Migalhas de Peso

LNAT, LLB, GDL e a dança das cadeiras

Você deve estar se perguntando: e o meu diploma de bacharel em direito feito no Brasil? Pode ter algum valor no sistema inglês-galês? Infelizmente não. Apenas e tão somente no plano intelectual.

1/9/2022

Se você leu o nosso artigo anterior [Solicitors e as Brumas de Ávalon1], deve ter ao menos uma ponta de curiosidade para descobrir como se tornar solicitor no UK. Seguindo uma lógica simples e sem percalços extravagantes, imaginemos que você quer ser um solicitor para o sistema Inglês-galês. Ótimo, vamos te indicar o caminho.

Acho interessante apresentar um passo a passo com um início (1) para depois explicar o que é preciso como pré-requisito. Parece confuso, mas há método em minha loucura (“There’s method in my madness2”). Acompanhe a trajetória:

(0) LNAT

(1) LLB ou GDL

(2) LPC

(3) Training Contract

(4) Roll of Solicitors.

Primeiro, eu saí da ‘high-school’ (equivalente ao nosso ensino médio) e vou direto, sem necessidade de curso anterior, para uma ‘law school’ cursar o (1) LLB, que é um acrônimo de ‘Bachelor of Laws’3, objetivamente equivalente ao nosso Bacharelado.

Por exemplo, no ‘King’s College’, que existe há 200 anos no mesmo lugar em Londres, existe uma law school que se chama ‘Dickson Poon School of Law’. E essa é uma tradição interessante dos países da common law, quando dão um nome especial à school de uma certa área acadêmica (que seria o equivalente à nossa ‘faculdade’). Esse curso na King’s College leva TRÊS anos. Ao final do curso, se tudo der certo, eu tenho o LLB e cumpro com o primeiro requisito.

Só que, para conseguir entrar na Dickson Poon School of Law, eu preciso fazer um teste de admissão nacional, que é o National Admissions Test for Law (LNAT), que se parece com um ENEM. Porém, como é só para as Law Schools, nesse exame não cai matemática, química ou biologia.

Imagine-se que eu faço a prova e tiro uma nota boa. Após, faço a minha ‘application’ e sou aceito na Dickson Poon. E, no mesmo esquema Americano, nada aqui é gratuito: ou eu pago, ou tenho uma ‘grant’, ou ‘financial aid’, mas normalmente é na base do ‘student loan’ (que é um financiamento bancário estudantil), com condições bastante especiais). Portanto, seguindo os passos até agora (0) LNAT e (1) LLB.

Mas você sabe que, às vezes, quando somos jovens, é difícil ser assertivo nas escolhas. O que também é verdade para os jovens de lá. Então, vamos criar outra situação. Eu saí da high-school, mas, como sou apaixonado por línguas, eu fiz ‘linguistics’ na King’s College. Um curso maravilhoso, também de TRÊS anos.

Mas sabe, eu acabei decidindo ir para a law school depois que me graduei em linguistics. Por quê? Ora, porque me deram um livro do Edward Coke para ler nas férias de verão (a hipótese é minha). Você pensa, ‘puxa vida, mas um curso de 3 anos?’

Não precisa. É aqui que o sistema deles se mostra incrivelmente satisfatório.

Eu preciso fazer o (0) LNAT (por óbvio) e apenas um curso de UM ano chamado ‘Graduate Diploma in Law’ (GDL), como se fosse um LLB, mas em uma versão mais enxuta e mais desafiadoramente interessante4. O que é superinteressante para as law firms, porque elas vão ter profissionais que vêm de todos os tipos de background: linguistas, contadores, psicólogos, historiadores, antropólogos, economistas.... fazendo de uma law firm um lugar amalgamado por profissionais incrivelmente versáteis e ‘maduros’, incrementando-os ao alicerce multi-identitário das law firms. Portanto, seguindo os passos até agora (0) LNAT e (1) LLB ou GDL. 

O próximo passo é o (2) ‘Legal Practice Course’ (LPC) que, como o nome já indica, é um curso que ensina a prática específica em uma área especial do direito.

É um curso de apenas 9 meses (em média), como se fosse a nossa ‘prática jurídica’ dentro desse único curso. É ao longo do LPC que o aluno vai aprender as pequenas especificidades e estratégias que envolvem cada área do direito em que ele se interessa. Ainda, como há nesse passo, em tese, uma facilidade maior do aluno em termos de temas de estudo (por serem conexos ao seu interesse), é ao longo do LPC que a grande parte dos alunos opta por fazer o ‘Master of Laws’ (LLM), para se especializarem, concomitantemente, em uma área restrita do direito. O LLM pode levar de 6 meses a um ano, dependendo da instituição e do regime de estudos, mas repare, de pronto, que o LLM não é equivalente ao nosso mestrado.

A sua preocupação aqui pode ser o investimento colocado nesse plano de estudo, por isso é bom saber que as grandes law firms5 pagam todo o seu ‘tuiton’ (as mensalidades do curso) e mais ‘maintenance’ (equivalente ao subsídio do nosso ‘estagiário’) se você já estiver trabalhando com eles. Então, boas notícias nesse sentido, porque o LPC não é nada barato. Para não se perder no caminho: (0) LNAT, (1) LLB ou GDL e (2) LPC. Ou melhor: (0) LNAT, (1) LLB ou GDL, (2) LPC – fazer o LLM ao mesmo tempo.

Veja comigo essa hipótese, eu tirei uma nota boa no (0) LNAT, conclui o meu (1) LLB na Dickson Poon Law School em TRÊS anos e o meu (2) LPC na University of Westminster em 9 meses. Imagine-se, também, que eu já estou trabalhando em uma magic circle law firm e agora é só partir para o meu (3) ‘Training Contract’, que é o próximo passo.

Esse training contract só pode ser feito dentro de uma law firm; ele é feito em DOIS anos, divididos em 4 períodos de 6 meses cada, chamados de ‘seats’, como se você tivesse que, literalmente, sentar-se em 4 cadeiras diferentes ao longo desses DOIS anos. É tipo a dança das cadeiras (a brincadeira conhecida como ‘musical chairs’), mas sem a música, sem a diversão entre amigos, sem a alegria contagiante do momento. O trainee/contractee vai sendo talhado e aperfeiçoado em cada uma de suas passagens pelos seats, tudo para que se torne um melhor solicitor e consiga encontrar sua paixão.

Lógico que eu serei pago ao longo dos ‘seats’, que serão feitos em 4 áreas distintas do direito: por exemplo ‘contracts’, ‘land law’, ‘banking’ e ‘intellectual property’. Não espere, no entanto, um ganho financeiro genuinamente satisfativo, pois, para todos os efeitos, eu ainda não sou um solicitor.  Lá nas law firms, eles podem me identificar como ‘intern’, ‘paralegal’, ‘legal aide’, ou qualquer outro termo de escolha da law firm. A escolha é tanto do ‘contractor’, da law firm que está te contratando, quanto do ‘contractee/trainee’, eu, enquanto potencial solicitor.

O training contract em si não é tão complicado para quem já conseguiu o LPC, porque vai envolver a prática do solicitor no dia a dia. O problema é conseguir um training contract. É aqui no training contract que a competição fica bastante acirrada. São dezenas de alunos que, após o LPC, buscam um lugar ao sol nas law firms e o processo de seleção é bastante complexo (daí a opção em fazer o LLM concomitante ao LPC).

A maioria dos candidatos se perde nesse ponto (pois demoram muito mais tempo, inclusive anos, para conseguirem um training contract do que levaram para terminar o LLB). É por isso que, ter obtido boas notas e ter trabalhado em casos ‘pro-bono’ nas ‘legal clinics’, torna-se vital para o aluno. Vamos lembrar do nosso caminho: (0) LNAT, (1) LLB ou GDL, (2) LPC – fazer o LLM ao mesmo tempo – e (3) Training Contract.

Imagine-se, para fins didáticos, que me destaquei ao longo do meu LPC e conclui o meu training contract. Agora vou ter que informar a Solicitors Regulation Authority (SRA), como se fosse a nossa OAB federal, para que eles inspecionem os meus seats. Vai haver uma troca de reports entre a law firm e a SRA, ao longo do qual todo o meu desempenho passará por um escrutínio denso, técnico e também subjetivo. Portanto, zelo e pudor são essenciais ao aluno.

Se tudo der certinho, isto é, se consegui apresentar uma performance satisfatória e se eu me mostrar um sujeito probo, moralmente ilibado e razoavelmente dentro da linha da normalidade inglesa, eu posso me tornar um solicitor mediante a inclusão no ‘Roll of Solicitors’, semelhantemente a nossa ordenação e recebimento de um número de registro na OAB.  O nosso caminho, portanto – e por ora – se encerra: (0) LNAT, (1) LLB ou GDL, (2) LPC – fazer o LLM ao mesmo tempo – (3) Training Contract e (4) Roll of Solicitors (SRA).

Imagine-se que eu tenha me tornado solicitor dentro do Roll of Solicitors of England and Wales. Portanto, não poderei automaticamente atuar na Escócia ou na Irlanda do Norte. É lógico que bastaria fazer o curso específico de LPC daqueles países e cumprir os requisitos necessários. Existe uma facilidade que é a comunicabilidade legal entre os países, mas, em se tratando de court advocacy, devemos entender como se fossem países distintos - pois, de fato, são países distintos, apesar de estarem dentro do mesmo reino e comungarem do mesmo parlamento. Na Escócia, os solicitors são regulados pela Law Society of Scotland6, e na Irlanda do Norte, pela Law Society of Northern Ireland7.

Você deve estar se perguntando: e o meu diploma de bacharel em direito feito no Brasil? Pode ter algum valor no sistema inglês-galês? Infelizmente não. Apenas e tão somente no plano intelectual.

Se você quiser se tornar um solicitor no sistema inglês-galês, vai ter que percorrer todo o caminho que mostrei: LNAT, LLB ou GDL, LPC, Training Contract e Roll of Solicitors.

Pode ser que alguns créditos de algumas disciplinas possam ser aproveitados no LLB ou no GDL, mas não tem como escapar do LNAT, do LPC e dos four seats. Portanto, todo aquele seu empenho enquanto aluno vai poder ser aproveitado apenas de maneira etérea nesse momento, mas pode ser que faça toda a diferença ao longo da sua carreira.

And now, let’s get legal!

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1 https://www.migalhas.com.br/depeso/371909/solicitors-e-as-brumas-de-avalon 

2 Não perca o significado dessa expressão https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/there-s-method-in-your-madness 

3 Dá para perceber que LLB não abrevia Bachelor of Laws de nenhuma maneira, mas é que em latim o termo é ‘Legum Baccalaureus’, e como ‘Legum’ em latim é o plural de ‘Lex’, então a abreviação ganha um ‘L’ a mais. Fazer o que.

4 Mas nem todas as law schools oferecem o GDL, então demanda certa pesquisa. Sem problemas, eu posso fazer o GDL na ‘University of Westminster’, por exemplo.

5 Se você não leu sobre o ‘Magic Circle’, sugiro que volte ao nosso artigo anterior.

6 Disponivel em https://www.lawscot.org.uk/about-us/ 

7 Disponível em https://www.lawsoc-ni.org/regulations-standards

Fabio Berthier da Cunha
Professor Especialista em Inglês Jurídico da 'Legal. English for Lawyers'. Graduado em Letras, Pós-graduado em Educação. Graduando em Direito pela UniCuritiba.

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