Entretanto, é possível afirmar que existe um conflito de interesses causado pela distribuição dos benefícios gerados pela cooperação coletiva, além de diferentes ideais, mantidos pelos direitos para cidadãos que são parte de uma mesma sociedade. E é por conta disso que as instituições básicas da sociedade existem, para regular estes fatores (RAWLS, 2000-C).
As instituições, por sua vez, são guiadas por princípios da justiça social, que elaboram e atribuem direitos e deveres, bem como distribuem os encargos e benefícios sociais, a fim de alcançar a minimização das desigualdades sociais. São exemplos de instituições, conforme Silva (2012), a constituição, acordos econômicos e sociais, bem como a proteção do mercado, propriedade privada e liberdades, todos regulados pelos princípios da justiça, quais sejam, de acordo com Oliveira (2018), a liberdade de expressão e religião; e a equidade social e econômica.
A justiça como equidade forma uma justiça válida na democracia constitucional, porque independe de crenças religiosas ou filosóficas que podem se contradizer, mantendo a tolerância enquanto princípio para que os princípios dispostos na Teoria da justiça, em especial a equidade, possa continuar a ser aplicada. Considera-se então que o conceito de equidade disposto na Teoria da Justiça é político e moral, devendo ser buscado na sociedade democrática, e não meramente metafísico. O princípio da equidade na justiça busca, antes de tudo, estabelecer uma estrutura básica da democracia constitucional (RAWLS, 2000-A).
Historicamente, a filosofia política não conseguiu entrar num consenso sobre divergências e controvérsias políticas, então o que se busca é a forma mais harmônica possível, para diminuir os atritos causados pelas divergências com base no respeito mútuo. O conflito se dá, principalmente, em como efetivar de maneira mais eficiente as liberdades e a igualdade na democracia, a igualdade das liberdades políticas, de pensamento e consciência, os valores da vida pública, que constantemente estão se chocando em contradições (RAWLS, 2000-A).
Se por um lado Rawls defende a máxima liberdade para os indivíduos, de modo que o exercício do poder político está intrinsecamente ligado à liberdade, por outro o exercício desta deve ir de acordo com os princípios da justiça (OLIVEIRA, 2018). Portanto, embora existam contradições durante o exercício das liberdades, por conta das restrições e direitos envolvidos, o objeto da justiça precisa ser respeitado. E este é a justiça social, a estrutura basilar da sociedade, pela forma com a qual os direitos e deveres fundamentais são distribuídos e como a divisão de vantagens ocorre, levando em consideração a cooperação social que deu provimento à estas. Deste modo, a estrutura básica é o objeto primário da justiça, por conta dos efeitos que impactam a sociedade como um todo (RAWLS, 2000-C).
Rawls se preocupa com os problemas de justiça nos casos em que a igualdade é dificultosa, porque, conforme o autor, a justiça depende de como os direitos e deveres fundamentais são atribuídos em diferentes setores da sociedade. Isto ocorre especialmente quando a disparidade de oportunidades econômicas prejudica este acesso à justiça. Considerar a aplicação da distribuição dos bens entre mais ou menos vantajosos só contempla uma instância do conceito da aplicação da justiça, então os princípios podem não funcionar quando o recipiente dos direitos for, por exemplo, grupos menos abrangentes (RAWLS, 2000-C).
Chama a atenção neste caso o que inclui a cultura política pública, pelas instituições principais e tradições históricas enquanto base de interpretação e acervo de ideias (RAWLS, 2000-A, p. 209).
O conceito de justiça como equidade surge como um acordo original, numa situação definida entre pessoas racionais, em posição de igualdade e visando estabelecer a associação básica. O véu da ignorância é um estado inicial, chamado de posição original, em que se discutem os princípios de justiça (RAWLS, 2000-C). Neste momento inicial da justiça os sujeitos são éticos e possuidores de um senso de justiça, de modo que na posição original o conjunto de indivíduos está em estado semelhante, fazendo com que não haja tentativas de favorecimento dos interesses particulares, facilitando a chegada a um consenso (SILVA, 2012).
O véu da ignorância serve, portanto, para definir os princípios norteadores da justiça, sem que os indivíduos participantes saibam quem realmente são seus colegas, suas classes sociais, gênero, cor da pele, convicções políticas ou religião, porque sem este conhecimento, estariam, em tese, todos despidos de seus preconceitos. Este desconhecimento, por sua vez, permite que as escolhas sejam feitas a partir de uma posição original imparcial, de equidade, visto que não haveria barganha a ser feita e assim todos poderiam alcançar princípios mais justos, por não saberem as posições sociais e consequentemente não seguirem uma hierarquia baseada nos status, famílias, posses ou coisas desta sorte (OLIVEIRA, 2018).
É com isto em mente que as pessoas cobertas pelo véu da ignorância buscariam condições igualitárias, pois todos desejam ser tratados com respeito e dignidade, independentemente de pertencerem a uma maioria ou não, conforme o autor supramencionado, que complementa:
Nesse sentido, surgiriam dois princípios básicos para Rawls, em que um oferece as mesmas liberdades básicas para todos os cidadãos, como liberdade de expressão e religião e outro que se refere à equidade social e econômica em que se permitiria apenas as desigualdades sociais e econômicas que beneficiassem os membros menos favorecidos de uma sociedade. (OLIVEIRA, 2018, p. 25-26).
À medida que os indivíduos, através de seus representantes, passam a ser a parte do contrato social e adentram numa sociedade bem-ordenada, o véu da ignorância se torna desnecessário (RAWLS, 2000-C). Na obra “Teoria da Justiça” o véu da ignorância existe na posição original, e logo depois se extingue.
Não se deve, contudo, confundir o contratualismo de Rawls na Teoria da Justiça com o contrato social de autores como Hobbes, Locke e Rousseau, porque na Teoria da Justiça de Rawls o contrato social cujo qual os indivíduos fazem parte é mais abstrato e generalista do que o estabelecido pelos três autores contratualistas citados (OSÓRIO, 2020). Ademais, Rawls publicou correções da teoria da Justiça no livro Liberalismo político, que também será trabalhado neste tópico.
Para que esse acordo social que fundamentará os princípios da justiça possa ocorrer, devem estar presentes as condições favoráveis, quais sejam “situar pessoas equitativamente livres e iguais, não devendo permitir a algumas pessoas maiores vantagens de barganha do que as outras. Além disso, coisas como a ameaça do uso da força, a coerção, a cilada e a fraude devem ser excluídas” (RAWLS, 2000-B, p. 66).
Para isso serve a posição original e o véu da ignorância, porque ideologicamente eles têm a função de ser essa barreira contra o individualismo pessoal que poderia atrapalhar a formação da justiça com seus princípios. A dificuldade encontrada na aplicação desta teoria, entretanto, dá-se no plano fático, visto que as negociações dificilmente ocorrem sem a desobstrução de elementos que dificultam o emprego das condições ideais (RAWLS, 2000-B).
O contrato social é um ponto de partida importante para a construção da Teoria da Justiça, que permite a sua elaboração, todavia, o autor também menciona que a concepção contratualista de justiça não é o objeto principal da estrutura básica da sociedade. Por sua vez, o objeto principal da teoria é a concepção dos primeiros princípios, para que através dele possam ser respondidas eventuais questões que surjam sobre a justiça social na formação das instituições (RAWLS, 2000-A).
Rawls busca o entendimento de que o bem-estar de todos, a partir de condutas benéficas e sustentáveis, socialmente, a partir da distribuição de uma parte da riqueza para o percentual menos privilegiado da população não gera prejuízo ou um menor padrão de vida, mas permite que outros tenham qualidades de vida dignas a partir desta transferência de recursos para minorias comumente excluídas e vulneráveis (OLIVEIRA, 2018).
A posição original, portanto, modela a pessoa, pois conecta suas concepções a um fim que é a cooperação social a partir de princípios específicos de justiça, porque por serem representantes autônomos, fazem o que for melhor pelos que estão representando, estando sujeitos à serem restringidos da posição original (RAWLS, 2000-A, p. 359).
Por conta disso as partes são simétricas, estando num sistema balanceado em que todos são iguais, por meio do véu da ignorância que os impede de saber detalhes uns dos outros que, se fossem de conhecimento geral, poderiam influenciar as decisões tomadas. Desta forma, estão todos livres de conceitos pré formados sobre a dualidade entre o bem e o mal, suas posições pessoais e capacidades, bem como o que foi chamado de “propensões psicológicas” dos representantes, mantendo um modelo justo e sem viés na sua construção (RAWLS, 2000-A).
Como visto anteriormente, John Rawls estabelece uma forma de contrato social, com princípios que devem ser aceitos e bens primários divididos igualmente. São os princípios da justiça que fundamentarão esta organização social, e não um governante escolhido. Por conta de os princípios razoáveis da justiça contratualista serem mais substanciais do que os ideais do utilitarismo, o contrato social justo é superior (OLIVEIRA, 2018).
Embora as consequências práticas do contratualismo e do utilitarismo possam vir a ser semelhantes, as duas concepções são bastante diferentes por conta das impressões formadas mediante às situações iniciais. O utilitarismo é, tradicionalmente, uma “satisfação de desejos, e admite comparações interpessoais, as quais, no mínimo, podem ser somadas separadamente” (RAWLS, 2000-C, p. 173). Para o autor, as escolhas não necessariamente medem riscos, dependendo mais da satisfação que podem causar.
A crítica de Rawls ao utilitarismo surge como uma maneira do autor relatar o motivo da justiça como equidade ser, para ele, superior ao utilitarismo clássico, utilitarismo médio, intuicionismo e perfeccionismo. Os pontos principais a serem vistos por Rawls como falha nestas correntes teóricas são que os argumentos no utilitarismo desconsideram eventuais diferenças entre os indivíduos; permite que nem todos sigam os princípios da justiça; a falha na garantia do justo e do exercício das liberdades, privilegiando o que possui um fim agradável sob o justo; e que os fundamentos garantidores da estabilidade da justiça, em sua estrutura básica, precisam de princípios justificados e reconhecidos por todos, coisa que não ocorre na corrente utilitarista (FABIAN, 2021).
Deste modo, é possível afirmar que a teoria de Rawls é deontológica, priorizando o justo e se opondo a teorias teleológicas, que separam o que é bom do que é justo, priorizando o que é mais agradável, de maneira que, para Rawls, o utilitarismo mistura de maneira confusa os conceitos de impessoalidade com imparcialidade. (CARIELLO, 2019).
Considerando a posição original, as partes, em teoria, optariam pelo princípio da maximização da utilidade média, rejeitando o princípio clássico. Isto significa dizer que estas pessoas se preocupariam mais em atender seus interesses individuais, sem priorizar a satisfação de modo geral e, por conta disso, optariam pelos dois princípios da justiça. Considerando o contratualismo, o princípio clássico está subjugado ao que fora mencionado, de sorte que ele possui uma origem distinta, pois, historicamente, é um dos pontos principais do utilitarismo (RAWLS, 2000-C, p. 200-201).
Continuando seu raciocínio, o autor supramencionado passa a definir a justiça para Hume e Adam Smith, cujos quais classificam um sistema social como justo quando ele é aprovado por indivíduos espectadores racionais, imparciais, conhecedores de todas as circunstâncias envolvidas. Esta sociedade seria justamente ordenada a partir da aprovação do observador ideal, e o problema disto, para Rawls está nas noções de aprovação e em como se dá este conhecimento. Entretanto, o que pesa mais é a noção do justo, visto que para o observador imparcial pouco importam os princípios do justo e da justiça, isolando-se da discussão moral, sem uma reflexão conscienciosa (RAWLS, 2000-C)
A obra de Rawls se inicia reformulando o contrato social para formular o conceito de justiça por meio dos princípios da justiça. Embora tanto a teoria de Rawls quanto o utilitarismo prezem pelo individualismo, por ambas serem correntes liberais e eurocêntricas, Rawls pensa no individualismo sob uma perspectiva advinda de Locke, como a maioria dos filósofos modernos ocidentais. Deste modo, é correto afirmar que a justiça como equidade também possui caráter individualista, derivado do individualismo clássico de contratualistas como Hobbes, Rousseau e Locke (MELO, 2020).
Conforme o autor supracitado, embora Rawls também parta de concepções individualistas e da mesma base contratualista, difere-se dos utilitaristas porque no utilitarismo o individualismo é caracterizado pelo sentido moral e metafísico, que por sua vez está associado ao impulso a iniciar vida em sociedade sem que suas ações dependam de regras ou forças sociais, e da dependência das relações interpessoais para caracterizar o que irá defini-los como participantes da sociedade.
Ambas as noções metafísicas do utilitarismo vão vastamente de encontro à teoria de Rawls, que rejeita o metafísico e precisa de regras estabelecidas para que haja o aceite da construção de uma sociedade, além do mais, as relações interpessoais predefinidas na formação do contrato social são opostas à teoria da justiça de Rawls, por conta do véu da ignorância enquanto característica formativa.
Na teoria de Rawls, via de regra as liberdades materiais se sobressaem às liberdades processuais, conforme Melo (2020). Entretanto, analisando especificamente o caso em tela, apesar das diferenças entre as correntes, é possível aplicar a teoria rawlsiana nesta situação, como será mais bem explicado no capítulo quatro, que trata sobre as instituições sociais como elas atuam mediante o princípio da liberdade de expressão.