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O incidente de desconsideração da personalidade jurídica em face de associação de moradores de bairro

Breves considerações acerca da hipótese de desconsideração da personalidade jurídica em face das associações de moradores de bairro em ações de execuções fiscais.

15/9/2022

As associações de moradores de bairro são pessoas jurídicas de direito privado, regulamentadas através de um estatuto e constituídas pela união de pessoas que se organizam para atividades sem fins lucrativos, conforme prevê o Código Civil (art. 44, I e art. 53 e 54).

Suponhamos que uma determinada associação de bairro deixe de realizar o pagamento do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana - IPTU, referente aos exercícios de 2018, 2019, 2020 e 2021. Em virtude disso, a Fazenda Pública propõe uma Ação de Execução Fiscal em face da associação, contudo, ao decorrer da lide, a associação permanece inerte, soma-se a isso o fato da mesma não possuir nenhum bem passível de penhora.

Com efeito, ao consultar seu CNPJ no site eletrônico da Receita Federal, a Fazenda Pública obtém os dados do Presidente da Associação, uma vez que este consta como “sócio” no site da Receita, requerendo, assim, a inclusão do mesmo no polo passivo da demanda. O pedido é indeferido pelo juízo a quo e não satisfeita a municipalidade instaura então um Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica.

A personalidade jurídica da referida associação pode ser desconsiderada para fins de inclusão do presidente no polo passivo da ação? 

Em primeiro lugar, relembremos que o determinado instituto visa impedir que sócios usem da personalidade jurídica da empresa com o intuito de lesar credores e esgueirar-se de suas obrigações, tendo que o simples fato da empresa não possuir bens passíveis de penhora não justifica em sua aplicação “automática”, haja vista que é necessário que seja comprovado nos autos que houve um desvio de finalidade, caracterizado pelo ato intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica ou a confusão patrimonial.

Conforme explica Flávio Tartuce:

“Tal instituto permite ao juiz não mais considerar os efeitos da personificação da sociedade para atingir e vincular responsabilidades dos sócios, com intuito de impedir a consumação de fraudes e abusos por eles cometidos, desde que causem prejuízos e danos a terceiros, principalmente a credores da empresa. Dessa forma, os bens particulares dos sócios podem responder pelos danos causados a terceiros. Em suma, o véu ou escudo, no caso da pessoa jurídica, é retirado para atingir quem está atrás dele, o sócio ou administrador. (Tartuce, Flávio. Manual de direito civil: volume único / Flávio Tartuce. - 10. ed. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2020).

No tocante à legislação, a desconsideração é prevista no art. 50 do Código Civil e 28 do Código de Defesa do Consumidor. No direito ambiental ela está prevista no art. 4° da Lei de Crimes Ambientais (lei 9.605/98) e foi, inclusive, nessa seara que o STJ admitiu, em situação excepcional, a desconsideração da personalidade jurídica em face de uma associação, estendendo-se ao presidente, secretário e ao tesoureiro a responsabilidade por danos ambientais causados por esta (REsp 797.999). 

Na ocasião foi determinada a responsabilidade solidária aos associados administradores, o que, em tese, não caberia para as associações civis, nem responsabilidade solidária, tampouco a subsidiária, uma vez que o parágrafo único do art. 53 do Código Civil prevê que não existe nas associações, entre os associados, nenhum direito, nem mesmo obrigações recíprocas. 

Mas se a desconsideração da personalidade jurídica, a priori, não cabe para as associações civis, porque ela facilmente pode ser confundida na esfera tributária para fins de cobrança judicial referente, por exemplo, ao IPTU?

Primeiro, porque o art. 50 do Código Civil não se refere somente as sociedades civis como faz o Código de Defesa do Consumidor, o mesmo se restringe tão somente às sociedades já que o CDC não é aplicável às associações sem fins econômicos. O Código Civil, por sua vez, é mais amplo e dispõe apenas que a desconsideração da personalidade jurídica é cabível “em caso de abuso da personalidade jurídica”.

Inclusive, em virtude disso estabeleceu o Enunciado 284 da IV Jornada de Direito Civil: “Art. 50. As pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos ou de fins não econômicos estão abrangidas no conceito de abuso da personalidade jurídica.”

Sabemos que as sociedades civis, diferente das associações, buscam através de suas atividades econômicas a obtenção de lucros aos seus sócios e não somente alguns fundos para cumprir com os objetivos previstos em um estatuto. Logo, a diferença entre uma e outra se resume, grosso modo, em uma única palavra, qual seja, lucro.

Mas é certo que existem outras diferenças importantes entre uma e outra como a diferenciação entre as partes. Nas associações temos um negócio jurídico, sem vínculo jurídico obrigacional celebrado entre associados e a associação, ao passo que nas sociedades o que temos é a figura dos sócios, que diferente dos associados, possuem direitos e obrigações entre si por força do contrato societário em que celebraram.

O segundo motivo pode se dá por uma simples extensão interpretativa da desconsideração da personalidade jurídica com base no art. 124 e 135 do Código Tributário, que assim dispõem:

“Art.124. São solidariamente obrigadas:

  1. as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal;
  2. as pessoas expressamente designadas por lei.

Parágrafo único. A solidariedade referida neste artigo não comporta benefício de ordem.”

“Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:

  1. as pessoas referidas no artigo anterior;
  2. os mandatários, prepostos e empregados;
  3. os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.”

Em que pese à jurisprudência, se vislumbra quase nenhuma decisão favorável ao cabimento do IDPJ, a justificativa pra isso se dá devido que a mera inadimplência, bem como a ausência de bens capazes de satisfazer o débito tributário, por si só, não constituem em um motivo suficiente para a aplicação de tal instituto, visto que é necessário comprovar o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial, o que aparentemente não é algo fácil de se comprovar. Significa que, ainda que erroneamente o IDPJ esteja sendo discutido na esfera judicial, há uma pequena possibilidade de seu cabimento, porém em situações bem excepcionais.

Jéssica Pereira
Acadêmica de Direito no Centro Universitário de Belo Horizonte - UNIBH.

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