Muito se discute sobre a legitimidade ativa do Ministério Público para propor ação de improbidade administrativa, principalmente depois que a lei 8.429, de 2 de junho de 1992 foi alterada pela lei 14.230, de 25 de outubro de 2021, elegendo o Ministério Público legitimado único. Todavia, abstração feita das inovações recentes, convém refletir sobre a legitimidade do Ministério Público, no âmbito da improbidade administrativa, com enfoque peculiar no ressarcimento do dano ao erário, previsto no art. 37, § 4º, da Constituição da República, em cotejo com duas outras disposições constitucionais estampadas no art. 128, § 5º, II, b (é vedado aos membros do Ministério Público “exercer a advocacia”) e no art. 129, IX, que veda ao Ministério Público “a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas”.
O ressarcimento do dano ao erário
Segundo a norma do art. 37, §4º, da Constituição Federal, os “atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.”
Portanto, o Ministério Público, ao propor ação de improbidade administrativa ou acordo de não persecução cível, há de considerar a existência, ou não, de danos ao erário. O termo “erário”, segundo DE PLÁCIDO E SILVA, é derivado do latim aerarium, é aplicado para designar o tesouro público, ou seja, o conjunto de bens ou valores pertencentes ao Estado, representados em valores oriundos de imposto ou de qualquer outra natureza, significando, assim, a fortuna do Estado (Vocabulário Jurídico, Forense, Rio, 2007, 27ª Ed. p. 538).
Por erário entenda-se, pois, não só o fruto de arrecadação de impostos, mas, também, a totalidade do patrimônio material do Estado, seja da União, dos Estados, dos Municípios, dos entes autárquicos, das empresas públicas e das sociedades de economia mista.
Portanto, ao propor ação de improbidade administrativa contra servidor público, ou, até mesmo, ao propor qualquer ação civil pública de ressarcimento de danos, o Ministério Público há de ter em mente, para efeito de ressarcimento ao erário, a natureza deste em cada caso concreto, a fim de aferir sua legitimidade constitucional para tanto.
Do conceito de patrimônio público e da legitimação do Ministério Público no âmbito da ação civil pública em geral
Desde a promulgação da Constituição da República, em 5 de outubro de 1988, muito já se escreveu sobre o conceito de patrimônio público, como interesse difuso a ser tutelado pelo Ministério Público. O interesse, aqui, há de ser aquele denominado, pelos doutrinadores, interesse público primário em contraposição ao interesse público secundário, segundo distinção preconizada pelo jurista italiano Renato Alessi, citado pela Subprocuradora-Geral da República MARIA HILDA MARSIAJ PINTO, hoje na inatividade e ex-integrante da Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal responsável pela homologação de acordo de leniência (AÇÃO CIVIL PÚBLICA-Fundamentos da Legitimidade Ativa do Ministério Público, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2005, p. 79 e seguintes).
Bem antes, HUGO NIGRO MAZZILLI, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, já também na inatividade, e um dos maiores pensadores e viventes da Instituição, acolhe a lição de Renato Alessi e adverte que não se pode confundir o interesse do bem geral (interesse público primário) com o interesse da administração (interesse público secundário), ou seja, o modo como os órgãos governamentais veem o interesse público. Essa distinção evidencia que nem sempre o interesse público primário coincide com o secundário. E é pelo primeiro deles que deve sempre zelar o Ministério Público, buscando sempre o interesse público primário. (O MINISTÉRIO PÚBLICO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988, SARAIVA, SÃO PAULO, 1989, p. 48 a 52).
De igual modo, o Procurador da República PEDRO ANTONIO DE OLIVEIRA MACHADO diz “ser consenso que o interesse público pode ser primário e secundário, este vinculando-se aos interesses próprios da Administração Pública, já o primário identificando-se com os interesses da sociedade” (ACORDO DE LENIÊNCIA & A LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA, Juruá Editora, Curitiba, 2017, p.195).
Evocando, mais uma vez, HUGO NIGRO MAZZILLI, ele lembra que o papel do Ministério Público na defesa do patrimônio público, hoje previsto no art. 129, III, da Constituição, não significa exigir que seu membro atue como advogado da Fazenda, pois esta tem seus próprios procuradores. “Nem se exige que o Ministério Público intervenha em toda ação em que se discuta questão patrimonial afeta à Fazenda Pública. A mens legis consiste em conferir iniciativa ao Ministério Público, seja para acionar, seja para intervir na defesa do patrimônio público, sempre que alguma razão especial exista para tanto, como quando o Estado não toma a iniciativa de responsabilizar o administrador anterior ou em exercício por danos por estes causados ao patrimônio público, ou quando razões de moralidade administrativa exigem seja nulificado algum ato ou contrato da administração que esta insiste em preservar, ainda que em grave detrimento do interesse público primário.” (A DEFESA DOS INTERESSES DIFUSOS EM JUÍZO, Revista dos Tribunais, São Paulo, 6ª Ed., p 114).
No mesmo sentido, o renomado membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, EMERSON GARCIA afirma que, “sensível à total impossibilidade de se outorgar à mesma Instituição a atribuição de defender o interesse público primário (bem comum) e o interesse público secundário, este inerente à estrutura organizacional do Poder Público, concebido como ente dotado de personalidade jurídica própria (v.g.: questões patrimoniais), o Constituinte Originário vedou ao Ministério Público a ‘representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas’ (art. 129, IX, da CR/88). Com isto, evitou-se o simultâneo patrocínio de interesses que, não raro, se apresentavam antagônicos.” (EMERSON GARCIA, MINISTÉRIO PÚBLICO, Organização, atribuições e regime jurídico, Saraiva, São Paulo, 2016, 6ª Ed., p.389, sem realce no original).
Por sua vez, ao comentar o art. 129, III, da Constituição da República, o eminente processualista CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, ex-integrante do Ministério Público do Estado de São Paulo, preleciona que, sem quebra da harmonia do sistema, “jamais se poderia pensar nessa norma constitucional como legitimadora da ampla e incontrolada atuação do Parquet em prol de entidades personificadas. Aliás, o próprio contexto em que aquelas palavras estão inseridas fala em ‘outros interesses difusos e coletivos’: mediante o emprego do adjetivo outros, o constituinte deixou muito clara a intenção de vincular tal legitimidade, sempre, à tutela dos titulares anônimos de direitos e interesses comuns. A própria Constituição, em seu mesmo art. 129, é bastante explícita em vedar ao Parquet o patrocínio de quaisquer entidades públicas” (FUNDAMENTOS DO PROCESSO CIVIL MODERNO, MALHEIROS EDITORES, SÃO PAULO, VOL. I, 3ª ED. 2000, p. 412, sem realce no original).
Por fim, o saudoso MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKI, antes, membro do Superior Tribunal de Justiça e, depois, do Supremo Tribunal Federal, após lembrar que a Constituição da República veda, expressamente, a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas, afirma que é acertado negar legitimação ao Ministério Público para intentar ação civil pública nos casos em que, inobstante existir lesão ao patrimônio público, o interesse lesado se situa no âmbito ordinário da administração pública. Ensinou, ainda, que, ordinariamente, não se nega que “a defesa judicial do patrimônio público é atribuição dos órgãos da advocacia e da consultoria dos entes públicos, que a promovem pelas vias procedimentais e nos limites da competência estabelecidos em lei. A intervenção do Ministério Público, nesse domínio, consequentemente, somente se justifica em situações não ordinárias, ou seja, em situações especiais”, “por exemplo, quando o patrimônio público é lesado pelo próprio administrador (improbidade administrativa), ou quando os órgãos ordinários de tutela jurisdicional do patrimônio público se mostrarem manifestamente omissos ou impossibilitados de atuar (o que põe em risco o funcionamento da instituição pública)”. Por isso, quando Ministro da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça e Relator do Recurso Especial nº 246.69, interposto pelo Ministério Público, negou-lhe provimento, em 2005, estando o acórdão, unânime, assim ementado:
“Processual civil – Ação civil pública em defesa do patrimônio público – Hipóteses de cabimento – Legitimidade do Ministério Público – Limites.
1. A função institucional do Ministério Público, de promover ação civil pública em defesa do patrimônio público, prevista no art. 129, III, da Constituição Federal, deve ser interpretada em harmonia com a norma do inciso IX do mesmo artigo, que veda a esse órgão assumir a condição de representante judicial ou de consultor jurídico das pessoas de direito público. 2. Ordinariamente, a defesa judicial do patrimônio público é atribuição dos órgãos da advocacia e da consultoria dos entes públicos, que a promovem pelas vias procedimentais e nos limites da competência estabelecidos em lei. A intervenção do Ministério Público, nesse domínio, somente se justifica em situações especiais, em que se possa identificar, no patrocínio judicial em defesa do patrimônio público, mais que um interesse ordinário da pessoa jurídica titular do direito lesado, interesse superior, da própria sociedade.
3. No caso, a defesa judicial do direito à reversão de bem imóvel ao domínio municipal, por alegada configuração de condição resolutória da sua doação a clube recreativo, é hipótese que se situa no plano dos interesses ordinários do Município, não havendo justificativa para que o Ministério Público, por ação civil pública, atue em substituição dos órgãos e das vias ordinárias de tutela.
4. Recurso especial a que se nega provimento.” (PROCESSO COLETIVO, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2006, p. 144/146).
Por conseguinte, a celebração de acordos de leniência ou de não persecução civil pelo Ministério Público, relativamente a atos de improbidade administrativa lesivos à Administração Pública, somente se legitima quando a ação de improbidade contiver interesse público primário ínsito ao dano patrimonial ocorrido, ou seja, aquele interesse difuso que diz respeito à sociedade como um todo, ao bem comum, e não apenas a interesse patrimonial de determinada entidade personificada, ainda que integrante da Administração Pública, direta ou indireta.
Não pode, portanto, se referir a um interesse apenas patrimonial de ente dotado de personalidade jurídica própria, segundo assertiva incensurável de EMERSON GARCIA, sob pena de ofensa à vedação constitucional imposta ao Ministério Público de exercer a representação judicial de entidades públicas.
Em princípio, portanto, se o Ministério Público não está legitimado à propositura de ação civil pública para defender, judicialmente, interesse de entidades públicas, inclusive da União, a fortiori não está legitimado a celebrar acordo, no âmbito civil, pois infringirá a vedação imposta no inciso IX do art. 129 da Constituição Federal.
Talvez, por isso, a lei 12.846/13 tenha omitido o Ministério Público como legitimado a propor acordo de leniência, uma vez que o exercício da advocacia, particular e pública, é defeso ao Ministério Público (art. 128, § 5º, II, b; art. 129, IX, ambos da Constituição da República).
Com efeito, a representação judicial das entidades públicas, integrantes da Administração Pública direta ou indireta, compete à Advocacia Geral da União-AGU ou a advogados pertencentes ao corpo de representantes judiciais de entidades da administração indireta, estes, sim, aptos, a celebrar acordos de leniência em defesa de interesses patrimoniais das entidades públicas.
Por isso, como anota Teori Zavascki, a “doutrina, em geral, sugere, como forma de harmonização, que a atuação do Ministério Público ocorra apenas em caráter subsidiário à dos agentes estatais” (op. cit., p.144).
Quanto à defesa de interesses de pessoas jurídicas de direito privado e de pessoas físicas individuais, a vedação de exercer a advocacia imposta ao Ministério Público está expressa no art. 128, § 5º, II, b, da Constituição da República.
A legitimação do Ministério Público para as ações relativas à improbida de administrativa (lei 8.429/92)
A ação civil pública de improbidade administrativa, com suporte na lei 8.429/92, não se limita a proteger, apenas, interesse patrimonial. Aqui, o valor jurídico tutelado é a moralidade pública, que interessa a toda a sociedade e está expressamente insculpida no art. 37 da Constituição da República, como princípio regente da Administração Pública.
A probidade, a honestidade, a lealdade no trato com a coisa pública, ainda que se trate de interesse meramente patrimonial de ente público, é, sem dúvida, interesse difuso, ou seja, interesse metaindividual, essencial para uma salutar vida em sociedade.
Com acerto, o mestre gaúcho ARAKEN DE ASSIS afirma que a “ação de improbidade administrativa, haurida do art. 37, § 4º, da CF/88, e disciplinada na lei 8.429/92, fundamenta-se no direito transindividual dos cidadãos à honestidade da Administração” (IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA-TEMAS ATUAIS E CONTROVERTIDOS- COORDENADOR MINISTRO MAURO CAMPBELL MARQUES, Forense, Rio, 2017, p. 47).
É um daqueles casos a que se referia o Ministro Teori em que o patrimônio público é lesado pelo próprio administrador, mediante conduta ofensiva à moralidade pública, que constitui interesse de todo povo, como elemento componente do Estado organizado.
Como corolário, a legitimidade, em tese, do Ministério Público para propor ação ordinária (ação civil pública) por ato de improbidade administrativa e para propor acordo de leniência está expressa no art. 17 da lei 8.429/92. Quanto ao acordo de leniência, a legitimidade, no campo da improbidade administrativa, antes, era implícita; agora, explicitada pela lei 13.964/19.
Reitere-se: não se nega que o Ministério Público, com atribuição constitucional privativa para propor ação penal pública contra atos delituosos também, com índole de improbidade administrativa, deva propor ação civil pública, nos termos da lei 8.429/92. Esta prevê, inclusive, que o Ministério Público pode e deve pleitear, em Juízo, o integral ressarcimento do dano ao patrimônio público, mas tal dano há de se referir a um interesse geral, difuso, do bem comum, de toda a sociedade, um interesse transindividual, que, no caso, é a moralidade pública.
A única circunstância, a legitimar a atuação do Ministério Público, é a ocorrência de conduta ímproba dos gestores financeiros de entidades públicas consistente em receber vantagem indevida, conduta que também encontra tipificação no Código Penal. Tão só por isso, está legitimado a propor ação de improbidade, apontando, até mesmo, possível dano patrimonial sofrido por ente público.
Todavia, nesse caso, como se trata de ação proposta pelo Ministério Público, está, ele, obrigado a requerer ao Juízo que intime o representante judicial da entidade pretensamente lesada para contestar o pedido ou atuar ao lado do autor, como determina o art. 17, º 3º, da lei 8.429/92 combinado com o art. 6º, § 3º, da lei 4.717, de 29 de junho de 1965 (Regula a ação popular). Se, porventura, o representante da entidade pública, tida como lesada, se puser ao lado do Ministério Público, é evidente que ele está a reconhecer o dano e, em consequência, a pleitear seu ressarcimento.
Se assim há de ser a conduta do Ministério Público, em qualquer ação de improbidade administrativa que proponha, não pode ser diferente o proceder no âmbito do acordo de leniência.
Por isso, não parece possível ao Ministério Público fazer proposta de acordo de leniência, referente a ação de improbidade administrativa, com fixação de quantia determinada a título de ressarcimento de danos ou prejuízo patrimonial relativo a entes públicos integrantes da Administração Pública direta ou indireta.
Se assim não for, o Ministério Público estará incidindo na vedação apontada no inciso IX do art. 129 da Constituição Federal, quando proclama que o Ministério Público pode “exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.”.
Conclusão
Corolário de tudo quanto acima foi dito é que o Ministério Público, ainda que se repute constitucional a titularidade exclusiva da ação de improbidade administrativa, como posto na lei 14.230, de 25 de outubro de 2021, o fato é que a ele é vedado defender interesse público secundário (patrimonial) de pessoas jurídicas de direito público ou privado, em decorrência da proibição expressa no inciso IX do art. 129 da Constituição Federal, seja para pleitear ressarcimento de danos, seja para promover acordo de leniência ou de não persecução civil em prol de pessoas jurídicas de direito privado ou de pessoas jurídicas integrantes da Administração Pública, direta ou indireta.