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Transporte individual mediante uso de aplicativos: delegação legislativa aos municípios?

Já se iniciou a impugnação em juízo da constitucionalidade dos diplomas municipais que cuidam da disciplina das condições de trabalho dos motoristas de aplicativos.

29/8/2022

O transporte individual de passageiros intermediado pelo uso de aplicativos se tornou uma realidade nos grandes centros urbanos do país.  Vários são os fatores aos quais se pode atribuir tamanha popularização, destacando-se a ampliação da mobilidade urbana, a oferta de uma alternativa às demais modalidades de transporte sob concessão ou permissão do Poder Público e, consideradas as circunstâncias econômicas do país, uma nova opção de atividade profissional, sobretudo num cenário de alto desemprego.

O significativo aumento da quantidade de motoristas de aplicativo despertou o debate para além da questão dos preços e da qualidade do serviço, alcançando o tema da eventual responsabilidade das plataformas de intermediação sobre as condições de exercício da atividade.  Nessa toada, têm sido editadas ou, pelo menos, está em debate em vários municípios brasileiros a edição de leis destinadas a obrigar as plataformas de transporte por aplicativo a oferecer aos motoristas parceiros pontos de apoio físicos, dispondo de área para descanso, banheiros, vestiários, entre outros.  É o caso, por exemplo, da lei 6.677/20, do Distrito Federal, produzida no exercício de competência legislativa municipal.

Não é o propósito deste breve artigo, em absoluto, questionar a relevância do debate das condições de trabalho desses profissionais. No entanto, tais leis serão inegavelmente inconstitucionais, na medida em que (i) invadem competência legislativa da União e (ii) partem de premissa equivocada de delegação legislativa aos Municípios, que a Constituição da República não admite, como, brevemente, se demonstrará adiante.

O transporte remunerado privado individual de passageiros, operado mediante o uso de aplicativos de telefonia móvel que conectam passageiros e motoristas, foi disciplinado pela lei federal 13.640/18, que alterou a lei 12.587/12 para inserir o inciso X do art. 4º e os arts. 11-A e 11-B.  Tais dispositivos legais, em resumo, afirmam a competência exclusiva dos Municípios e do Distrito Federal para regulamentar e fiscalizar o serviço em seus territórios. 

No entanto, a referida lei federal estabelece a observância obrigatória de diretrizes voltadas à eficiência, à eficácia, à segurança e à efetividade, tais como a cobrança dos tributos municipais incidentes sobre a atividade, a obrigatoriedade de contratação de seguro de acidentes pessoais a passageiros e do DPVAT e, ainda, a inscrição dos motoristas como contribuintes individuais do INSS.  Exige, ademais, que os motoristas não tenham antecedentes criminais e sejam habilitados para exercer a atividade profissionalmente – ou seja, de maneira remunerada –, bem como que os veículos estejam regularmente registrados e licenciados e, ainda, atendam aos requisitos de idade máxima e de características estabelecidas pela autoridade de trânsito e pelo Poder Público local.

Como se sabe, ficou assentado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que a disciplina do transporte individual de passageiros mediante intermediação de aplicativos é matéria própria – perdoe-se a redundância – de trânsito e transporte, que, de acordo com o art. 22, XI, da Constituição, é de competência legislativa privativa da União, cujos parâmetros não podem ser contrariados pelos demais entes federados1.  Por seu turno, a delegação dessa competência encontra limites no parágrafo único do próprio art. 22 da Constituição: exige lei complementar e apenas os Estados e o Distrito Federal, no exercício de competências legislativas estaduais – e não os Municípios – poderão ser delegatários da competência legislativa.

Cabe alegar, com efeito, que a previsão de pontos de apoio aos motoristas de aplicativo não seria matéria de trânsito ou transporte.  É inegável, no entanto, que se tratará de questão de Direito do Trabalho ou, quando menos, atinente à disciplina de condição para exercício de profissão – logo, deve ser enquadrada, de igual modo, na competência legislativa da União, prevista nos incisos I e/ou XVI do art. 22 da Constituição e, dessa forma, submetida aos mesmos limites de delegação previstos no parágrafo único do mesmo artigo.

Fica evidente, com isso, que a lei federal 13.640/18 não poderia, ao contrário do que poderia parecer a priori, ter delegado competências legislativas aos Municípios. Qual será, então, o papel dos arts. 11-A e 11-B introduzidos na lei 12.587/12? A única resposta constitucionalmente cabível é a de que o objetivo do legislador federal, na verdade, era o de delimitar as próprias competências, reconhecendo a amplitude do interesse local na disciplina do serviço e, portanto, a competência legislativa municipal. 

Em outras palavras, a lei 12.587/12, em sua atual redação, cuida de apontar os requisitos próprios de legislação de trânsito e transporte necessários para a regulação do serviço e estabelecer, de forma mais clara, que os Municípios poderão legislar sobre questões específicas de seu interesse, como eventuais padrões de capacidade e idade dos veículos utilizados.  Isso não significa, contudo, que se franqueou aos Municípios a competência legislativa para matérias privativas da União, o que a Constituição da República não admite em nenhuma hipótese.

É interessante observar a engenhosa técnica legislativa utilizada pelo legislador federal, que, alinhado ao que dispõe o art. 30, I, da Constituição da República – e, em última análise, ao próprio princípio federativo –, identificou o interesse local e, portanto, a exclusividade da competência legislativa municipal para aspectos que escapam à competência legislativa da União, sem, contudo, permitir a identificação de qualquer delegação, que, como visto, seria inconstitucional.

Naturalmente, já se iniciou a impugnação em juízo da constitucionalidade dos diplomas municipais que cuidam da disciplina das condições de trabalho dos motoristas de aplicativos. Os argumentos aqui apresentados e vários outros certamente serão objeto de ampla discussão no Judiciário, em suas muitas esferas. Os próximos capítulos dirão se o controle de constitucionalidade será concreto – nos casos individuais ou em eventuais ações coletivas – ou abstrato, seja no cotejo das leis com as Constituições da República e dos Estados –, seja na provocação ao Supremo Tribunal Federal para que imprima interpretação restritiva à legislação federal e, com isso, afaste a tese de delegação legislativa.  Podem acontecer, aliás, todas as hipóteses concomitantemente.  Acompanhemos com atenção.

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1 BRASIL.  SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.  Tribunal Pleno.  ADPF 449.  Rel. Min. LUIZ FUX, j. 08.05.2019; _______.  RE 1.054.110, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, j. 09.05.2019.

Felipe Derbli
Counsel da prática de Direito Público em Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown.

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