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Aplicação do princípio da candura perante a corte pelo STJ

Pode-se dizer finalmente que a candura processual está em consonância inclusive com princípios da Lei de Proteção de Dados, no que se refere ao dever de transparência e legitimo interesse da parte.

9/9/2022

O Superior Tribunal de Justiça no mês de junho desse ano negou provimento a Agravo Interno em Embargos de Declaração no Recurso em Mandado de Segurança 34.477 e aplicou o princípio da candura perante a Corte. O princípio é utilizado no Estado de Massachusetts nos EUA e prevê que a parte tem o dever de sinceridade com o Tribunal, ainda que em discordância com os fatos e a lei aplicável no caso em julgamento.

A regra é estabelecida para evitar condutas que possam prejudicar a integridade processual. No caso em comento, o Superior Tribunal de Justiça aplicou o princípio e determinou a fixação de multa de 5% do valor atualizado da causa, fazendo uma relação de violação aos princípios da boa-fé processual e do dever de cooperação das partes, uma vez que o recorrente tentou fazer incidir tese vinculante expressamente rechaçada pelo próprio precedente. Note-se que em sistemas processuais amadurecidos reconhece-se não só a exigência de articulação dos fatos de acordo com a verdade, mas também que a parte exponha à Corte até mesmo os precedentes contrários a pretensão do seu cliente no recurso.

O Princípio da Candura Perante a Corte – Condor Toward the Court, que em sua tradução livre, significa “sinceridade para com o Tribunal”, fora abordado na decisão do AgInt nos EDcl no RMS: 34477 DF 2011/0109870-1 pelo STJ.

Tal princípio decorre do livro de Regras e ordens da Corte Suprema de Massachusetts1, a regra em questão é a de número 3.3.

Em curto relato, a norma diz que o advogado ainda que discorde dos fatos tem o dever de articulá-los conforme a verdade, deixando de fazer falsas declarações de fatos ou lei, não corroborar com testemunhos fraudulentos e quando souber que algum cliente esteja produzindo provas inverídicas, deve tomar as medidas necessárias.

O princípio foi estabelecido para evitar condutas que possam prejudicar a integridade do processo ou conduzir à corte em erro, deve, portanto, o profissional agir de forma que o tribunal não seja coagido erroneamente ou que seja contaminado por provas inverídicas e falsas declarações de direito, independentemente da vontade de seu cliente.

Adentrando na decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, importante destacar que o princípio da candura foi utilizado, através de uma relação com o princípio da boa-fé processual e do dever de cooperação das partes:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. ATUALIZAÇÃO DE QUINTOS INCORPORADOS. MANUTENÇÃO DE PAGAMENTO APÓS JULGAMENTO ADMINISTRATIVO. ERRO OPERACIONAL. IRRELEVÂNCIA. TESE REPETITIVA 1.009/STJ. INAPLICABILIDADE. MODULAÇÃO TEMPORAL EXPRESSA. INVOCAÇÃO DE PRECEDENTE VINCULANTE MANIFESTAMENTE INAPLICÁVEL. VIOLAÇÃO DOS DEVERES DE COOPERAÇÃO, BOA-FÉ E LEALDADE PROCESSUAL. PRINCÍPIO CANDOR TOWARD THE COURT (CANDURA PERANTE A CORTE). DUTY TO DISCLOSE ADVERSE AUTHORITY (DEVER DE EXPOSIÇÃO DE PRECEDENTE VINCULANTE ADVERSO). DESCABIMENTO MANIFESTO DA INSURGÊNCIA. MULTA. 1. O desconto de valores recebidos de boa-fé pelo servidor, quando decorrentes de erro operacional da administração, só é possível nos casos distribuídos após a publicação do acórdão em que se fixou a Tese de recurso repetitivo 1.009/STJ. 2. Em sistemas processuais com modelo de precedentes amadurecido, reconhece-se a exigência não só de que os patronos articulem os fatos conforme a verdade, mas que exponham à Corte até mesmo precedentes contrários à pretensão do cliente deles. Evidentemente, não precisam concordar com os precedentes adversos, mas devem apresentá-los aos julgadores, desenvolvendo argumentos de distinção e superação. Trata-se do princípio da candura perante a Corte (candor toward the Court) e do dever de expor precedente vinculante adverso (duty to disclose adverse authority). 3. O presente caso não exige tamanha densidade ética. No entanto, não se pode ter como razoável que a parte sustente a pretensão em precedente manifestamente contrário ao caso em tela, apontando-o como vinculante em hipótese que teve sua incidência patentemente excluída, por força de modulação, omitindo-se sobre a existência da exceção. 4. A invocação do precedente vinculante na hipótese temporal expressamente excluída de sua incidência pelo próprio julgamento controlador configura violação dos deveres de lealdade, de boa-fé e de cooperação processual, ensejando a aplicação da multa do art. 1.021, § 4º, do CPC/15, ante manifesta inadmissibilidade. 5. Agravo interno a que se nega provimento, com imposição de multa, fixada em 5% do valor atualizado da causa.

(STJ - AgInt nos EDcl no RMS: 34477 DF 2011/0109870-1, Data de Julgamento: 21/6/22, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 27/6/22)

O agravo em discussão teve o provimento negado com a imposição de multa em 5% do valor atualizado da causa. Segundo o Relator, a pretensão da agravante de fazer incidir tese vinculante na hipótese expressamente rechaçada pelo próprio precedente, configurou violação dos princípios da boa-fé processual e do dever de cooperação das partes, previstos nos artigos 5º e 6º do Código de Processo Civil, de 2015.

Nessa toada, temos que os princípios se assemelham quanto o dever de sinceridade para com o juízo, entretanto, a norma americana se diferencia da brasileira na aplicabilidade, enquanto naquela, o recurso deve conter argumentações com teses favoráveis e desfavoráveis ao caso em julgamento, para que o julgador escolha a melhor opção para o caso. A legislação nacional determina que o recurso contenha articulações com fatos verdadeiros e as partes cooperem com o juízo, porém, sem precisar demonstrar teses contrárias ao precedente que pretende combater no processo.

Em paralelo, pode-se dizer finalmente que a candura processual está em consonância inclusive com princípios da Lei de Proteção de Dados, no que se refere ao dever de transparência e legitimo interesse da parte.

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https://archives.lib.state.ma.us/bitstream/handle/2452/860645/on1338164765.pdf?sequence=1&isAllowed=y

Cássio Aurelio Servidone
Pós-Graduado em Direito Processual Cível. Associado do Pereira Gionédis Advogados.

Maria Amelia Mastrorosa Vianna
Sócia do Pereira Gionédis Advogados, especialista em Processo Civil pelo Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos (Ibej), Diretora Institucional do Cesa-PR, Presidente da Comissão de Sociedades de Advogados da OAB-PR, conselheira estadual da OAB-PR.

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