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Interposição fraudulenta e o entendimento do CARF acerca do art. 23, inciso V, do decreto-lei 1.455/76

Acerta o CARF ao entender pela necessidade de demonstração de dano ao controle aduaneiro por meio de fraude ou simulação, mantendo a legalidade de operações de importação.

15/9/2022

Ao tratarmos de operações de importação, é importante rememoramos os conceitos das três modalidades existentes, são elas: (i) por conta própria ou direta; (ii) por conta e ordem de terceiros; e (iii) por encomenda.

Em apertada síntese, na importação por conta própria ou direta, o importador adquire as mercadorias no exterior e comercializa no mercado interno, isto é, sem qualquer intervenção de um terceiro.

Já nas outras duas modalidades tratadas a seguir, há sempre a intervenção de um terceiro na operação de importação, razão pela qual são classificadas como importações indiretas.

A importação por conta e ordem de terceiros é realizada quando uma empresa (denominada adquirente) contrata outra empresa (importadora) para realizar o despacho aduaneiro em seu nome, sendo que os custos da operação como frete, tributos, armazenagem, são arcados pela empresa adquirente.

No tocante à modalidade por encomenda, esta ocorre quando uma empresa (denominada encomendante) contrata outra (importadora) para a importação de produtos. A diferença em relação ao formato por conta e ordem é que, no tipo “por encomenda”, a compra é feita com recursos da empresa importadora.

Feita esta breve distinção, a infração de interposição fraudulenta de terceiros está expressamente prevista no art. 23, inciso V, do decreto-lei 1.455/76, a qual é caracterizada pela tentativa de ocultar o destinatário final da mercadoria objeto da importação, comprometendo a justa fiscalização por parte da Autoridade Aduaneira. Leia-se:

Art 23. Consideram-se danos ao Erário as infrações relativas às mercadorias:

(...) V - estrangeiras ou nacionais, na importação ou na exportação, na hipótese de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros.

Caso configurado tal ilícito, a penalidade aplicada é a perda dos bens importados ou, nas hipóteses em que não é possível apreender os bens, é exigida multa no montante equivalente a 100% do valor aduaneiro das mercadorias objeto da operação de importação (decreto-lei 1.455/76, no seu art. 23, inciso V, parágrafo 3º), cumulada com multa de 10% do valor das operações de importação em face da trading company que cedeu o nome para ocultação do adquirente ou encomendante da mercadoria  (art. 33 da lei 11.488/07)1.

Ocorre que habitualmente a fiscalização aduaneira promove a lavratura de autos de infração com a acusação de interposição fraudulenta de terceiro à míngua de qualquer prova (ou mesmo imputação) de dolo, em evidente afronta à regra do artigo 23, inciso V, do decreto-lei 1.455/76.

Todavia, a não comprovação de qualquer conduta ou atos tendentes a caracterizar a fraude ou simulação afasta a conclusão de ocorrência de interposição fraudulenta. Essa é a opinião do ilustre Professor e Conselheiro do CARF Rosaldo Trevisan2 que, ao tratar do assunto, pontua: “a ocultação de pessoa em operação de importação ou exportação constitui infração punível com o perdimento da mercadoria se é perpetrada mediante fraude ou simulação.  E o que se convencionou de nominar de interposição fraudulenta é umas das formas de ocultação mediante fraude ou simulação – daí a palavra inclusive no texto de ordem legal.”

Ao avaliarmos algumas autuações fiscais com a acusação de interposição fraudulenta, constatamos a existência de presunções aplicadas pelos agentes fiscais para este tipo de acusação.

A título exemplificativo, citamos o caso de uma empresa do segmento de combustíveis que importa, por meio de navios, matérias-primas para refino do petróleo e produção de combustíveis como gasolina, espécies de diesel, etc.

Em uma autuação fiscal lavrada em face desta empresa com incriminação de interposição fraudulenta, a Administração Aduaneira desconsiderou uma importação na modalidade direta por entender que era sabido, a todo tempo, que a mercadoria tinha um destinatário certo, motivo pela qual deveria ser reclassificada como importação indireta.

Para esta conclusão do Fisco, segundo consta no relatório fiscal, foram determinantes os fatos de que (i) a venda de mercadoria no navio foi realizada ao mesmo interessado em diminuto intervalo de tempo e (ii) a pré-existência de um instrumento contratual à importação.

Todavia, ao concluir pela interposição fraudulenta devido à existência de um comprador definido no momento do desembaraço aduaneiro, o fisco se vale do uso indevido de conceitos legais e operacionais relativos à livre iniciativa e propriedade privada, adotados de boa-fé e dentro das regras legais vigentes, inclusive aquelas que vinculam a própria administração aduaneira.

Com efeito, não há nenhuma regra em nosso ordenamento jurídico que impeça um contribuinte de efetivar a compra, total ou parcial, do produto importado, após sua nacionalização, com o mesmo fornecedor.

Ademais, a existência de um contrato pré-existente configura apenas uma garantia de futura aquisição, cujo produto e valor serão definidos somente em momento posterior. Essa prática é usualmente utilizada por empresas que importam mercadorias com certa especificidade e visam estreitar suas relações comerciais, como é o caso usados aqui como exemplo (importação de insumos para fabricação de combustíveis), segmento altamente regulado e controlado, em que há um nicho seleto de interessados nos produtos transportados em navios cujo translado dura em média um mês (período em que a oferta do produto é negociada junto aos potenciais interessados).

Nota-se, pois, que as circunstâncias fáticas alegadas pela fiscalização aduaneira para classificação da operação com interposição fraudulenta, nada mais revelam do que o exercício da liberdade contratual assegurada pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Revendo o teor do inciso V do art. 23 do decreto-lei 1.455/763, conclui-se que o dano ao erário é caracterizado na prática de importação/exportação de mercadorias com ocultação dos reais intervenientes (importador e adquirente) mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros.

Logo, a caracterização da interposição fraudulenta depende do animus do sujeito passivo que deve ser comprovado pelo Fisco. É neste sentido a Solução de Consulta 158/214 exarada pela COSIT que assevera: “importante destacar que, nas autuações relativas às infrações por ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, o ônus probatório dos casos de fraude ou simulação (inclusive a interposição fraudulenta) é do Fisco, que deve indicar nos autos o conjunto probatório que caracterize a ocorrência da infração tipificada em lei, conforme se depreende da jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF)”.

Neste sentido, chamamos a atenção ao teor do acórdão proferido pelo CARF no processo 15444.720091/18-995, o qual inclusive aborda a Solução de Consulta supra comentada6, oportunidade em que foi pontuada a inexistência de provas suficientes para a caracterização de interposição fraudulenta. Veja-se a ementa abaixo:

“OCULTAÇÃO DO REAL ADQUIRENTE DE MERCADORIA IMPORTADA. INTERPOSIÇÃO FRAUDULENTA. AUSÊNCIA DE PROVA. MULTA POR CESSÃO DE NOME. DESCABIMENTO.

É descabida a aplicação da multa prevista no art. 33 da lei 11.488/07, quando não comprovada a fraude ou simulação negocial, na realização de operações de importação, tendente à ocultação dos reais adquirentes das mercadorias, não se configurando a necessária interposição fraudulenta quando os intervenientes estão respaldados em contratos comerciais válidos, possuem capacidade econômico-financeira e operacional para realização das operações e não restou demonstrada qualquer irregularidade na sua execução, não servindo de prova meras conjecturas findadas em relações societárias e direitos de exclusividade.

INTERPOSIÇÃO FRAUDULENTA. PENA DE PERDIMENTO. PROVA. DIFERENÇA DE IPI NA OPERAÇÃO

O vasto e elucidativo acervo probatório produzido pelo recorrente nos autos é suficiente para demonstrar a inexistência de interposição fraudulenta comprovada no caso em espécie. Em verdade, o que existe são atividades lícitas, promovidas em compasso com as ideias de livre iniciativa privada e autonomia de vontade, sem qualquer mácula de caráter aduaneiro e/ou fiscal.

Logo, não há que se falar em incidência de diferenças de IPI nas operações fiscalizadas.

Em resumo, avaliando a maciça jurisprudência do CARF7 conclui-se que para fins de caracterização de uma importação fraudulenta: (i) deve ser identificado e comprovado atos que tenham contribuído para a importação desconsiderada pela Fiscalização, (ii) bem como não pode ser uma infração meramente formal, isto é, devem existir subsídios substanciais que atestem esta conclusão.

Portanto, para fins de configuração da interposição fraudulenta, acerta o CARF ao entender pela necessidade de demonstração de dano ao controle aduaneiro por meio de fraude ou simulação, mantendo a legalidade de operações de importação caso não comprovado a intenção do agente em burlar o controle aduaneiro, trazendo mais segurança para os contribuintes que operam no comércio internacional.

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Art. 33.  A pessoa jurídica que ceder seu nome, inclusive mediante a disponibilização de documentos próprios, para a realização de operações de comércio exterior de terceiros com vistas no acobertamento de seus reais intervenientes ou beneficiários fica sujeita a multa de 10% (dez por cento) do valor da operação acobertada, não podendo ser inferior a R$ 5.000,00 (cinco mil reais).

2 Artigo: “Considerações em da maioridade civil da “interposição fraudulenta” e impressões analíticas da jurisprudência administrativa sobre o tema”

Art 23. Consideram-se danos ao Erário as infrações relativas às mercadorias: (...)

V - estrangeiras ou nacionais, na importação ou na exportação, na hipótese de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros.

§ 1º - O dano ao erário decorrente das infrações previstas no caput deste artigo será punido com a pena de perdimento das mercadorias.

§ 2º - Presume-se interposição fraudulenta na operação de comércio exterior a não-comprovação da origem, disponibilidade e transferência dos recursos empregados.

Solução de Consulta COSIT 158/21 – publicada em 28/9/21

5 Recurso Voluntário - Processo 15444.720091/2018-99, Acórdão 3401-010.570 – 3ª Seção de Julgamento / 4ª Câmara / 1ª Turma Ordinária, Sessão de julgamento do dia 16/12/21, Publicação em 8/2/22)

O Relator ao tratar do ônus probatório para imputação de interposição fraudulenta pelo Fisco assim pontua: “(...). O labor jurídico deve atender à realidade negocial, e a figura do cliente ou comprador pré-definido própria de uma gestão austera de estoques baseada no just in time não pode ser confundida com a figura da interposição, sob pena do cometimento de uma impropriedade jurídica, uma apropriação de conceitos típicos para expandi-los sobre operações de mercado interno infensas ao objetivo da norma infracional aduaneira. (...). O ônus probatório é da acusação fiscal para comprovar a fraude, mas esclarece a Solução de Consulta Cosit que o curto tempo de permanência de mercadoria em estoque não descaracteriza, por si só, a importação indireta por encomenda. 

7 Vide acórdãos: Acórdão 3302-006.907/PTA 10909.720905/13-52; Acórdão 3302-006.011/PTA  10074.720584/15-18; Acórdão 3401-006.746/PTA 10074.720242/16-89;

Ricardo Henrique Rodriguez de Andrade
Advogado da área de Contencioso Administrativo e Consultoria Tributária do escritório Magro Advogados. Pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários- IBET/RJ.

Gabriela Cursino
Graduada em Direito pelo Ibmec 2020, LL.M em Direito tributário e contabilidade tributária pelo IBMEC 2022, integrante da equipe Tributaria do Magro Advogados do Rio de Janeiro, desde 2022.

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