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Por que o mercado da moda é inovador mesmo sem um sistema robusto de propriedade intelectual?

O segmento da moda comporta inovação mesmo com um cenário de low-IP equilibrium porque, ao contrário do que normalmente se pensa com as aplicações tradicionais de propriedade intelectual, o cenário de baixa proteção ajuda a fomentar a inovação.

9/9/2022

As modas são, por definição, fenômenos temporários e cíclicos adotados pelas pessoas para situações e momentos particulares.1 As tendências são cíclicas e sofrem influências diversas, como das diferentes estações do ano, de correntes artísticas e culturais e até mesmo de movimentos político-sociais. Embora as mudanças normalmente não sejam no desenvolvimento de novos tipos de tecidos e acabamentos, mas na criação de designs, a inovação é uma constante no segmento da moda. O recorrente resgate de tendências do passado, bem como a realização de releituras de designs clássicos, não retira da moda o seu cerne inovativo. Em muitos casos, a inovação está justamente na capacidade de construir a partir da reunião de um conjunto de referências de obras já feitas.

Por outro lado, a moda não é protegida por um sistema forte de propriedade intelectual. O fenômeno denominado pela doutrina estrangeira como "low-IP equilibrium" ("equilíbrio de baixa propriedade intelectual") consiste na capacidade muito limitada das principais formas de propriedade intelectual existentes no direito atual, em fornecer proteção jurídica às criações.2

Embora a proteção às criações da moda seja garantida com base nos princípios e regras gerais previstos na Constituição Federal e nas leis de direitos autorais (lei 9.610/98) e de propriedade industrial (lei 9.279/96), na prática os institutos legais somente são capazes de fornecer níveis muito baixos de proteção. No âmbito dos direitos autorais, embora os desenhos se enquadrem no rol de obras intelectuais protegidas previsto no art. 7 da lei 9,610/68, o seu uso na indústria têxtil enseja hipótese de exceção de tal proteção, conforme o art. 8, VII, do mesmo diploma legal. Segundo esse dispositivo, se as ideias contidas na obra são utilizadas para aproveitamento industrial ou comercial, como é o caso,3 elas deixam de ser protegidas pelos direitos do autor.

Já no âmbito da propriedade industrial, a lei 9.279/96 traz três possíveis institutos jurídicos que poderiam proteger as criações: a patente, o desenho industrial e a marca. Conforme os artigos 11 e 96 da lei, a patente e o desenho industrial exigem uma invenção, um modelo de utilidade ou um desenho que não seja compreendido no estado da técnica. Isso significa que novos tipos de tecido e técnicas para produção poderiam ser eventualmente protegidos pela patente, mas o mesmo não se aplica às criações de moda como regra. Ainda que elas possam apresentar diferentes combinações de cores e texturas, as criações normalmente continuam se enquadrando nos conceitos de peças de roupa que já conhecemos. Por mais que uma camiseta tenha estampas diferenciadas ou listras de cores ousadas, ela continua sendo uma camiseta, possuindo elementos já compreendidos no atual estado da técnica, não podendo então ser protegida pelos institutos da patente e do desenho industrial. Por fim, conforme o art.122 da lei, a proteção trazida pela marca se restringe aos sinais distintivos, como por exemplo o logo de uma fabricante de roupas, não podendo ser aplicada para defender as criações da moda de modo geral.4

Como então o segmento da moda consegue ser inovador, mesmo tendo níveis tão baixos de proteção pelos institutos jurídicos de propriedade intelectual previstos em nosso ordenamento?

Para responder essa pergunta, é importante compreender o funcionamento dos ciclos de tendências da moda. Segundo uma das teorias mais empregadas para explicar a lógica das tendências, denominada Zeitgeist, a moda funciona a partir de um processo coletivo no qual as pessoas, por meio de suas escolhas individuais frente a uma variedade de estilos de roupas que competem entre si, formam gostos coletivos que são expressos por meio das tendências. É um processo que começa difuso e se afunila até formar uma moda em particular. 

Essa concepção é muito interessante porque contraria a teoria que predominava anteriormente (a chamada trickle-down theory, ou teoria do gotejamento), segundo a qual as tendências surgem a partir das elites, e como as pessoas no geral querem seguir as classes sociais mais altas, passam a copiar o seu estilo. A teoria Zeitgeist, por outro lado, defende que as tendências não necessariamente emergem das elites, o que de fato pode ser facilmente verificável no processo de formação de várias tendências. O surgimento da moda punk é um grande exemplo disso, tendo vindo de um contexto de contracultura e tribos urbanas, passando longe da realidade das elites e das classes sociais mais altas. O emprego de materiais como couro e látex, bem como o uso de jaquetas, coturnos e correntes, passou a incorporar diversas tendências até os dias atuais. Seguindo caminho contrário ao que defende a trickle-down theory, esses elementos da moda punk vieram a ser empregados até mesmo pelas marcas de alto luxo (basta analisar por exemplo algumas características das peças das coleções de inverno 2022/23 apresentadas pela Versace e pela Dolce & Gabbana na Semana de Moda de Milão).

Nesse cenário, o que a teoria Zeitgeist propõe é que as pessoas não seguem as tendências porque querem se parecer com as elites, mas porque querem estar na moda, se associando com o que é novo, inovador e está em alta, e acompanhando as mudanças da coletividade do grupo a que pertencem.6 Na prática, a moda funciona como uma forma de expressão, uma espécie de linguagem nas interações sociais. O modo de se vestir reflete gostos, valores, bandeiras, pertencimento a grupos e a própria identidade das pessoas. Essa forte interação com os fenômenos e acontecimentos da sociedade é justamente um dos motores que movem os ciclos de tendências e possibilitam a inovação no segmento da moda. Outro aspecto fundamental, que também move essas mudanças, é a tensão constante entre o desejo de se conectar com a coletividade e o desejo de se diferenciar como indivíduo. Se por um lado o desejo de se conectar com a coletividade possibilita a formação das tendências, por outro o desejo de se diferenciar como indivíduo fomenta mudanças nos estilos, contribuindo na a transição para as novas tendências.

A rápida e ampla difusão de uma tendência é, ao mesmo tempo, a razão para o seu fim e o combustível para o surgimento de outras novas para substituí-la. Ou seja, o sucesso de uma moda é justamente o que promove o surgimento de outras e, portanto, a inovação.

Essa rapidez no surgimento das tendências, que é crucial para o processo inovativo, só é possível graças ao cenário de low-IP equilibrium. Quando as tendências são lançadas pelas grifes, é natural que marcas que vendem produtos a preços menores desenvolvam produtos claramente semelhantes ou até mesmo quase idênticos, com o objetivo de atingir as outras classes sociais. Players do mercado de fast fashion7, como Zara, C&A e Shein, são conhecidas por se utilizarem dessas práticas. Mesmo quando não se trata de grifes, o simples fato de um produto estar na moda já é motivo suficiente para as diversas marcas lançarem produtos com características semelhantes, a fim de se incluir nas tendências e aumentar as vendas.

No limite, o sistema de baixa propriedade intelectual é propriamente um dos combustíveis para as mudanças na moda. Até por isso, é raro ver projetos legislativos ou lobby a fim de promover maior proteção aos players da indústria têxtil, diferente do que ocorre em outras indústrias, como por exemplo na farmacêutica. Há uma frase célebre de Miuccia Prada, designer-chefe da Prada, que demonstra como esse cenário é desejável pelas próprias empresas: “Nós deixamos que os outros nos copiem. E quando o fazem, nós a largamos” (se referindo às tendências criadas pela Prada)8. Esse fenômeno é chamado de "obsolescência induzida”.9

É importante ressaltar que tal fenômeno não se limita a um simples processo de cópia das tendências. Embora em muitos casos os resultados sejam bastante semelhantes, de um modo geral as tendências funcionam como um agrupamento de uma série de características nos produtos. Nesse ínterim, se uma marca lança uma peça que entra na moda, as suas concorrentes possivelmente vão lançar produtos que seguem essa moda, empregando alguns elementos da referida peça, como mesma cor, material semelhante ou até mesmo desenhos que fazem claras referências à peça, mas nem sempre fazendo meras cópias idênticas do produto.

Essa dinâmica de referências é, afinal, comum a todo o segmento da moda. Os desenhos são constantemente influenciados por tendências do presente ou do passado, de modo que um sistema muito restritivo de propriedade intelectual impediria o próprio funcionamento da moda da forma que conhecemos.

Portanto, o segmento da moda comporta inovação mesmo com um cenário de low-IP equilibrium porque, ao contrário do que normalmente se pensa com as aplicações tradicionais de propriedade intelectual, o cenário de baixa proteção ajuda a fomentar a inovação.

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SPROLES, George B.. Analyzing Fashion Life Cycles: principles and perspectives. Journal Of Marketing. p. 116-124, 1981. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/1251479. Acesso em: 5 jul. 2022.

2 RAUSTIALA, Kal; SPRIGMAN, Christopher Jon. The Piracy Paradox: innovation and intellectual property in fashion design. Virginia Law Review, Richmond, v. 92, n. 111, p. 1687-1777, nov. 2006, p. 1699. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=878401. Acesso em: 7 jul. 2022.

3 Seria possível argumentar pela ausência de caráter industrial ou comercial em situações excepcionais, como no caso de peças confeccionadas sob encomenda ou para exibição em situações específicas como desfiles e eventos, situações típicas da chamada alta-costura.

4 ZORATTO, M.; EFING, A. C. Das limitações da relação entre direito da moda e direito de propriedade intelectual. civilistica.com, v. 10, n. 1, p. 1-17, 2 maio 2021. p. 11-12.

5 HEMPHILL, C. Scott; GERSEN, Jeannie Suk. The Law, Culture, and Economics of Fashion. Stanford Law Review, Alabama Maior, v. 61, p. 1147-1199, jan. 2009, p. 1157. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1323487. Acesso em: 10 jul. 2022.

6 Ibidem, p. 1158.

7 Fast fashion é o nome dado às modas que possuem ciclos muito rápidos de produção, consumo e descarte, normalmente com o emprego de materiais de baixo custo e qualidade inferior. Atualmente existem muitas discussões acerca dos impactos negativos ambientais e sociais do fast fashion. 

8 LAU, Evelyn. See what famous designers have said over the years about being copied. 2015. Disponível em: https://www.thenationalnews.com/arts/see-what-famous-designers-have-said-over-the-years-about-being-copied-1.4178. Acesso em: 12 jul. 2022.

9 HEMPHILL, C. Scott; GERSEN, Jeannie Suk. The Law, Culture, and Economics of Fashion. Stanford Law Review, Alabama Maior, v. 61, p. 1147-1199, jan. 2009, p. 1181. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1323487. Acesso em: 10 jul. 2022.

Ivan Lago Mariotto
FGV Direito SP. Tecnologia, proteção de dados e direito concorrencial/antitruste.

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