Quando montamos o sistema de Holding no planejamento patrimonial de uma família, um dos primeiros passos é transportar os bens pertencentes à pessoa física para dentro do sistema.
Nesse sistema, temos sempre uma empresa que funciona como célula cofre, cuja função será guardar o acervo patrimonial da família para que ele ultrapasse gerações e jamais haja necessidade de herdeiros passarem por inventário para se tornarem donos dos bens.
O caminho que adotamos para isso é a formação de um capital social na empresa que funcionará como célula cofre, num montante que corresponda ao valor dos bens pertencentes à pessoa física.
E não é por acaso que adotamos essa dinâmica, mas por eficiência tributária, já que o próprio Estado tem interesse nela. Vejamos exatamente por que…
Quando uma pessoa física adquire bens, ela guarda esses bens para si.
Quando uma pessoa jurídica adquire bens, em geral, elas os colocam a serviço de sua atividade, o que movimenta a economia, gera empregos, etc.
Em outras palavras, o Estado tem interesse em apoiar as pessoas físicas a colocarem cada vez mais bens dentro das pessoas jurídicas... isso é bom para a economia e para o país.
Há países que vão além de apoiar a transferência de bens a pessoas jurídicas e chegam a inibir as pessoas físicas de permanecerem com bens em nome próprio.
Uma das formas de fazer isso é tributando a herança de forma muito dura. Estados Unidos, Inglaterra, Japão, França, Suíça e Alemanha, por exemplo, tributam a herança em alíquotas que vão de 40% a 55%. Óbvio que com uma cobrança tão alta assim, a finalidade não é arrecadar, mas usar o imposto como um meio de coibir uma conduta que é ruim para o Estado.
No Brasil, a Constituição Federal também previu um mecanismo de impedir que pessoas físicas acumulassem bens em nome próprio. É o Imposto sobre grandes fortunas, de competência da União, previsto no art. 153, VII. No entanto, às vésperas de completarmos 35 anos de Constituição, ele jamais chegou a ser instituído.
Por outro lado, nossa Constituição também previu um mecanismo de apoiar as pessoas físicas a levarem seus bens para dentro de pessoas jurídicas. E este está em plena vigência...
A única forma de uma pessoa física transferir seu patrimônio para uma pessoa jurídica sem ser recebendo por isso e sem que se configure uma doação é através da integralização do capital social.
Este ato não é gratuito, ele é oneroso, já que a empresa, ao receber o pagamento do capital social de um sócio, se obriga a entregar a este os eventuais lucros que vier a ter.
Por isso, para facilitar essa operação, o apoio previsto na constituição para satisfazer a política de estado que estamos analisando foi criar uma imunidade do ITBI para essa transação.
E assim, prevê o art. 156, §2º, inciso I da Constituição Federal1:
"O imposto previsto no inciso II (o ITBI) não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;
Ao lado da Constituição Federal, para assegurar que a política de Estado conseguisse se estabelecer sem embaraços, a legislação do imposto de renda foi alterada, de maneira que o ato de incorporação do imóvel ao patrimônio da empresa em realização de seu capital social pudesse acontecer sem que houvesse a figura do lucro imobiliário (ganho de capital).
Assim, o art. 23 da lei 9249/952 passou a entregar à pessoa física a faculdade de levar os bens para dentro da pessoa jurídica pelo valor de mercado ou pelo valor que está em sua declaração de imposto de renda, de maneira que ela não precise pagar Imposto de Renda nessa operação.
Desde a promulgação da constituição de 1988, quando o ITBI passou a ser de competência dos municípios, essa imunidade sempre foi concedida sem qualquer dificuldade. Não havia uma só cidade no país que criasse algum embaraço.
Essa "paz" durou até 2015, quando dois fatos aconteceram. O primeiro deles foi a crise econômica que o país atravessou. A crise derivou do setor de óleo e gás, quando a operação lava jato deflagrou o escândalo do “petrolão”.
Aquela crise mostrou o quanto nosso país depende desse setor e o quanto alguns estados e municípios dependem quase que exclusivamente dos royalties do petróleo. O estado do Rio de Janeiro, por exemplo, praticamente quebrou naquele momento.
Aliás, em momentos assim, recordamos os ensinamentos do saudoso Professor Carlos Lessa, quando tivemos a oportunidade de dividir a bancada do Conselho Universitário da UFRJ no período de 1999 a 2001. O Prof. Lessa3 repetia inúmeras vezes: "em casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão".
Em 2015, aliado à crise, o STF recebeu um recurso extraordinário sobre o ITBI, ao qual atribuiu Repercussão Geral, enumerado como Tema 796.
Esse recurso especial só foi julgado em 2020 e foi fixada a seguinte tese:
A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado.
Logo de partida, nos parece que o STF disse exatamente o óbvio. Primeiro porque o art. 156, §2º, I da Constituição diz que o ITBI "não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital".
Ao lembrar que o art. 111, inciso II do CTN determina que a lei tributária que disponha sobre isenções deve ser interpretada literalmente, parece mesmo óbvio que a imunidade do ITBI na integralização de capital não alcança aquilo que extrapola o montante necessário à formação de capital social.
Ora, mas o que algumas prefeituras passaram a fazer a partir de então… ???
Com essa discussão do VALOR empregado na realização do capital social, elas passaram a adotar uma conduta que consideramos inadequada…
Alegando o novo entendimento do STF (em 2015 o entendimento era do TJSC), dizendo que a imunidade não alcança o VALOR dos bens que ultrapassar o capital social, aliado ao fato dos contribuintes realizarem esse capital pelo valor de aquisição dos bens (valor da Declaração de Imposto de Renda), essas prefeituras passaram a exigir o ITBI sobre a diferença entre o valor usado na integralização e o valor de mercado.
Mas a conduta dessas prefeituras não seria lícita?
Nos antecipamos em afirmar que não. Não é lícita do ponto de vista técnico tributário e não é lícita por uma questão principiológica, pois atrapalha uma política de Estado que é pensada e desenvolvida para o bem de todos.
Vejamos cada um desses dois pontos.
Quando se fala em valor dos bens na apuração do ITBI, estamos tratando de sua base de cálculo, cuja matéria está disciplinada no art. 38 do CTN: “A base de cálculo do imposto é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos.”
Nossa primeira missão é acabar de uma vez por todas com a ideia equivocada de que valor venal é sinônimo de valor de mercado. Não é! Valor venal, atendendo à própria designação do vocábulo, é valor da venda. Em termos mais amplos é o valor da operação.
Se um imóvel está sendo vendido por R$ 1.000, esse é o valor da operação. Se um imóvel é transferido a uma pessoa jurídica em realização de capital por R$ 1.000, esse é o valor da operação.
Aliás, vejamos o que pensa o STJ a esse respeito. Naquela Corte há uma centena de julgados sobre esse assunto, de forma completamente pacificada. Isso porque são inúmeros os casos em que pessoas compram imóveis muito abaixo do valor de mercado, em geral, quando o fazem em hasta pública.
Vejamos um exemplo ilustrativo:
TRIBUTÁRIO. BASE DE CÁLCULO PARA A INCIDÊNCIA DO ITBI. ARREMATAÇÃO EM HASTA PÚBLICA. VALOR ARREMATADO. MOMENTO DO FATO GERADOR. REGISTRO DO IMÓVEL.
I - O Superior Tribunal de Justiça possui jurisprudência pacífica no sentido de que o valor venal para fins de composição da base de cálculo do ITBI é aquele consignado no próprio ato de arrematação.
Precedentes: AgRg no AREsp 818.785/SP, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 3/5/16, DJe 13/5/16; AgRg no REsp 1565195/MG, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/12/2015, DJe 14/12/15; AgRg no AREsp 630.603/PR, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 10/03/2015, DJe 13/3/15.
[...]
III - Agravo conhecido para negar provimento ao recurso especial
Contudo, há casos de possíveis fraudes ou simulações. E é óbvio que o Fisco não fica à mercê de qualquer espécie de declaração do contribuinte.
O ato do contribuinte em que ele declara a existência de uma operação para que a autoridade fiscal diga se há e o quanto há a pagar se chama Lançamento e está previsto no art. 142 do CTN:
Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.
Esse lançamento pode se dar por informação da própria prefeitura (a exemplo do IPTU) ou pode se dar por declaração do particular, quando informa o valor da operação, como é o caso do ITBI, conforme se vê no art. 147 do CTN:
Art. 147. O lançamento é efetuado com base na declaração do sujeito passivo ou de terceiros, quando um ou outro, na forma da legislação tributária, presta à autoridade administrativa informações sobre matéria de fato, indispensáveis à sua efetivação.
Contudo, há momentos em que a prefeitura pode desconsiderar essa declaração do contribuinte e arbitrar aquele que entende por correto. Essa previsão deriva de uma regra a ser seguida e está no art. 148 do CTN:
Art. 148. Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial.
Aqui podemos ter uma primeira resposta bem assertiva à pergunta que fizemos acima sobre a licitude do ato da prefeitura que cobra ITBI sobre a diferença entre valor de mercado e o valor da operação feito com base na declaração de imposto de renda.
Veja-se do art. 148 acima que só há duas ocasiões em que a prefeitura está autorizada a arbitrar o valor ou preço da operação: quando for omisso ou não merecer fé. Descartamos de plano a omissão, pois o valor é declarado, certo e corresponde ao montante de capital social que se pretende integralizar, em cada centavo.
Ora, mas acontecem casos em que o valor que está na declaração é realmente muito abaixo do valor de mercado. Nesse caso a operação é digna de fé?
SIM, sempre será digna de fé, pois não brotou da imaginação do contribuinte. Esse valor vem de uma autorização expressa da lei (art. 23 da lei 9249/95), que dá à pessoa física a faculdade de integralizar o capital social com seus bens pelo valor que este estiver em sua declaração de imposto de renda.
Assim como o STJ considera que não deixa de ser digno de fé o valor autorizado pelo Juiz para arrematação de um imóvel em hasta pública, com muito mais razão não deixa de ser digno de fé o valor empregado com base numa autorização legislativa (cujo poder realmente emana do povo).
Novamente: possibilitar que os particulares levem seus bens para dentro de uma empresa sem serem tributados com isso não é uma benesse da lei, mas uma política de Estado construída para o bem de todos.
O Estado tem interesse que a pessoa física faça isso. E, nesse ponto, as prefeituras que vêm adotando conduta opositora estão ofendendo esse interesse nacional.
A propósito, sobre a prevalência do interesse público das políticas de estado, veja-se os Embargos de Divergência no recurso especial 1.517.492 do Paraná, julgado no STJ sob a relatoria do Ministro Og Fernandes, em fevereiro de 2017:
TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. ICMS. CRÉDITOS PRESUMIDOS CONCEDIDOS A TÍTULO DE INCENTIVO FISCAL. INCLUSÃO NAS BASES DE CÁLCULO DO IMPOSTO SOBRE A RENDA DA PESSOA JURÍDICA - IRPJ E DA CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO LÍQUIDO - CSLL. INVIABILIDADE. INTERFERÊNCIA DA UNIÃO NA POLÍTICA FISCAL ADOTADA POR ESTADO-MEMBRO. OFENSA AO PRINCÍPIO FEDERATIVO E À SEGURANÇA JURÍDICA. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO FEDERATIVO. ICMS NA BASE DE CÁLCULO DO PIS E DA COFINS. INCONSTITUCIONALIDADE ASSENTADA EM REPERCUSSÃO GERAL PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (RE 574.706/PR). AXIOLOGIA DA RATIO DECIDENDI APLICÁVEL À ESPÉCIE. CRÉDITOS PRESUMIDOS. PRETENSÃO DE CARACTERIZAÇÃO COMO RENDA OU LUCRO. IMPOSSIBILIDADE.
[...] IV – Tal entendimento leva ao esvaziamento ou redução do incentivo fiscal legitimamente outorgado pelo ente federativo, em especial porque fundamentado exclusivamente em atos infralegais, consoante declinado pela própria autoridade coatora nas informações prestadas.
V – O modelo federativo por nós adotado abraça a concepção segundo a qual a distribuição das competências tributárias decorre dessa forma de organização estatal e por ela é condicionada.
VI – Em sua formulação fiscal, revela-se o princípio federativo um autêntico sobreprincípio regulador da repartição de competências tributárias e, por isso mesmo, elemento informador primário na solução de conflitos nas relações entre a União e os demais entes federados. [...]
VIII – A concessão de incentivo por ente federado, observados os requisitos legais, configura instrumento legítimo de política fiscal para materialização da autonomia consagrada pelo modelo federativo. Embora represente renúncia a parcela da arrecadação, pretende-se, dessa forma, facilitar o atendimento a um plexo de interesses estratégicos para a unidade federativa, associados às prioridades e às necessidades locais coletivas.
IX – A tributação pela União de valores correspondentes a incentivo fiscal estimula competição indireta com o Estado-membro, em desapreço à cooperação e à igualdade, pedras de toque da Federação.
X – O juízo de validade quanto ao exercício da competência tributária há de ser implementado em comunhão com os objetivos da Federação, insculpidos no art. 3º da Constituição da República, dentre os quais se destaca a redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III), finalidade da desoneração em tela, ao permitir o barateamento de itens alimentícios de primeira necessidade e dos seus ingredientes, reverenciando o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento maior da República Federativa brasileira (art. 1º, III, C.R.).
XI – Não está em xeque a competência da União para tributar a renda ou o lucro, mas, sim, a irradiação de efeitos indesejados do seu exercício sobre a autonomia da atividade tributante de pessoa política diversa, em desarmonia com valores éticos-constitucionais inerentes à organicidade do princípio federativo, e em atrito com o princípio da subsidiariedade, que reveste e protege a autonomia dos entes federados.
XII – O abalo na credibilidade e na crença no programa estatal proposto pelo Estado-membro acarreta desdobramentos deletérios no campo da segurança jurídica, os quais não podem ser desprezados, porquanto, se o propósito da norma consiste em descomprimir um segmento empresarial de determinada imposição fiscal, é inegável que o ressurgimento do encargo, ainda que sob outro figurino, resultará no repasse dos custos adicionais às mercadorias, tornando inócua, ou quase, a finalidade colimada pelos preceito legais, aumentando o preço final dos produtos que especifica, integrantes da cesta básica nacional.
XIII – A base de cálculo do tributo haverá sempre de guardar pertinência com aquilo que pretende medir, não podendo conter aspectos estranhos, é dizer, absolutamente impertinentes à própria materialidade contida na hipótese de incidência. [...]
XVI – Embargos de Divergência desprovidos.
Aplaudimos de pé o acórdão acima. Note-se que muito pouco se aponta dispositivos normativos, mas é quase que inteiramente fundamento em princípios de direito.
De todo o exposto, podemos concluir ser ilícita a conduta adotada por algumas prefeituras municipais no sentido de cobrar ITBI no ato de integralização de capital social com bem imóvel sobre a diferença entre o valor que consideram ser valor de mercado e o valor empregado na integralização, com base na declaração de imposto de renda da pessoa física que dá o bem em pagamento.
Primeiramente, trata-se de conduta que ofende a norma jurídica, já que a base de cálculo do ITBI é o valor da operação, que pode ou não coincidir com o valor de mercado.
Depois, trata-se de conduta que ofende o princípio federativo, uma vez que a prefeitura está invadindo uma política de incentivo fiscal conferida por outro ente membro da federação.
1 Ver Constituição Federal no sítio do Governo Brasileiro, em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm
2 Ver a Lei 9249 de 1995 no sítio do Governo Brasileiro em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9249.htm
3 Ver breve biografia do Prof. Carlos Lessa em: https://en.wikipedia.org/wiki/Carlos_Lessa