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A morte de um sócio torna a sociedade irregular?

Não há que se falar em irregularidade quando há o falecimento de um deles, pelo menos não enquanto suas respectivas quotas estejam provisoriamente sendo titularizadas pelo espólio, ou seja, em condomínio pelos herdeiros.

6/9/2022

A lei 13.874/19 (“Lei da Liberdade Econômica” ou “LLE”) trouxe importantes alterações no direito privado e, particularmente, para o direito societário quando, alterando o art. 1.052 do Código Civil (“CC”), permitiu que as sociedades limitadas passassem a ser unipessoais, i.e., pudessem ter apenas um sócio.

Antes disso, a unipessoalidade (acidental ou não) da sociedade limitada era uma das causas de dissolução total da sociedade (art. 1.033, IV, do CC), acaso a pluralidade de sócios não fosse recomposta em até 180 dias. Todavia, uma dúvida que surge, com certa frequência, diz respeito a regularidade da sociedade que tenha perdido a sua pluralidade antes do advento da LLE e, especificamente, da lei 14.195/21 que, expressamente, revogou o art. 1.033, IV, do CC.

Vale dizer, em uma sociedade limitada com apenas dois sócios, se um deles falecer antes do advento da LLE e da lei 14.195/21, a sociedade se torna irregular após ultrapassados os 180 dias?

E a resposta nos parece ser negativa. Mesmo antes da entrada em vigor da LLE, o falecimento de um sócio de uma sociedade limitada que só possuía dois sócios em seus quadros sociais não implicaria, necessariamente, em sua irregularidade, ainda que ultrapassados os 180 dias que estavam previstos no art. 1.033, IV, do CC antes da alteração promovida pela lei 14.195/21 sem que a pluralidade de sócios fosse recomposta.

Com efeito, sabe-se que o art. 1.033, IV, do CC1, em sua redação original, previa que qualquer sociedade contratual se dissolveria se não fosse recomposta a pluralidade de sócios.

Esse dispositivo estava em consonância com a definição legal de “sociedade”, a saber, um contrato entre um ou mais sócios para compartilhar recursos e esforços e partilhar os resultados entre si (art. 981 do CC2).

Em sendo um contrato, não é possível que seja celebrado consigo mesmo, denotando-se, portanto, a necessidade de haver uma pluralidade de pessoas.

Ocorre, entretanto, que o tratamento a ser dado para o sócio que vem a óbito é dado pelo art. 1.028 do CC3.

Desse modo, são três as exceções à regra geral de liquidação das quotas do sócio falecido: (i) seguir o tratamento dispensado no contrato social (que deve ser diferente da regra geral); (ii) a sociedade será liquidada por inteiro; (iii) os sócios remanescentes podem admitir a entrada dos herdeiros em substituição ao autor da herança. Esta última hipótese nos parece ser a chave para a questão.

É que, se o contrato dispuser o tratamento a ser dado às quotas do sócio falecido, deve-se se seguir essa disposição, sem maiores discussões.

No caso da cláusula contratual, que tem natureza de estipulação em favor de terceiro4, é óbvio que o ingresso dos herdeiros no quadro societário dependerá da manifestação deles, pois a declaração de vontade do sucedido não pode criar obrigações para eles. Trata-se de direito potestativo dos herdeiros, o ingresso na sociedade, no caso de previsão contratual (cláusula de continuidade)5. Os sócios remanescentes, salvo estipulação diversa do contrato social, não possuem o direito de recusar o ingresso dos herdeiros que exerceram o direito potestativo de entrada na sociedade que lhe era assegurado no contrato social6.

Por outro lado, se o sócio remanescente tiver interesse em liquidar a sociedade, então passar-se-á imediatamente a esse procedimento, sendo despicienda a sua continuidade (regular ou não).

Já se o sócio remanescente não tiver interesse em admitir os herdeiros na sociedade, deve promover, desde logo, a liquidação das quotas e buscar a recomposição do quadro social.

Somente quando o sócio remanescente tiver algum interesse em admitir a entrada dos herdeiros na sociedade, é que remanesce a importância de se discutir sobre a continuidade da sociedade após a morte de seu único outro sócio.

Observa-se que o legislador não explicitou um prazo para que os sócios remanescentes chegassem a um acordo com os herdeiros do sócio falecido quanto ao tratamento das quotas do autor da herança.

Assim, são possíveis duas interpretações: (i) o prazo para negociação dessas quotas seria o de 180 dias corridos previsto no art. 1.033, IV, do CC para recomposição da pluralidade de sócios; ou (ii) a liquidação das quotas está condicionada ao encerramento do inventário sem que um acordo seja alcançado entre herdeiros e os sócios remanescentes quanto à entrada destes na sociedade.

A primeira hipótese não nos parece razoável. Com efeito, sabe-se que dificilmente um inventário, mesmo os extrajudiciais, são concluídos em menos de 6 meses (180 dias) do óbito do inventariado. Muitos são os interesses a serem conciliados e as obrigações administrativas e tributárias que precisam ser cumpridas, antes que a sucessão se encerre.

Por sua vez, a sociedade fica à mercê do destino do inventário, pois, enquanto este não se encerrar, o sócio remanescente não pode sequer admitir os herdeiros do sócio falecido nos quadros sociais enquanto o quinhão de cada um não for esclarecido.

Por outro lado, com o falecimento do sócio, suas quotas passam a ser titularizadas em condomínio por todos seus herdeiros, por força do droit de saisine, consoante arts. 1.784 e 1.791 do CC7.

Entretanto, salvo disposição em contrário no contrato social, a entrada de terceiros na sociedade está condicionada à não-rejeição de mais de 25% do capital social8.

Ora, assumindo-se que o sócio remanescente deseja, ao menos a priori, que os herdeiros assumam a posição no quadro social deixada pelo autor da herança, mas não o pode fazer enquanto não concluído inventário, é razoável concluir-se que a aplicabilidade do art. 1.033, IV, do CC (em sua redação original) a essa sociedade fica suspensa até que o inventário se conclua, eis que esse, necessariamente, deverá tratar do destino das quotas do falecido.

Assim, enquanto não finalizado o inventário do sócio falecido, suas quotas passam a ser titularizadas temporariamente pelo seu respectivo espólio, tenha ou não havido alteração do contrato social da sociedade para informar acerca do falecimento. Vem se admitindo, em prol da própria sociedade o imediato ingresso do espólio como sócio9. Assim, “o espólio deverá exercer os direitos e obrigações do falecido na sociedade, até que seja definida e homologada a partilha”10. 

Durante a titularização das quotas do sócio falecido pelo seu respectivo espólio, deve ser compreendido que há um condomínio das quotas do sócio falecido entre todos os herdeiros, cabendo ao inventariante o exercício dos direitos inerentes a tais quotas, conforme art. 1.056, § 1º, do Código Civil11.

Essa titularização temporária das quotas pelo espólio é de fundamental importância para permitir a continuidade da empresa, bem como para que os herdeiros enquanto pendente o inventário que definirá a solução a ser conferida às quotas do sócio falecido.

A legitimidade para ingressar na sociedade será dos herdeiros e não do espólio, a princípio, porque o espólio não é uma pessoa e, por isso, não deveria ser admitido como sócio. Todavia, a necessidade de definição de quais herdeiros terão esse direito de ingressar na sociedade pode demorar muito tempo, na medida em que os próprios inventários podem ser demorados. Diante disso, vem se admitindo, em prol da própria sociedade o imediato ingresso do espólio como sócio12. Assim, “o espólio deverá exercer os direitos e obrigações do falecido na sociedade, até que seja definida e homologada a partilha” 13. 

Nesse sentido, veja-se o entendimento jurisprudencial do c. Superior Tribunal de Justiça:

“O falecimento dos sócios da locatária não implica na extinção da sociedade, que, inclusive, pode adquirir as próprias quotas, temporariamente, até que se aperfeiçoe a sucessão "mortis causa". (STJ, REsp 66.812/DF, Rel. Ministro ANSELMO SANTIAGO, SEXTA TURMA, julgado em 19/5/98, DJ 22/6/98, p. 183)

“O falecimento de um dos sócios, embora possa gerar o encerramento das atividades da empresa, em função da unipessoalidade da sociedade limitada, não necessariamente importará em sua dissolução total, seja porque a participação na sociedade é atribuída, por sucessão causa mortis, a um herdeiro ou legatário, seja porque a jurisprudência tem admitido que o sócio remanescente explore a atividade econômica individualmente, de forma temporária, até que se aperfeiçoe a sucessão” (STJ, REsp 846.331/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 23/3/10, DJe 6/4/10)

Assim, mesmo antes da entrada em vigor dos novos textos legislativos, em uma sociedade limitada de apenas dois sócios, não há que se falar em irregularidade quando há o falecimento de um deles, pelo menos não enquanto suas respectivas quotas estejam provisoriamente sendo titularizadas pelo espólio, ou seja, em condomínio pelos herdeiros.

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1 Art. 1.033. Dissolve-se a sociedade quando ocorrer:

[...]

IV - a falta de pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de cento e oitenta dias [...].

2 Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.

3 Art. 1.028. No caso de morte de sócio, liquidar-se-á sua quota, salvo:

I - se o contrato dispuser diferentemente;

II - se os sócios remanescentes optarem pela dissolução da sociedade;

III - se, por acordo com os herdeiros, regular-se a substituição do sócio falecido.

4 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Atualizado por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 2005, v. 49, § 5.189, 3.

5 ESTRELLA, Hernani. Apuração de haveres. Atualizado por Roberto Papini. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 58; CAVALLI, Cássio. Sociedades limitadas: regime de circulação das quotas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 157; SILVEIRA, Marco Antonio Karam. A sucessão causa mortis na Sociedade Limitada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 82.

6

7 Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.

Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros.

Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio.

8 Art. 1.057. Na omissão do contrato, o sócio pode ceder sua quota, total ou parcialmente, a quem seja sócio, independentemente de audiência dos outros, ou a estranho, se não houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social.

9 TOKARS, Fábio. Sociedades limitadas. São Paulo: LTr, 2007, p. 350.

10 ROVAI, A. L. Pontos polêmicos da Resolução da sociedade em relação a um sócio, em especial nos casos de morte de sócio. Revista de direito bancário do mercado de capitais e da arbitragem, v. 77, jul-set 2017, p. 198

11 Art. 1.056. A quota é indivisível em relação à sociedade, salvo para efeito de transferência, caso em que se observará o disposto no artigo seguinte.

§ 1º No caso de condomínio de quota, os direitos a ela inerentes somente podem ser exercidos pelo condômino representante, ou pelo inventariante do espólio de sócio falecido.

§ 2º Sem prejuízo do disposto no art. 1.052, os condôminos de quota indivisa respondem solidariamente pelas prestações necessárias à sua integralização.

12 TOKARS, Fábio. Sociedades limitadas. São Paulo: LTr, 2007, p. 350.

13 ROVAI, A. L. Pontos polêmicos da Resolução da sociedade em relação a um sócio, em especial nos casos de morte de sócio. Revista de direito bancário do mercado de capitais e da arbitragem, v. 77, jul-set 2017, p. 198

Marlon Tomazette
Advogado no escritório Tomazette, Franca e Cobucci Advogados.

Henrique Haruki Arake
Mestre e doutor em Análise Econômica do Direito Aplicada ao Direito Processual Civil e especialista em direito societário, investigação e prevenção de fraudes corporativas, falimentar e recuperacional. Pesquisador e professor da graduação e da pós-graduação das disciplinas Direito Societário, Direito Falimentar, Direito dos Contratos e Análise Econômica do Direito (AED).

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