Sabemos que, em pelo menos algum nível de vício, o profissional do direito brasileiro adora séries jurídicas desde que se deparou com ‘Ally Mcbeal’, seja ela ‘Suits’, ‘The Good Wife’, ‘Better Call Saul’ ou a mais nova heroína da Marvel, ‘She-Hulk’. Mesmo assim, a série que mais marcou a vida dos aspirantes a advogados é, sem dúvida, ‘Law and Order’ e suas dezenas de spin-offs mundo afora.
Uma das franquias de Law and Order foi parar lá nas terras da rainha como ‘Law and Order UK ’ e encantou o mundo com sua inteligência, sagacidade, troca de farpas em vernáculo cockney, e cenas de (pasme) crimes hediondos na cidade de Londres. Quando eu digo ‘mundo’ aqui acima eu quero dizer ‘eu mesmo’, porque, honestamente, não teve o sucesso esperado pela turma do Dick Wolf no restante do mundo anglófono (e nem nos outros). Diálogos velozes e intrincados, procedimentos legais incompreensíveis e tradições jurídicas sem a menor lógica para nós faziam parte da série ao longo de cada um dos episódios.
Não lembro de ter assistido sequer um episódio de Law and Order UK sem ter que consultar o Black’s Law Dictionary2 e sempre terminava um episódio com um ‘ah, agora entendi’. Entendia 12% (em média) do que se passava na corte e um tanto menos fora delas. Dos tipos penais, do procedimento de dosimetria e do cumprimento das penas, menos ainda.
Ao longo de todas as temporadas, consegui melhorar o meu léxico penal/criminal, mas confesso que a série me forçou a abrir o “Smith, Hogan, and Ormerod's Criminal Law3” algumas vezes nas tardes de domingo.
A primeira coisa que chama a atenção no Law and Order UK é, sem sombra de dúvidas, a vestimenta dos advogados nas cortes criminais. ‘The Wigs and Gowns’ (‘as perucas e togas’, em uma tradução livre). Como tratado no artigo ‘Solicitors e as Brumas de Ávalon’4, quando estivermos tratando de Lawyers que atuam nas causas como procuradores de seus clientes, em todos os mundos jurídicos de tradição Inglesa (exceto nos EUA, por óbvio rompidos desde aquele incidente da independência) falamos de ‘solicitors’ e ‘barristers’. São as profissões jurídicas que estarão lá quando você estiver tratando não só com Britânicos, mas também com Canadenses, Indianos e Australianos5.
Neste artigo, vamos finalmente tratar um pouco sobre o campo de atuação dos barristers, esse advogado especializado na ‘arte’ da ‘advocacy’, que nada mais é do que falar em nome de seu cliente nas cortes em casos criminais.
É exatamente isso: o barrister é o sujeito que você vai ter que contratar (ou que a corte vai nomear) quando você precisar de um procurador nas cortes criminais do sistema, mais especificamente na “Magistrates’ Court” e na “Crown Court” (que atua como o nosso tribunal do júri).
Há, certamente, outros trabalhos que o barrister realiza, mas o que importa agora é você saber que solicitor é uma coisa e barrister é outra. Vamos explicar por partes e com exemplos.
Primeiro de tudo, abra esse mapa aqui que mostra a ‘Structure of the Courts of England and Wales6’. Em segundo lugar, seque a lágrima – é uma vida de estudos só para entender quem é a quo de quem e quem é ad quem de quo. Um sistema irrepetivelmente complexo e criminosamente labiríntico (qualquer semelhança com o mapa do metrô é pura coincidência). Agora, repare ali no canto inferior esquerdo na ‘Magistrates’ Court’.
Essa corte (vou usar o termo ‘corte’ mesmo, apesar de conter certa pompa, porque ‘foro’ é muito geográfico, ‘fórum’ é muito físico, e ‘tribunal’ implica outras competências) é organizada pelo “Magistrates’ Courts Act 19807”, que é como se fosse uma lei de competência federal para nós, mas repare que o UK não é uma federação, portanto não se trata de uma tentativa de se traduzir tortamente a palavra ‘Act’.
A Magistrates Court tem competência para julgar a maioria das ações penais do sistema, isso respeitando-se a sua competência territorial8. Na realidade, 95% de todas as ações penais que lá se iniciam lá se encerram9. Ainda, eles têm competência material inclusive para presidir sobre matérias civis e casos de família (um pouco tangente ao nosso tema do dia, mas você já vai entender o porquê).
A Magistrates Court vai julgar basicamente os seguintes tipos penais: (1) Summary offences10 e (2) Either-way offences11. Não vou me ater a cada um desses tipos, no entanto, adianto que os crimes de menos lesividade (1) são decididos na Magistrates’s Court, e é lá que o ‘defendant’ (o réu) pode insistir que seu caso seja levado perante um júri na Crown Court. Quanto aos chamados (3) Indictable-only offences12, os tipos de maior lesividade, a corte pré-analisa o caso, para libertar o paciente mediante fiança (‘release on bail’), por exemplo, antes de remeter à Crown Court.
A Magistrates’ Court nada mais é do que o reino dizendo para o povo: ‘vai lá e decida você’. Quem se senta na posição de julgador são até cinco pessoas comuns, membros da comunidade, juízes leigos (‘lay judges’) que passaram pelo treinamento específico para a matéria13. Eles são os que se sentam no bench (mais sobre esse termo no próximo artigo) e são assistidos por um juiz togado, o ‘district judge’ ou ‘stipendary judge’ para os mais antigos (usar stipendary judge revela a idade, cuidado).
O caso é apresentado pelo Court Usher e todo reduzido a termo pelo Court Clerk. Sabe-se entre os barristers que eles são as chaves para um caso bem ouvido, mas não espalha. Há supervisão policial em todos os casos (porque nós já sabemos o que pode acontecer).
Como estamos nos atendo ao direito penal (criminal law), o defendant pode escolher ser representado pelo seu barrister ou pode escolher representar-se sozinho. Uma peculiaridade do sistema.
A Crown Court é o tribunal do juri (‘jury trial’), que tem competência para presidir sobre crimes de maior lesividade, como os homicídios dolosos (murder), homicídios culposos (manslaughter), estupros (rapes), e tantos outros. É também a Crown Court que aprecia as apelações (‘appeals’) advindas das decisões guerreadas na Magistrates’ Court, como você consegue perceber no mapa da Structure.
A Crown Court mais famosa do UK é ‘The Old Bailey14’, onde se julgam casos desde o longínquo ano de 1674. É o lindo prédio que aparece nas cenas de Law and Order UK quando os barristers estão atuando e é um ótimo lugar para se visitar como turismo jurídico.
Já a procuradoria é representada pela ‘Crown Prosecution Service’ (CPS). É o reino, representado pela coroa (‘the Crown’), contra o defendant. É por isso que os casos são chamados pelo nome ‘Crown versus Jones’, ‘Crown versus Stuart’, em oposição aos casos criminais nos EUA, onde quem atua no polo passivo é o povo: ‘People v. Jones’, ‘People v. Stuart’. Portanto lá no UK, o juízo se refere ao barrister do defendant como ‘defense council’ e ao barrister da CPS como ‘the Crown’ (igual à série que eu sei que você já viu). Mas requintado mesmo é como todos se referem ao(s) magistrado(s): ‘My Lord’ ou ‘My Lady’. Isso vem de uma tradição antiga da Common Law de dar títulos (de nobreza) aos juízes.
Os britânicos se orgulham da paridade de armas em todas as cortes, é por isso que o(s) magistrado(s) se sentam longe, lá no bench e os barristers, tanto do defendant quanto da CPS permanecem lado a lado, mas para dentro da barra que separa os atores do julgamento do público em geral. Aliás – o primeiro de vários aliáses – é essa a origem da palavra barrister, essa barra de madeira que era utilizada para segurar o povaréu na época em que o juízo era transportado de county em county.
Dá até para pescar a etimologia de barrister do Francês plantageneta ‘barra’. Aliás, exatamente a mesma etimologia da palavra ‘bar’, desses que você vai com seus amigos. Ainda, é por conta do rígido princípio da paridade de armas que todos usam ‘the wigs and gowns’ (as togas e perucas), que lá eles chamam de ‘peruke’ (olha aí o Francês plantageneta novamente). A moda da peruca vem do século 17, quando a nobreza, careca por conta de doenças venéreas, tentava melhorar um pouco a aparência. As perucas foram se sofisticando, à medida que foram adotadas pela nobreza e caíram no gosto do poder judiciário, que notoriamente era composta por membros da nobreza.
Hoje em dia você não consegue comprar um ‘peruke’ nas ‘taliors de jure’ por menos de 500 libras, portanto não se trata de um souvenier disponível a todos (mesmo porque há apenas 2 lojas especializadas no assunto, escolha a sua aqui15). Há perukes específicas para o barrister, outras para o juiz da Crown Court, outra para o da Court of Appeal, com cachinhos e topete, sem rabo de cavalo, com ou sem trancinhas... enfim, vai da cabeça de cada um.
Mas o importante mesmo é saber que tanto o polo passivo quanto o polo ativo no julgamento são extremamente semelhantes externamente por conta dos wigs and gowns, esse protocolo equalizador do sistema. Lá a gravata ou o sapato que o advogado usa não faz diferença para quem está observando de fora. Todos parecem saídos da mesma máquina do tempo para dentro da corte: uma misteriosa elegância incompreendida, um garbo démodé que enfeia a todos solidariamente.
And now, let’s get legal!
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1 https://www.imdb.com/title/tt1166893/
2 https://thelawdictionary.org/
3 https://www.amazon.com/Smith-Hogan-Ormerods-Criminal-Law/dp/0198807090
4 https://www.migalhas.com.br/depeso/371909/solicitors-e-as-brumas-de-avalon
5 Alguns países, notadamente a Africa do Sul, adotam o termo ‘advocate’ para se referirem a ambas as profissões ‘solicitors’ e ‘barristers’; como se o procurador fosse a ‘voz’ dos clientes (vox significa ‘voz’, em latim; ‘vocare’ significa ‘usar a voz’, também em latim).
6 https://www.judiciary.uk/wp-content/uploads/2021/07/courts-structure-0715.pdf
7 https://www.legislation.gov.uk/ukpga/1980/43
8 por exemplo, a Magistrates Court de Londres vai ter competência sobre a crimes (‘offenses’) cometidas tanto na área geográfica da City of London (um distrito administrativamente autônomo, com uma areazinha de menos de 3 km2 que você conhece como ‘Perto do Big Ben’) quanto no Greater London (de 300 km2).
9 https://www.judiciary.uk/you-and-the-judiciary/going-to-court/magistrates-court/
10 “These are less serious cases, such as motoring offences and minor assaults, where the defendant is not usually entitled to trial by jury. They are generally disposed of in magistrates’ courts” (idem).
11 “As the name implies, these can be dealt with either by magistrates or before a judge and jury at the Crown Court. Such offences include theft and handling stolen goods. A defendant can insist on their right to trial in the Crown Court. Magistrates can also decide that a case is so serious that it should be dealt with in the Crown Court – which can impose tougher sentences if the defendant is found guilty”.
12 “such as murder, manslaughter, rape and robbery. These must be heard at a Crown Court”.
13 https://www.judiciary.uk/about-the-judiciary/training-support/judicial-college/magistrates/#criminalcourt
14 https://www.oldbaileyonline.org/static/The-old-bailey.jsp
15 https://evess.co/collections/legal-wigs