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Reestruturação dos clubes de futebol e a sociedade anônima de futebol (SAF)

Certamente a SAF, por si só, não resolve todos os problemas do Clube, mas talvez seja o início de uma mudança de cultura.

1/9/2022

A lei 14.193/21, conhecida como a Lei da SAF (Sociedade Anônima de Futebol), trouxe algumas medidas para auxiliar os Clubes de Futebol a se reestruturarem financeiramente1 e profissionalmente. Anteriormente à promulgação da lei, a utilização de mecanismos legais para tais fins era limitada, principalmente em razão do modelo de Associação Desportiva comumente adotado por esses agentes. Atualmente, por meio da lei 14.193/21, os Clubes possuem novos meios para promover sua reestruturação financeira, captar novos recursos e, consequentemente, se reinserir de forma competitiva no mercado.

A primeira alteração significativa está na possibilidade de os Clubes ajuizarem pedido de Recuperação Judicial, antes restrito apenas a empresários e sociedades empresárias, reorganizando o seu passivo, negociando com seus credores e preservando a sua atividade.2 O art. 25 da lei 14.193/21 prevê a legitimidade dos Clubes em requerer esse procedimento recuperacional, de forma judicial ou extrajudicial, sem a necessidade de conversão do seu modelo de Associação à Sociedade Anônima. Essa medida já foi adotada, por exemplo, pelo Figueirense Futebol Clube3, pela Associação Chapecoense de Futebol4 e pelo Joinville Esporte Clube.5

Além disso, também há a possibilidade de os Clubes adotarem o que a Lei denomina “Regime de Centralização de Execuções”, que consiste em concentrar judicialmente tanto as execuções ajuizadas contra o Clube, bem como suas receitas e eventuais valores arrecadados em cada processo. Quando adotado esse regime, ficam suspensas todas as ações executivas, sendo expressamente vedada toda e qualquer forma de constrição de ativos do clube enquanto ele cumprir com os pagamentos previstos na lei.6 Essa medida, semelhante ao stay period da Recuperação Judicial, pode ser de extrema importância a depender do estágio do endividamento do Clube.

As formas de pagamento previstas na lei, nessas hipóteses, serão de 6 (seis) anos,7  prorrogáveis por mais 4 (quatro) anos se comprovada a adimplência de ao menos 60% (sessenta por cento) do passivo.8 Também existe a possibilidade de os Clubes em conjunto com seus credores estabelecerem uma forma diversa de pagamento.9 Dentre aqueles que adotaram esse Regime, estão: Sport Club Corinthians Paulista10, Botafogo de Futebol e Regatas11, Santos Futebol Clube12, Associação Portuguesa de Desportos13, Clube de Regatas Vasco da Gama14 e Cruzeiro Esporte Clube.15

Ambas as hipóteses, ajuizamento de pedido de Recuperação Judicial e adoção ao Regime de Execuções Centralizadas, são possíveis sem a conversão do Clube em Sociedade Anônima. Essa previsão está contida no art. 13, incisos I e II da lei 14.193/21:

Art. 13. O clube ou pessoa jurídica original poderá efetuar o pagamento das obrigações diretamente aos seus credores, ou a seu exclusivo critério:

I – pelo concurso de credores, por intermédio do Regime Centralizado de Execuções prevista nesta Lei; ou

II – por meio de recuperação Judicial ou Extrajudicial, nos termos da lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.

Além da positivação de medidas destinadas à reestruturação financeira dos Clubes, a Lei também traz novos meios de crescimento, captação de recursos e profissionalismo de gestão. No entanto, para isso, é obrigatória a conversão do Clube para o modelo de SAF (Sociedade Anônima do Futebol), com algumas adaptações necessárias.

Veja-se que a SAF obrigatoriamente deverá ter conselho fiscal e de administração.16 Ainda, o Clube que adotar o novo tipo societário deve criar um Programa de Desenvolvimento Educacional e Social, o que irá gerar uma série de medidas educativas por meio do futebol, podendo inclusive captar recursos governamentais para tanto.17

Há, também, incentivos à conversão por meio dos novos modelos de financiamento. A lei cria a possibilidade de a SAF emitir debêntures, denominadas “debêntures-fut”, cujas delimitações estão previstas no art. 26 e incisos da lei.18

Também, o Clube fica sujeito a um novo regime tributário, o TEF – Tributação Específica do Futebol, que, de forma resumida, implica no recolhimento mensal de forma unificada das seguintes contribuições: IRPJ, Contribuições para PIS/PASEP, CSLL, Cofins, INSS e Risco Ambiental do Trabalho. Nesse regime, a alíquota de recolhimento nos primeiros 5 anos da SAF é de 5%, sendo reduzida para 4% a partir do 6º ano, mas com a inclusão das receitas decorrentes de direitos desportivos. Dessa forma, a mudança do regime tributário também deve ser levada em consideração quando da análise da conversão para a SAF.19

Assim, observadas tais inovações legislativas, verifica-se que existe um novo cenário em que os Clubes de Futebol, mantendo o modelo de Associação ou se convertendo à SAF, possuem alguns caminhos para fazer com que fique no passado a imagem do Clube como algo amador, familiar, para implementar um novo modelo profissional e capaz de gerar inúmeros benefícios sociais e econômicos.

Ainda é cedo para analisar a exata mudança que a alteração legislativa provocará no cenário esportivo nacional, mas já é possível observar algumas evoluções em diversos casos recentes de Clubes que adotaram esse novo modelo. Um dos primeiros Clubes grandes a buscar a conversão para a SAF foi o Cruzeiro Esporte Clube.

O Cruzeiro, tradicional Clube mineiro, é um dos clubes mais endividados do país. Desde o seu rebaixamento para a Série B do Campeonato Brasileiro em 2019, chegou a acumular mais de R$ 1 bilhão em dívidas, possuindo endividamento 7 (sete) vezes superior ao seu faturamento no ano de 2021.20 Quando da promulgação da lei 4.193/21, o Clube foi convertido em SAF e 90% de suas ações foram vendidas ao empresário e ex-jogador Ronaldo Nazário, que já possui experiência na gestão de Futebol, visto ser o controlador do Clube espanhol Real Valladolid, presente na 1ª divisão do Campeonato Espanhol.

Desde que assumiu a gestão do Cruzeiro, Ronaldo foi um dos principais responsáveis pela diminuição significativa na folha de pagamento do Clube, além de se comprometer ao investimento de R$ 400.000.000,00 nos primeiros 5 anos de gestão.21 Recentemente o Clube, com boas perspectivas de crescimento para o próximo ano, valeu-se de uma das alterações referidas da Lei da SAF e ajuizou pedido de Recuperação Judicial, buscando reorganizar o seu passivo de R$ 536.745.678,27 (sem incluir passivo fiscal).22

Além desse, outros exemplos podem ser citados, como a parceria entre o Clube de Regadas Vasco da Gama e a empresa 777 Partners, detentora de R$ 70% da SAF do Clube. Da mesma forma, Botafogo e o empresário John Textor, que adquiriu 90% da SAF do Clube carioca.

Assim, parece natural a evolução do cenário do futebol brasileiro no sentido de que, cada vez mais, os clubes adotem o regime da SAF, principalmente com o intuito de atrair novos investidores e aderirem a uma gestão mais profissional. Atualmente, são 24 Clubes já formalmente convertidos ao modelo de Sociedade Anônima, em 13 Estados.23

Certamente a SAF, por si só, não resolve todos os problemas do Clube, mas talvez seja o início de uma mudança de cultura. Os resultados práticos ainda serão vistos e discutidos ao longo dos próximos anos, mas a promulgação da lei 14.193/21 foi um dos primeiros passos à busca de uma maior segurança jurídica que permita tais evoluções, seja no sentido de reestruturação financeira por meio da Recuperação Judicial e pelo Regime de Execuções Centralizadas, seja no sentido de profissionalizar a gestão do Clube, por meio da SAF.

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1 Em estudo realizado pela Ernest Young em maio de 2021, constatou-se que o endividamento líquido dos clubes brasileiros chegou a R$ 10,3 bilhões no ano de 2020, 19% acima do que no ano anterior. Disponível em:

https://assets.ey.com/content/dam/ey-sites/ey-com/pt_br/topics/media-and-entertainment/ey-sports-levantamento-financas-clubes-2020.pdf. Consultado em: 05/08/2022

2 Art. 1º da Lei de Recuperações e Falências, Lei 11.101/05: Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor.

3 Processo de Recuperação Extrajudicial n. 5024222-97.2021.8.24.0023, ajuizado na Vara Regional de Recuperações Judiciais, Falências e Concordatas da Comarca de Florianópolis, com decisão de deferimento do pedido em 17/12/2021.

4 Processo de Recuperação Judicial n. 5001625-18.2022.8.24.0018, ajuizado na 1ª Vara Cível da Comarca de Chapecó/SC, com decisão de deferimento do pedido em 03/02/2022.

5 Processo de Recuperação Judicial n. 5020747-54.2022.8.24.0038, ajuizado na 4ª Vara Cível da Comarca de Joinville/SC, com decisão de deferimento do pedido em 09/06/2022.

6 Art. 23.  Enquanto o clube ou pessoa jurídica original cumprir os pagamentos previstos nesta Seção, é vedada qualquer forma de constrição ao patrimônio ou às receitas, por penhora ou ordem de bloqueio de valores de qualquer natureza ou espécie sobre as suas receitas.

7 Art. 15:  O Poder Judiciário disciplinará o Regime Centralizado de Execuções, por meio de ato próprio dos seus tribunais, e conferirá o prazo de 6 (seis) anos para pagamento dos credores.

8 Art. 15, §2º: Se o clube ou pessoa jurídica original comprovar a adimplência de ao menos 60% (sessenta por cento) do seu passivo original ao final do prazo previsto no caput deste artigo, será permitida a prorrogação do Regime Centralizado de Execuções por mais 4 (quatro) anos, período em que o percentual a que se refere o inciso I do caput do art. 10 desta Lei poderá, a pedido do interessado, ser reduzido pelo juízo centralizador das execuções a 15% (quinze por cento) das suas receitas correntes mensais.

9 Art. 19.  É facultado às partes, por meio de negociação coletiva, estabelecer o plano de pagamento de forma diversa.

10 Ação de Regime Centralizado de Execuções n. 0018529-92.2022.8.26.0100, ajuizado na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da comarca de São Paulo/SP.

11 Ação de Regime Centralizado de Execuções n. 0069035-13.2021.8.19.0000, ajuizado no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em 17/09/2021.

12 Ação de Regime Centralizado de Execuções n. 2072297-05.2022.8.26.0000, ajuizado no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em 04/04/2022.

13 Ação de Regime Centralizado de Execuções n. 0004012-82.2022.8.26.0100, ajuizado na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da comarca de São Paulo/SP.

14 Ação de Regime Centralizado de Execuções n. 0063814-49.2021.8.19.0000, ajuizado no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em 30/08/2021.

15 Ação de Regime Centralizado de Execuções n. 1.0000.21.232276-2/000, ajuizado no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais em 26/10/2021.

16 Art. 5º  Na Sociedade Anônima do Futebol, o conselho de administração e o conselho fiscal são órgãos de existência obrigatória e funcionamento permanente.

17 Art. 30. É autorizado à Sociedade Anônima do Futebol e ao clube ou pessoa jurídica original captar recursos incentivados em todas as esferas de governo, inclusive os provenientes da Lei nº 11.438, de 29 de dezembro de 2006.

18 Art. 28: Art. 28. A Sociedade Anônima do Futebol deverá instituir Programa de Desenvolvimento Educacional e Social (PDE), para, em convênio com instituição pública de ensino, promover medidas em prol do desenvolvimento da educação, por meio do futebol, e do futebol, por meio da educação.

§ 1º  A Sociedade Anônima do Futebol poderá investir, no âmbito das obrigações do Plano de Desenvolvimento Educacional e Social, mas não exclusivamente:

I - na reforma ou construção de escola pública, bem como na manutenção de quadra ou campo destinado à prática do futebol;

II - na instituição de sistema de transporte dos alunos qualificados à participação no convênio, na hipótese de a quadra ou o campo não se localizar nas dependências da escola;

III - na alimentação dos alunos durante os períodos de recreação futebolística e de treinamento;

IV - na capacitação de ex-jogadores profissionais de futebol, para ministrar e conduzir as atividades no âmbito do convênio;

V - na contratação de profissionais auxiliares, especialmente de preparadores físicos, nutricionistas e psicólogos, para acompanhamento das atividades no âmbito do convênio;

VI - na aquisição de equipamentos, materiais e acessórios necessários à prática esportiva.

§ 2º  Somente se habilitarão a participar do convênio alunos regularmente matriculados na instituição conveniada e que mantenham o nível de assiduidade às aulas regulares e o padrão de aproveitamento definidos no convênio.

§ 3º  O Programa de Desenvolvimento Educacional e Social deverá oferecer, igualmente, oportunidade de participação às alunas matriculadas em escolas públicas, a fim de realizar o direito de meninas terem acesso ao esporte.

19 Para um estudo comparativo entre as diferenças da Tributação Específica do Futebol e os recolhimentos normalmente feitos no regime de Associação, especificamente em relação ao São Paulo Futebol Clube, indica-se o seguinte texto:

https://www.migalhas.com.br/depeso/363028/tributacao-especifica-do-futebol. Consultado em 18.08.2022

20 https://assets.ey.com/content/dam/ey-sites/ey-com/pt_br/topics/media-and-entertainment/ey-sports-levantamento-financas-clubes-2020.pdf. Consultado em: 17/08/2022

21 https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/08/10/um-ano-depois-de-aprovada-lei-das-sociedades-anonimas-de-futebol-tem-balanco-positivo

22 Processo de Recuperação Judicial n. 5145674-43.2022.8.13.0024, ajuizado na 1ª Vara Empresarial da Comarca de Belo Horizonte, com decisão de deferimento do pedido em 13/07/2022.

23 https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/08/10/um-ano-depois-de-aprovada-lei-das-sociedades-anonimas-de-futebol-tem-balanco-positivo

Diego Fernandes Estevez
Mestre em Direito pela PUC/RS. Sócio do escritório Estevez Advogados.

Pablo Werner
Sócio do escritório Estevez Advogados

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