RESUMO
O ensaio procura evidenciar que a introdução de tecnologias no Sistema Único de Saúde (SUS) envolve aspectos éticos que às vezes são desconsiderados, a despeito de sua relevância jurídica. A argumentação é construída, a partir da interpretação sistemática do marco legal da integralidade da assistência terapêutica que, em nossa ótica, está assentado em duas colunas, a da ciência e da técnica, de um lado, e a da ética e da participação social, de outro, a que correspondem duas ordens de compromisso que vinculam o administrador e condicionam a validade jurídica das decisões. Nesta linha, o texto é resultado de um olhar jurídico sobre a avaliação de tecnologias em saúde, que busca delimitar os aspectos técnicos e éticos dos processos de incorporação, para introduzir uma análise crítica, sob o ponto de vista da legitimidade. Propõe-se que a legitimidade das decisões sobre a incorporação de tecnologias exige que os aspectos técnicos sejam contemplados, mediante a aplicação de critérios técnico-científicos, e que os aspectos éticos sejam contemplados, mediante a introdução de equidade e solidariedade nos algoritmos decisórios, o que pressupõe efetiva participação social. Para exemplificar certos descompromissos do administrador, com as bases éticas do marco legal da integralidade da assistência terapêutica, o texto discorre sobre problemas relacionados à convocação de audiências públicas, nos processos de avaliação de tecnologias, e sobre a introdução de um medicamento, para uso off label, sem observância da participação social.
1. INTRODUÇÃO
O avanço da medicina e o desenvolvimento tecnológico são comumente referidos como fatores que contribuem para o aumento do bem-estar e da expectativa de vida da população, mas também são invariavelmente relacionados entre as causas do aumento dos custos das ações e serviços de saúde. Terapias gênicas, anticorpos monoclonais, terapias-alvo e intervenções robóticas são vitórias da ciência, que propiciam prognósticos clínicos mais favoráveis, mas que representam desafios para o financiamento de sistemas nacionais de saúde baseados na integralidade.
Estes desafios são significativamente maiores em países periféricos impactados por envelhecimento populacional e que, por razões diversas, não são capazes de elevar o seu gasto público com saúde, para fazer frente ao aumento acelerado dos custos. As contingências deste contexto desafiador cobram do direito dos Estados um conjunto de respostas que preserve a legitimidade das escolhas que os gestores públicos são levados a fazer para enfrentar o subfinanciamento dos sistemas de saúde e atender às necessidades de saúde da população.
A nossa Constituição quer que as prestações públicas de saúde (ações e serviços) sejam universais e equitativas e que sejam organizadas num sistema único, com base nas diretrizes da descentralização, da integralidade do cuidado e da participação da comunidade, tendo como objetivo os postulados do bem-estar e da justiça social2 (CF, arts. 193, 196 e 198). Universalidade, equidade, integralidade e descentralização são termos genéricos que o legislador constituinte utiliza para falar de um conjunto de atributos que qualificam o sistema público de saúde que nós nos dispusemos a construir. São cláusulas gerais que introduzem no texto constitucional valores com os quais nos comprometemos, porque concordamos que eles nos conduziriam a uma sociedade mais justa e solidária3.
A linguagem vaga e indeterminada da Constituição abre janelas para a realidade prospectiva da vida nacional, para novos contextos sociais, culturais, econômicos e políticos que conformam toda uma comunidade de destino e que comumente atualizam a vontade original expressa no texto, acompanhando a evolução dos valores. A busca pelo sentido atual e concreto dos princípios constitucionais exige um movimento de retorno à origem: é preciso sempre ouvir o povo. Consciente disso, o legislador constituinte criou um espaço de participação social, dentro da estrutura do SUS, para que a sociedade civil possa, a cada momento, apontar para os gestores a partir de quais valores devem ser definidos os sentidos da universalidade, da equidade e da integralidade.
A absorção de novas tecnologias pelo SUS é um tema permeado por discussões a respeito do sentido da diretriz constitucional da integralidade. Realmente, não é possível entender minimamente os dilemas que envolvem o assunto, sem considerar que a maturação social deste tema está condicionada por um itinerário de compreensão da integralidade, enquanto diretriz das ações e serviços de saúde. Neste itinerário de compreensão, vamos avistar uma série de bandeiras, que geralmente representam meias verdades acerca do que a integralidade deve ser. Se queremos realmente legitimar os processos de incorporação de tecnologias, é preciso integrar estas verdades parciais, num discurso coerente, que possa operacionalizar o sistema, pela lógica do consenso.
Uma das bandeiras que vamos encontrar neste caminho evoca uma interpretação peculiar da diretriz da integralidade, com base na qual o direito à saúde é muitas vezes invocado para justificar a insurgência contra políticas de regulação de acesso a medicamentos, internações, exames e procedimentos, ou para fundamentar pretensões a uma variedade quase ilimitada de ações e serviços públicos de saúde. Mas, como a realidade econômica da vida invariavelmente se impõe e, como a escassez de recursos orçamentários é um dos dados desta realidade implacável, torna-se cada vez mais evidente a dificuldade prática de se manter um sistema universal de saúde que ofereça acesso ilimitado às inovações e aos bens da tecnologia.
Por outro lado, esta asfixia orçamentária tem muito a ver com escolhas alocativas relacionadas a um certo ambiente político e à nossa dificuldade, enquanto sociedade, de expressar politicamente (em cifras) a disposição de assumir um compromisso mais efetivo com a saúde. Uma evidência e um exemplo desta nossa dificuldade de expressão no espaço público foi a aprovação de uma emenda constitucional, em dezembro de 2016, que vem impondo limites severos às despesas primárias, com reflexos diretos nos gastos com saúde. Para quem respirou os ares da reforma sanitária e viu plasmarem-se na Constituição a cartografia de valores que moveu toda uma geração de ideólogos, os movimentos que culminaram com a aprovação da Emenda Constitucional 95/16 pareciam anunciar o cortejo fúnebre da integralidade, enquanto diretriz do SUS.
Mas, ao tempo em que esta frase de efeito denota um compreensível desapontamento com o congelamento dos gastos públicos com saúde, ela também revela um compromisso claro com a concepção de integralidade enquanto “bandeira de luta”4, que é facilmente associada à ideia de um sistema de saúde utópico, desconectado da realidade econômica da vida nacional. A verdade é que, por detrás da discussão a respeito do sentido da integralidade, temos um complexo de questões cujo enfrentamento exige muitos olhares e autocrítica genuína de todos os atores sociais. A questão da eficiência alocativa é certamente um dos capítulos fundamentais desta discussão e é também uma das bandeiras que tremulam no acidentado caminho da compreensão da integralidade, enquanto diretriz das ações e serviços de saúde.
Há um consenso bem estabelecido de que medir a eficiência das novas tecnologias e compará-las com as já incorporadas é fundamental para a racionalização dos gastos com saúde. Num cenário de restrição orçamentária, tecnologias são mutuamente excludentes, portanto, é preciso fazer escolhas racionais. Em princípio, devem ser escolhidos os tratamentos cujo benefício exceda à perda relacionada aos tratamentos descartados. A eficiência é uma medida de desempenho da tecnologia, expressa pela razão entre uma variável de custo e uma variável de benefício. Por exemplo, o tratamento “A” propicia um ano de vida, por um custo de um dinheiro. Esta é a sua eficiência. Para saber se este tratamento “A” é mais eficiente do que outro tratamento, indicado para a mesma doença, é preciso fazer a comparação. Assim, comparando o tratamento “A” ao tratamento “B”, cuja eficiência seja dois dinheiros, pelo mesmo um ano de vida ganho, concluímos que “A” é mais eficiente que “B”, porque proporciona o mesmo benefício por um custo menor. Portanto, em princípio, “A” é a tecnologia que deve estar incorporada ao sistema. Nestes casos, a decisão é relativamente simples, porque depende apenas da comparação dos custos.
Mas, se comparamos o tratamento “A”, com um tratamento “C”, cuja eficiência seja seis dinheiros, por dois anos de vida ganhos, temos um problema que a ciência e a técnica não resolvem satisfatoriamente. Isto porque “C” propicia um benefício de um ano a mais de vida, em relação a “A”, mas exige a alocação de cinco dinheiros a mais. Saber se a sociedade está disposta a pagar mais, para obter mais benefícios, é uma questão ética, porque implica dizer qual posição a tecnologia em questão deve ocupar no conjunto de prioridades de saúde da população. A sociedade pode entender, por exemplo, que medicamentos para doenças graves devem ser incorporados quando os incrementos de eficiência, em relação à tecnologia já incorporada forem de até tantos dinheiros, por ano de vida ganho. Valores como solidariedade podem justificar uma disposição maior a pagar, em casos específicos, reduzindo-se proporcionalmente esta disposição, para outros tantos casos. Trata-se de juízo eminentemente ético, acerca do qual a ciência e a técnica ainda não têm muito a dizer, o que significa que uma decisão puramente burocrática nestes casos corre o risco de ser arbitrária. O gestor que, em detrimento do que a sociedade possa pensar a respeito, se acha na condição de impor uma determinada disposição a pagar, tende a transformar análises econômicas em análises de impacto orçamentário. Com isso, a sociedade perda a capacidade de expressar sua disposição a pagar, em função dos valores que permeiam as situações concretas. Na prática, contudo, temos visto isso acontecer.
É certo que a ideia de maximizar benefícios para contornar restrições orçamentárias ocupa um lugar central nas discussões sobre a incorporação de novas tecnologias. Mas, vemos que a opção política que fizemos por um modelo de saúde pública subfinanciado também ocupa uma visível e desconcertante centralidade. Analisando números, notamos que a escassez de recursos é de certa forma criada por um arranjo político que consagrou a ideia de que podemos gastar pouco com saúde. Estudos recentes do IPEA e do IBGE5 mostram que o gasto público com saúde no Brasil se manteve na casa dos 3,9% a 4,0% do PIB, entre 2015 e 2019, abaixo, por exemplo, de Colômbia (6%), Portugal (5,8%), Chile (5,7%), Grécia (4,7%), França (9,3%), Reino Unido (8%), Canadá (7,6%), Suíça (7,5%) e Austrália (6,5%), e bem abaixo dos 6% recomendados pela OPAS, para a manutenção de sistemas universais de saúde6. Os estudos mostram também que o nosso gasto per capita, com ações e serviços públicos de saúde, em 2019 (em dólares PPC7), foi de US$ 1.482,26, abaixo, por exemplo, de países como Chile (US$ 2.182), Uruguai (US$ 2.102) e Argentina (US$ 1.907).
Portanto, parece de fato ingênuo supor que ganhos de eficiência dispensem a alocação adicional de recursos ao orçamento da saúde8, como também seria ingênuo supor que a adequação à meta sugerida pela OPAS resolveria todos os problemas relacionados ao financiamento da saúde pública. Mesmo países desenvolvidos, como Alemanha, Espanha e Inglaterra, em que o gasto per capita com saúde é bastante superior ao nosso, não prescindem de técnicas de planejamento e alocação racional de recursos, para viabilizar seus sistemas de saúde. Há, portanto, dois extremos a se evitar. Não convém cairmos na tentação de atribuir as nossas mazelas apenas a opções políticas equivocadas no campo orçamentário, sem antes debitarmos parte deste insucesso à conta da ineficiência e do desperdício. Tampouco se devem atribuir os problemas do sistema à falta de planejamento e de alocação racional de recursos orçamentários ou mesmo à chamada judicialização da saúde, sem antes fazermos uma análise crítica acerca dos motivos que nos prendem a um sistema de saúde notoriamente subfinanciado.
O que a experiência acumulada ao longo dos quase 34 anos do SUS vem mostrando é que as soluções que buscamos exigem duas ordens de compromisso. Uma primeira, de natureza técnica, responsável por organizar uma espécie de matriz de priorização das necessidades de saúde da população, com base na ciência, observando as garantias do devido processo administrativo (art. 5º, LIV, da Constituição Federal). Uma segunda, de natureza ética, responsável por modular esta matriz de priorização, a partir de uma escala de valores, tendo a solidariedade, como fio condutor (CF. art. 3º, I), a justiça social e o bem-estar, como objetivos (CF. art. 193, caput), e a participação social, como principal instrumento de implementação (CF, art. 193, parágrafo único). A aprovação do Projeto de lei 7.445, de 2010 (338/07, no Senado Federal), do qual se originou a lei 12.401/11, constitui exemplo evidente de adesão do legislador a estas duas ordens de compromisso. Dispondo sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologias no SUS, a lei em referência alterou a lei orgânica da saúde, para atualizar o consenso social acerca do significado da “assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica”, de que trata o art. 6º, I, “d”, da lei 8.080/90, enquanto ação pertinente ao campo de atuação do SUS.
A lei em questão materializa o sentido da integralidade da assistência terapêutica na forma de um dever jurídico de dispensação e oferta de um conjunto restrito de tecnologias, previamente escolhido, a partir de critérios técnicos próprios da chamada Avaliação de Tecnologia em Saúde9 (ATS). O advento da lei 12.401/11 desassocia, pelo menos no plano legislativo, a assistência terapêutica à ideia de acesso ilimitado aos produtos da tecnologia. A partir de então, a assistência terapêutica integral passa a compreender a oferta de tecnologias (medicamentos, exames, produtos, procedimentos) cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolos clínicos ou tabelas elaboradas pelo gestor federal do SUS. Explicita-se, assim, sujeita a processos de protocolização e tabelamento, uma acepção menos abrangente da integralidade, no campo da assistência terapêutica, vinculada à necessidade de se construir uma matriz de priorização das necessidades de saúde da população, com base em avaliações econômicas comparativas dos benefícios e custos, em relação às tecnologias já incorporadas, e em análises de eficácia, acurácia, efetividade e segurança (art. 19-O, parágrafo único, e 19-Q, §1º e §2º, da lei 8.080/90).
Percebe-se que, ao tempo em que explicitou a abrangência da integralidade da assistência terapêutica, inclusive a farmacêutica, a Lei 12.401/2011 procurou legitimar esta explicitação legislativa, ressaltando a adesão do legislador àquela primeira ordem de compromisso, pela qual a construção da matriz de priorização das necessidades de saúde da população se sujeita a parâmetros técnicos e a critérios científicos de análise próprios da chamada Análise de Tecnologias em Saúde (ATS), levada a efeito pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS – Conitec (art. 19-Q, §2º, I e II). Este primeiro mecanismo de legitimação apoia-se também na submissão do rito de análise de tecnologias em saúde ao devido processo administrativo, asseguradas as garantias da lei 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal (art. 19-R, §1º). Fica deste modo assegurada, no bojo do processo de análise, a observância da legalidade, de padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé, do contraditório, da ampla defesa, da publicidade, da transparência, da explicitação dos motivos da decisão, dentre outras garantias.
É evidente que a atribuição infralegal de escopo a um direito fundamental não se legitima pelo poder da autoridade. Exige-se, com efeito, um certo esforço de legitimação e o legislador esteve atento a isso, quando condicionou a incorporação de novas tecnologias a um processo formal de análise crítica, pautado por evidências científicas de segurança e eficácia, por metodologias de análise econômica e pelas garantias do devido processo administrativo. Mas a verdade é que o apelo à técnica, à ciência e ao devido procedimento administrativo não são suficientes para legitimar as escolhas, tanto que a própria lei 12.401/11 sujeita o processo de análise de tecnologias, para efeito de incorporação, exclusão ou alteração, a um outro mecanismo de legitimação. Este segundo mecanismo de legitimação corresponde à garantia de participação social nos processos de análise de tecnologias em saúde. De acordo com o disposto no art. 19-R, da Lei 8.080/90, com a redação da lei 12.401/11, a incorporação, a exclusão e a alteração a que se refere o art. 19-Q serão efetuadas mediante a instauração de processo administrativo, observada a “realização de consulta pública que inclua a divulgação do parecer emitido pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS” e a “realização de audiência pública, antes da tomada de decisão, se a relevância da matéria justificar o evento”.
Se, para o bem ou para o mal, explicitamos o conceito de integralidade, em função da necessidade de atender a uma realidade orçamentária adversa, para assim conduzir a noção de assistência integral ao ambiente da regulação de acesso a novas tecnologias em saúde é igualmente certo que o direito, referido agora na acepção de ciência, tem de lidar com esta realidade legislativa emergente, ajustando-a ao ordenamento jurídico, para criar um discurso lógico e coerente, dotado de operacionalidade e que propicie previsibilidade e segurança jurídica. E no caso específico da saúde pública, o discurso da ciência do direito deve estar atento às duas ordens de compromisso de que falamos acima, que são, na verdade, as duas colunas que legitimam e sustentam a explicitação legal da integralidade, enquanto sujeição a uma matriz de priorização das necessidades de saúde da população.
Temos, portanto, que a condição imposta pela ordem jurídica, para que a diretriz da integralidade opere, nos termos repropostos pela lei 12.401/11, é de que os atores sociais protejam estas duas colunas, mantendo assim a integridade do sinalagma que legitima os processos de avaliação de tecnologias em saúde. Mas temos observado a ocorrência de certas arbitrariedades que acabam deslegitimando as recomendações da Conitec e as decisões finais a respeito da incorporação de tecnologias no SUS. Estes atropelos sugerem que, provavelmente, não estamos suficientemente comprometidos com as bases constitucionais e legais da integralidade, nem com as garantias do devido processo administrativo. Na sequência, com a pretensão de lançar as bases para discussões mais alentadas, vamos evidenciar alguns dos atropelos que mencionamos.
2. O caso das audiências públicas nos processos de incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias e de constituição ou atualização de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas.
A decisão final sobre a incorporação de tecnologias no SUS compete ao chefe da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (SCTIE). Mas, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias em Saúde (Conitec) tem competência para fazer recomendações, que geralmente são acolhidas. Para formalizar suas recomendações, a Conitec compara diferentes tecnologias, quanto à eficácia, efetividade e segurança10. Se uma nova tecnologia, “A”, com indicação “c”, é mais eficaz, efetiva e segura do que a tecnologia “B”, incorporada para a mesma indicação “c”, então “A” é uma boa candidata à incorporação e pode vir a substituir “B”, caso a avaliação econômica e os estudos de impacto orçamentário também sejam favoráveis. A comparação analítica que se faz entre “A” e “B” é baseada em estudos científicos, que têm maior ou menor confiabilidade, a depender do rigor metodológico, da coesão dos resultados e de outros elementos. Para incorporar uma tecnologia, o gestor faz um juízo sobre o grau de confiabilidade dos estudos clínicos que falam algo acerca de “A” e de “B”. É por meio deste juízo que se estabelece a qualidade da evidência científica de eficácia, efetividade e segurança da tecnologia candidata a incorporação. A rigor, a falta ou a baixa qualidade das evidências tendem a inviabilizar a incorporação.
As recomendações da Conitec procuram também priorizar tecnologias eficientes. Já dissemos que a eficiência de uma tecnologia é um indicador de seu desempenho, que considera a relação entre uma variável de custo e uma variável de benefício. Demos, como exemplo, uma tecnologia “A”, que oferecia um benefício de um ano de vida ganho, por um dinheiro. Dissemos também que uma tecnologia “C” oferecia um benefício de dois anos a mais de vida, por seis dinheiros, e que incorporar “C”, no lugar de “A”, pressupunha um juízo sobre a disposição de pagar cinco dinheiros a mais para obter um ano a mais de vida. Em seguida, explicamos que a disposição a pagar de uma determinada sociedade pode viabilizar a incorporação da tecnologia “C”, se as razões entre as variáveis de custo e de benefício desta tecnologia, em relação as da tecnologia “A”, forem de até tantos dinheiros, por ano de vida ganho. A sociedade pode colocar este limiar, por exemplo, em cinco dinheiros, por ano de vida ganho e, neste caso, “C” seria uma boa candidata à incorporação, porque provocaria um incremento de custo abaixo do limiar de cinco dinheiros, por ano de vida ganho . Porém, a variável de benefício “anos de vida ganhos” não é adequada para a maior parte das situações, porque ela desconsidera a qualidade com que os pacientes vivem estes anos ganhos. Para contornar este problema, foram criadas alternativas que procuram capturar informações de bem-estar, por meio de métricas de qualidade de vida. A rigor, em sistemas que adotam estas métricas, a pouca aptidão de uma tecnologia para oferecer anos de vida, com qualidade, é preditivo da não incorporação.
O que fazer, porém, quando os benefícios de uma tecnologia são bem conhecidos, mas não existem estudos clínicos, nem métricas adequadas de qualidade vida, em razão de limitações relacionadas com características do próprio grupo de interesse? Por exemplo, o que fazer quando o grupo atingido por uma patologia é pequeno e não há voluntários em número suficiente para a produzir estudos mais confiáveis? Ou quando o grupo convive com uma doença crônica debilitadora, que o torne menos predisposto a viver com qualidade? Nestes casos, as metodologias normalmente utilizadas para avaliar a qualidade das evidências e definir os indicadores de qualidade de vida tendem a produzir injustiças, porque diferentes grupos de pacientes podem ser desigualmente contemplados por estudos clínicos e avaliações econômicas, em função da própria doença com a qual convivem.
Imagine uma pequena cidade do interior que tenha muitos analfabetos. O conselho de educação quer que a prefeitura implante um curso de alfabetização para adultos. Porém, o prefeito tem outros planos e levanta dúvidas sobre a demanda do conselho de educação. Ele questiona as taxas de analfabetismo e sugere que a demanda do conselho não reflete a expectativa da população. O município contrata então um instituto de pesquisa para saber a opinião das pessoas. O instituto distribui um questionário, com perguntas que indagam à população sobre a incidência de analfabetismo e sobre a conveniência de se criar o curso em questão. Ao final da pesquisa, mais da metade dos formulários são entregues em branco. O prefeito conclui então que não há evidências de analfabetismo e de que a população apoie a iniciativa do conselho de educação. O que este caso caricato tem a ver com o nosso assunto? Ele ilustra como metodologias discriminatórias e interpretações enviesadas podem produzir conclusões injustas.
Agora, imagine que um órgão encarregado da avaliação de medicamentos, para incorporação ao sistema de saúde, receba uma demanda para avaliar se o medicamento “C” é tão ou mais eficaz do que o medicamento “A”, já incorporado para o tratamento de uma doença ultrarrara, que acomete uma em cada cinquenta mil pessoas. Médicos e órgãos estrangeiros de incorporação se manifestam a favor do tratamento com o medicamento “C”, que consideram superior a “A” em vários contextos clínicos. O órgão de incorporação avalia os estudos clínicos que compararam “C” com “A” e “C” e “A”, com placebo, e conclui que as evidências clínicas de eficácia, efetividade e segurança são de baixa qualidade. Na justificativa da decisão consta que existe apenas um estudo fase dois que compara os medicamentos entre si, e dois estudos fase três, que comparam cada um dos medicamentos com placebo. Não havendo, portanto, um estudo robusto que compare “C” com “A”, a evidência seria indireta e, portanto, de baixa qualidade. Uma análise mais detida da situação, porém, mostra que a baixa prevalência da doença é que dificultou o recrutamento de um número suficiente de voluntários para estudos clínicos mais robustos.
Tanto a decisão do prefeito, quanto à do órgão de incorporação são inconsistentes. Mas, se repararmos bem, vamos ver que se trata de um tipo específico de inconsistência. Em ambos os casos, os decisores tinham diante de si grupos de pessoas que convivem com infortúnios da vida, o analfabetismo e a doença ultrarrara. Havia também a necessidade de decidir se estas pessoas deveriam ou não ter acesso a um certo bem jurídico, um curso de alfabetização ou um medicamento. Existia também uma dúvida sobre algo que seria fundamental para a decisão, a prevalência do analfabetismo, num caso, e a eficácia, efetividade e segurança do medicamento, no outro. Para dissolver esta dúvida, as autoridades competentes recorreram a metodologias científicas, para coletar evidências de analfabetismo e de eficácia, efetividade e segurança do medicamento, que justificassem a atribuição de benefícios aos grupos desafortunados. Vimos, porém, que as metodologias utilizadas para coletar as evidências de analfabetismo e de eficácia, efetividade e segurança foram influenciadas pelos próprios infortúnios vivenciados pelos grupos que poderiam receber os benefícios. Eram, portanto, metodologias discriminatórias. Este mesmo problema tende a ocorrer, nas avaliações econômicas de tecnologias destinadas, por exemplo, ao tratamento de pacientes que convivem com doenças altamente incapacitantes, que considerem anos de vida ajustados pela qualidade, já eles são menos predispostos a viver com qualidade.
Como evitar distorções deste tipo? Sabemos que ciência é fundamental para formular e julgar hipóteses, com base em evidências. Por meio de estudos clínicos, por exemplo, podemos formular hipóteses verossímeis a respeito de tecnologias em saúde. E, por meio da chamada Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS), podemos fazer juízos críticos sobre as hipóteses sugeridas em estudos clínicos e realizar avaliações econômicas, com o objetivo de medir eficiências e comparar diferentes tecnologias. Tudo isso é importante para aumentarmos a qualidade das escolhas que fazemos. Mas, é necessário reconhecer que a ciência e a técnica têm limites. A ATS, por exemplo, procura maximizar os benefícios em saúde, privilegiando a qualidade das evidências clínicas e os ganhos de eficiência, mas ela não resolve todas as questões que se apresentam num processo de incorporação. Em certos contextos, é possível que a sociedade queira tolerar evidências científicas de menor qualidade, em nome da solidariedade, e mesmo, renunciar a certos ganhos de eficiência, em nome da equidade. Portanto, a justiça, que é fundamento constitucional da ordem social, exige que as metodologias e os algoritmos decisórios sejam adaptados para atender a situações específicas, a fim de capturar dados subjetivos e introduzir elementos de equidade no processo de tomada de decisão. Apenas a ética é capaz de responder quanto, em termos de qualidade de evidência, a sociedade está disposta a renunciar, para obter certos ganhos em solidariedade, e quanto de ganho de eficiência uma sociedade está disposta a sacrificar, para obter determinados ganhos em equidade. O ato administrativo de incorporação só atende ao interesse público, quando considera suficientemente os aspectos éticos que envolvem a decisão.
Emerge assim a importância da participação social nas etapas mais remotas dos processos administrativos, o que é fundamental para: a) legitimar a escolha das métricas de qualidade de vida; b) permitir que os pacientes exponham as suas perspectivas a respeito dos estados de saúde que melhor expressem as preferências do grupo de interesse; c) agregar as perspectivas dos pacientes nas análises de qualidade de evidências, humanizando assim o processo de avaliação. Vale ressaltar que a diretriz constitucional da integralidade, tal como explicitada pelo marco legal introduzido pela lei 12.401/11, assenta-se sobre a coluna da ciência e da técnica, mas também se apoia no pilar da ética e da participação social. E, de fato, a principal ferramenta que podemos utilizar para agregar valores aos processos de análise de tecnologias é a participação social. É por meio dela, principalmente, que podemos incluir elementos éticos nas avaliações de tecnologias em saúde, expondo-as a um conjunto atualizado de valores, escalonados sob o influxo do princípio constitucional da solidariedade (CF. art. 3º, I). Significa dizer que as escolhas que fazemos devem se basear na ciência, mas que, em situações específicas, a técnica não oferece respostas cientificamente consistentes, emergindo então a necessidade de se introduzirem critérios éticos de deliberação, com o objetivo de promover justiça e bem-estar social (CF. art. 193, caput).
Nos processos de avaliação de tecnologias para efeito de incorporação, exclusão ou alteração ou constituição e atualização de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas no SUS, existem três momentos em que a participação da sociedade civil é admitida. O ideal seria que a participação social ocorresse, desde a etapa de confecção dos relatórios técnicos iniciais pelos Núcleos de Avaliação de Tecnologias – NATs. Porém, o decreto 7.646/11 só prevê a participação social em etapas mais adiantadas do processo. Numa primeira oportunidade de intervenção, que ocorre durante a primeira reunião da Conitec, pacientes e especialistas em saúde são chamados a expor as suas perspectivas e podem influenciar as recomendações preliminares da Conitec. Num segundo momento, a sociedade civil é convocada para participar das consultas públicas que antecedem a segunda reunião da Conitec, podendo influenciar as recomendações finais do órgão. Num terceiro momento, a sociedade civil pode ser convocada para as audiências públicas que eventualmente antecedem a decisão final do (a) chefe da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos (SCTIE). As consultas públicas nos processos de avaliação de tecnologias são obrigatórias, conforme dispõe o art. 19-R, III, da lei 8.080/90, com a redação da lei 12.401/11. Já a convocação de audiências públicas é ato afeto à competência discricionária do (a) chefe da SCTIE, a quem a lei atribui liberdade para convocar audiências públicas, quando considerar a matéria relevante (art. 19-R, IV, da lei 8.080/90, com a redação da lei 12.401/11). Ao longo dos quase onze anos de vigência da lei 12.401/11, tivemos apenas cinco audiências públicas, no processo de incorporação de tecnologias. O primeiro evento ocorreu em março de 2021, no bojo do processo administrativo de avaliação do nusinersena, um medicamento órfão inovador, indicado para o tratamento da Atrofia Muscular Espinhal (AME).
Por se tratar de ato administrativo discricionário, a convocação de audiências públicas nos processos de que trata o art. 19-R, da lei 8.080/90, depende de um juízo de conveniência e oportunidade, o que significa que o administrador deve avaliar as circunstâncias contextuais (conveniência) e temporais (oportunidade) do caso concreto, para então eleger a decisão que melhor atenda à finalidade da norma que, em última análise, é o próprio interesse público subjacente. No caso das audiências públicas, entendemos que o interesse público abrigado pela finalidade da norma decorre do consenso formado sobre a necessidade de se admitir a sociedade civil no espaço público de deliberação, precisamente porque a ciência e a técnica não resolvem os dilemas éticos inerentes aos processos de avaliação de tecnologias. A discricionariedade da convocação de audiência públicas não significa que o agente público esteja livre para adotar qualquer decisão. Entendemos que satisfazer o interesse público, no caso, significa atender a circunstâncias que demonstrem a insuficiência das metodologias de avaliação e a necessidade de agregar elementos éticos ao processo de tomada de decisão. Significa também atender a circunstâncias que apontem eventuais insuficiências das contribuições da sociedade civil nas consultas públicas. O juízo sobre a relevância da matéria deve expressar compromisso efetivo com a participação social, que é a principal forma de agregar aspectos éticos aos processos de avaliação de tecnologias.
Portanto, quando o art. 19-R, IV, da lei 12.401/22, se refere à “relevância da matéria”, como critério para a convocação das audiências, o que ele exige é que agente público (i) delimite as questões que a ciência e a técnica não foram capazes de solucionar e que demandam critérios éticos de valoração; (ii) avalie se os grupos de interesse foram capazes de oferecer contribuições consistentes ao longo do processo a respeito destas questões e se é recomendável suprir eventual deficiência da participação social, oferecendo à sociedade civil uma nova oportunidade de intervenção. A dimensão da discricionariedade da convocação de audiências públicas está atrelada a um conceito jurídico indeterminado (relevância da matéria), que deve funcionar como fio condutor do juízo de conveniência e oportunidade que o agente público deve fazer para satisfazer o interesse público. Trata-se de discricionariedade técnica, que vincula o agente à necessidade de analisar tecnicamente os elementos do processo para definir se a matéria é ou não relevante. Conquanto a lei não defina o que é relevância da matéria, é perfeitamente possível compreender este conceito, a partir de uma interpretação sistemática que prestigie as duas colunas que sustentam o consenso a que chegamos sobre o sentido da integralidade na assistência terapêutica. Neste sentido, a matéria será relevante sempre que o conhecimento técnico e científico for insuficiente para a tomada de decisão ou quando se constatar a insuficiência da participação da sociedade civil, nas etapas anteriores do processo.
Neste momento, convém indagarmos retoricamente se as decisões do (a) chefe da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos (SCTIE), acerca da convocação de audiência públicas, atendem ou não ao interesse público. A resposta a esta questão esbarra numa dificuldade de ordem prática relacionada a completa ausência de exposição dos fundamentos destas decisões administrativas. O administrador simples não justifica as suas decisões, o que dificulta a identificação dos critérios adotados por ele para aferir a “relevância da matéria” e deliberar pela convocação ou não de audiência públicas. Contudo, no mês de maio de 2021, num contexto de inúmeras negativas sucessivas de convocação de audiências públicas, a Associação Crônicos do Dia-a-Dia (CDD)12, fazendo uso de prerrogativa estabelecida na lei de acesso à informação, perguntou ao então Secretário da SCTIE, Hélio Angotti, a respeito dos critérios utilizados por ele para caracterizar e reconhecer a relevância da matéria, no caso específico do nusinersena, que até então era a única tecnologia em cujo processo havia sido convocada uma audiência pública. Em resposta ao questionamento realizado pela entidade, a SCTIE informou que a audiência pública teria sido convocada em razão a) do avanço do cenário tecnológico e científico, b) da quantidade de contribuições recebidas na consulta pública (quantidade significativa, explicamos) e; c) da comoção que a condição de saúde gerou na sociedade13.
Os motivos que a autoridade administrativa invocou para decidir pela convocação da audiência pública revelam acentuada incompreensão do significado da participação social nos processos de avaliação de tecnologias. A resposta da secretaria revela que a audiência pública não foi convocada para agregar elementos éticos à tomada de decisão, nem para suprir uma eventual insuficiência da participação social na consulta pública. Pelo contrário, a grande quantidade de contribuições na consulta pública do nusinersena e a comoção social são vistas pela secretaria como elementos determinantes para a convocação. Os critérios adotados revelam que o administrador enxerga a audiência pública como uma possível resposta política do governo às pressões da sociedade, quando na verdade a decisão deve ser técnica e baseada em critérios que expressem compromisso com os aspectos éticos do processo. Não é razoável definir a relevância da matéria, para efeito de convocação de audiências públicas, a partir de elementos como comoção social e participação expressiva em consultas públicas, porque este critério é discriminatório: de maneira geral, os grupos que convivem com doenças raras, por exemplo, têm mais dificuldade para se articular e gerar visibilidade para as suas demandas. Esta dificuldade está relacionada à própria definição de doença rara, que é uma doença que acomete poucas pessoas. Se poucas pessoas são afetadas, é evidente que o grupo de interesse será pequeno e isso costuma inviabilizar a vocalização consistente de demandas por saúde. Por isso, a participação social relacionada a estas demandas é geralmente incapaz de introduzir elementos éticos suficientes no processo de tomada de decisão. Muito embora a comoção em torno das demandas dos pacientes acometidos por Atrofia Muscular Espinhal tenha gerado um número expressivo de contribuições na consulta pública do nusinersena, sabemos que este acontecimento constitui uma exceção absoluta. Ao contrário do que a secretaria sustenta, tanto mais relevante será a matéria, quanto menor for a capacidade de articulação dos grupos de interesse e quanto maior for a necessidade de estimular a participação da sociedade civil, para corrigir distorções, introduzir ética, equidade e solidariedade no processo de tomada de decisão. Portanto, a lógica é inversa.
O Projeto de lei 4.361/21 pretende alterar a lei 8.080/90 para tornar as audiências públicas obrigatórias, sempre que as decisões preliminares da Conitec forem contrárias à incorporação ou favoráveis à desincorporação de tecnologias. Originário de uma iniciativa da CDD, o projeto foi apresentado pela Deputada Silvia Cristina e tramita atualmente pela Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados. A proposta veiculada no projeto revela indisfarçável desconfiança em relação à capacidade de o administrador alterar os critérios atualmente utilizados para convocar audiência públicas. Frente à incompreensão do verdadeiro papel da participação social nos processos de avaliação de tecnologias, o projeto simplesmente elimina a discricionariedade do ato, tornando a audiência pública uma fase obrigatória do processo.
O fato é que, lamentavelmente, o administrador vem fazendo mal uso da discricionariedade, ao eleger critérios como comoção social, para convocar audiências públicas. A comoção social é um elemento meramente circunstancial. Audiência públicas servem para ampliar a participação social quando é necessário ampliá-la. E isto não tem relação com a comoção social. Parafraseando Celso Antônio Bandeira de Melo14, podemos dizer que a discricionariedade da decisão a respeito das audiências públicas é margem de liberdade que a lei confere ao administrador para eleger, segundo critérios de razoabilidade, orientados pela relevância da matéria, a melhor decisão cabível perante o caso concreto, a fim de prestigiar a efetiva participação social de grupos de interesse menos articulados e suprir eventuais inépcias da ciência e da técnica, em questões que demandam valoração ética, como as análises de qualidade de evidências e as métricas de qualidade de vida, nos casos de doenças raras e ultrarraras, dentre outros.
3. O caso do bevacizumabe, para uso off label, no tratamento da Degeneração Macular Relacionada à Idade (DMRI) e a necessidade de observância participação social, na introdução de medicamentos no SUS.
Os processos administrativos atuais de análise de tecnologias em saúde, para efeito de incorporação, exclusão ou alteração contém fases, num fluxo que vai, desde a submissão do dossiê pelo demandante, passando por etapas em que a sociedade civil pode oferecer suas contribuições, até a decisão definitiva do (a) chefe da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos (SCTIE). Estas mesmas etapas, com algumas diferenças, caracterizam os processos administrativos de confecção e atualização de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, dentro dos quais também existem momentos em que a sociedade civil é chamada a contribuir. O ideal seria que os gestores do SUS estivessem todos convictos de que a legitimidade das recomendações da Conitec e das decisões finais havidas nos processos de incorporação de tecnologias e de atualização de protocolos clínicos depende da observância obsequiosa destas etapas e do devido processo administrativo. Prestigiar o fluxo regular dos processos administrativos e, notadamente, conferir à sociedade a mais ampla oportunidade de participação, não é apenas uma necessidade de ordem legal e regulamentar, mas uma importante estratégia de gestão. O gestor consciente sabe que, quando a sociedade participa amplamente dos processos de tomada de decisão, ela tende a se perceber como coautora das escolhas administrativas que são feitas, o que é fundamental para a pacificação em torno daquilo que se decidiu.
Há, porém, quem considere isso tudo uma perda de tempo, um fator de ineficiência que infelizmente é imposto pela lei e deve ser suportado pela administração pública. Esta ideia equivocada explica uma tendência que às vezes se observa de teatralizar processos, driblar procedimentos e acelerar processos, em detrimento da participação social. Este é um comportamento que, paralelamente a um certo déficit de transparência dos critérios de análise, contribui para desprestígio social da Conitec. Observamos, porém, alguns avanços. Nas últimas reuniões, notamos que a perspectiva do paciente foi de certa forma considerada pelos membros da Conitec. Porém, percebemos também alguns retrocessos importantes. Recentemente, por exemplo, observamos o atropelo do rito procedimental, na atualização do protocolo clínico de uma patologia da retina. No caso, a Conitec incluiu, no PCDT da Degeneração Macular Relacionada à Idade (DMRI), um medicamento antineoplásico, para uso off label, de maneira um tanto questionável. O que se problematiza aqui não é o uso off label em si, nem a eficácia ou eficiência da tecnologia, que são questões de alta indagação científica e prática, em relação às quais não pretendemos opinar, mas a forma como o processo administrativo se desenvolveu. Os detalhes do processo e os pontos que nos parecem críticos virão na sequência e o leitor poderá formar a sua convicção. Ainda que a exposição do tema exija referências a diversos atos normativos e pareça por isso um tanto árida, ela é fundamental para constatarmos que a Conitec parece mesmo um infante testando os seus limites, meio que provocando a sociedade civil, o que só revela a imaturidade do órgão, como veremos.
A lei 6.360/76 dispõe sobre a vigilância sanitária a que estão sujeitos os medicamentos (e outros produtos específicos) e condiciona a sua industrialização, comercialização e disponibilização a um processo de análise técnico-científica, pelo qual são aferidas e atestadas a qualidade, a segurança e a eficácia do produto, tendo em vista uma indicação ou um uso determinado. O registro sanitário é o documento que atesta a submissão de produtos sujeitos a registro ao processo administrativo ao termo do qual ele foi expedido ou renovado. Ele certifica que as circunstâncias históricas de sua concessão ou renovação evidenciavam a qualidade, segurança e eficácia do produto, materializando assim a autorização da vigilância sanitária para a introdução ou manutenção do produto no mercado de consumo. Com o advento da lei 9.782/99, a competência para aferir os requisitos legais e conceder o registro sanitário passou para a esfera de atribuições da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A despeito de sua importância, o registro sanitário não constitui requisito para a prescrição de medicamentos, que podem ser eventualmente receitados pelos médicos, apesar da falta de registro ou para usos distintos daqueles para os quais o registro foi expedido. O médico tem autorização da lei para avaliar o quadro clínico do paciente e prescrever o tratamento mais adequado, desde que esta opção terapêutica esteja embasada em critérios clínicos e científicos razoáveis. A falta de razoabilidade da prescrição pode caracterizar negligência, imprudência e imperícia e justificar a responsabilização do profissional de saúde, por erro médico.
Embora a lei não vede a prescrição de medicamentos para uso off label, ou seja, para uso distinto daquele que consta na bula e para o qual o registro sanitário foi concedido, as normas infralegais que historicamente disciplinaram a introdução de tecnologias no SUS sempre desencorajaram indiretamente este tipo de prescrição, procurando impedir o ingresso de medicamentos sem registro no sistema. Por exemplo, o anexo II, da Portaria GM 3.323/06, que instituiu a antiga comissão para incorporação de tecnologias no âmbito do SUS e da Saúde Suplementar (CITEC), exigia a indicação do número do registro sanitário, como condição para a instauração do próprio processo administrativo de incorporação. A Portaria GM 2.587/08, que revogou o ato referido acima e vinculou a CITEC à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, manteve a exigência do registro sanitário, assim como o fez a Portaria SCTIE 13/08, que aprovou o regimento interno da CITEC.
A própria CITEC, porém, promovia a incorporação e a inclusão em protocolo de medicamentos off label. Isto ocorreu, por exemplo, com o bevacizumabe, um antineoplásico indicado para o tratamento de câncer colorretal e outros tumores sólidos, que foi incorporado, no ano de 2011, para tratamento de pacientes com Degeneração Macular Relacionada à Idade (DMRI), na forma exudativa. A rigor, incorporações como esta contrariavam o art. 27, da Portaria SCTIE 13/08 e o anexo II, da Portaria GM 2.587/08, que exigiam o registro sanitário para instauração do processo administrativo de incorporação. Na prática, porém, as exigências estabelecidas nas portarias não impediam que as próprias áreas técnicas do Ministério da Saúde efetivassem a incorporação de medicamentos off label.
Por outro lado, desde meados da década de 2000, pelo menos, observava-se uma pressão expressiva e crescente da sociedade pela efetivação do acesso a tecnologias inovadoras, sobretudo medicamentos oncológicos. O Poder Judiciário passou então a responder a estas demandas, por meio de ordens judiciais que obrigavam os gestores a efetivar a oferta e o pagamento de tecnologias, muitas delas sem registro ou com indicação para uso distinto daquele que contava na bula. Visando reduzir os efeitos desta judicialização, muitas vezes irresponsável, a lei 12.401/11 introduziu o art. 19-T, na lei 8.080/90, vedando o pagamento, o ressarcimento e o reembolso de despesas com tecnologias experimentais, tecnologias sem registro ou tecnologias para uso off label16.
A questão é que, ao tempo em que a introdução deste artigo na lei orgânica da saúde pretendia por água na fervura da judicialização, ela acabou também inviabilizando o pagamento de tecnologias off label incorporadas pela antiga CITEC. A nova lei inviabilizou, por exemplo, o pagamento de despesas com o medicamento bevacizumabe, quando indicado para o tratamento de DMRI. Até então, apesar de contrariar as portarias, a incorporação do bevacizumabe produzia efeitos, inclusive no que se refere ao pagamento de fornecedores. Mas, ao obstar o pagamento de despesas nas situações elencadas, a nova lei tornou ineficaz a incorporação do bevacizumabe.
Vale ressaltar que, ainda que a lei 12.401/11 exija o registro sanitário, como requisito para o pagamento, ressarcimento e reembolso destas despesas, a jurisprudência dos tribunais, por razões diversas que não vêm ao caso descrever, manteve o entendimento prevalente de que a ausência de registro não seria obstáculo intransponível ao fornecimento de medicamentos off label. Mas não foi apenas o Poder Judiciário que contornou a vedação legal. O próprio poder executivo federal previu em decreto uma exceção bastante polêmica, do ponto de vista jurídico. A exceção está no art. 21, do decreto 8.077/13, que regulamenta aspectos da lei 6.360/76 e cria a possibilidade de a Conitec solicitar à Anvisa uma autorização excepcional para uso de medicamentos off label no SUS. O único requisito do decreto, que ainda está em vigor, é que a Conitec apresente à agência reguladora evidências de eficácia, acurácia, efetividade e segurança do uso pretendido.
Esta última exceção parece de fato contrariar a lei que o decreto declaradamente regulamenta. De acordo com o art. 24, da lei 6.360/76, o uso de medicamentos sem registro só é possível no caso de produtos experimentais. Mas, no plano infralegal, o decreto procura ampliar esta possibilidade, atribuindo à Conitec uma polêmica possibilidade de solicitar o uso off label à Anvisa. Apesar da aparente ilegalidade do decreto, uma solicitação de uso off label feita pela Conitec chegou a sensibilizar a agência reguladora. Isto ocorreu no caso do medicamento “bevacizumabe”, do qual já falamos acima. No caso, o plenário da Conitec decidiu “reforçar”17 a incorporação promovida pela CITEC, solicitando à Anvisa uma autorização para uso excepcional do bevacizumabe off label, nos termos do decreto 8.077/13.
A autorização precária da Anvisa foi formalizada, por meio da RDC 111/16, que autorizou o uso do medicamento, para tratamento da DMRI, em caráter excepcional e temporário. A resolução da Anvisa vigorou por pouco mais de três anos, até que a agência reguladora, em reunião de diretoria colegiada, datada de 18/2/20, decidiu retirá-la do ordenamento jurídico18, O motivo da revogação foi a ausência de informações sobre segurança e eficácia do uso fracionado do medicamento. Com a revogação da autorização para uso excepcional, a manutenção do bevacizumabe off label no SUS passou a depender, exclusivamente, da incorporação havida em 2011. A rigor, a Conitec deveria ter desincorporado a tecnologia, tanto em razão da fragilidade da incorporação promovida pela antiga CITEC, quanto em função das ressalvas da Anvisa e das limitações legais com relação ao pagamento de tecnologias off label. Porém, isso não aconteceu.
Recentemente, no contexto da pandemia de SARS-Cov-2 e das discussões sobre o uso off label de tecnologias para o enfrentamento da Covid-19, foi promulgada e entrou em vigor a lei 14.313/22, que introduziu um parágrafo único ao art. 19-T, da lei 8.080/9019, para autorizar o pagamento, o ressarcimento e o reembolso de medicamentos, com indicação de uso distinta daquela para a qual foi concedido o registro sanitário, atendidas às seguintes exigências cumulativas: a) recomendação favorável da Conitec; b) demonstração de evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do uso off label, e; c) inclusão da tecnologia em protocolo estabelecido pelo Ministério da Saúde. Na prática, a lei viabiliza a incorporação de medicamentos off label no SUS, por ato unilateral da Conitec.
De autoria do ex-senador Cássio Cunha Lima, o PLS 415/2015, que deu origem à lei 14.313/22, propunha, dentre outras coisas, a definição de parâmetros de custo-efetividade, para efeito de análise das solicitações de incorporação de tecnologias no SUS. O texto original não falava a respeito da introdução de medicamentos off label no sistema público de saúde. Porém, no final da tramitação do projeto no Senado Federal, o senador Fernando Bezerra, relator do projeto e líder do governo na casa, apresentou um substitutivo, propondo a inclusão de um parágrafo único, ao art. 19-T, da lei 8080/90. O texto final do projeto foi remetido à Câmara dos Deputados, onde foi aprovado, sem ressalvas.
Com base nesta nova lei, a Conitec decidiu reincluir o bevacizumabe, no PCDT da DMRI, aproveitando-se do fato de o medicamento não ter sido efetivamente excluído do SUS, após a revogação da RDC 111/16. Deste modo, apoiando-se numa incorporação havida em 2011, que, conforme demonstramos, afrontava as portarias do Ministério da Saúde, a Conitec promoveu a reintrodução do bevacizumabe off label no sistema, mediante simples inclusão da tecnologia no protocolo clínico. Há pelo menos duas críticas consistentes acerca da forma como a Conitec agiu no caso. A primeira se refere à supressão do processo administrativo de incorporação e a segunda, à supressão do processo administrativo de atualização de PCDT.
Quanto à primeira crítica, estamos diante de um daqueles casos em que o gestor maroto procura ingenuamente se valer de certas brechas, para contornar procedimentos e evitar polêmicas inerentes à participação da sociedade civil, sem se dar conta do quanto ele mesmo se enfraquece com isso. Não há dúvida de que o bevacizumabe, para uso off label, deveria passar pelos processos administrativos de ampliação de uso e de atualização de PCDT, de que trata o art. 19-R, caput, §1º, I a IV, da lei 8.080/90, com a redação da lei 12.401/11 e os arts. 15 e 28, do decreto 7.646/11.
A fragilidade da incorporação havida em 2011 era tão evidente que a própria Conitec entendeu que deveria pedir a autorização da Anvisa para incluí-la no PCDT da DMRI, nos termos do Decreto 8.077/13. Assim, com a revogação da resolução da Anvisa, que autorizava o uso off label do medicamento e, por imperativos de coerência e boa-fé, incumbia à SCTIE provocar a instauração do procedimento de desincorporação da tecnologia. Porém, o gestor se omitiu quanto a isso, mantendo irregularmente o medicamento no sistema. Valendo-se, então, do novo cenário introduzido pela lei 14.313/22, as chefes da Secretaria de Atenção Especializada à Saúde (SEAS) e da SCTIE decidiram suprimir o processo administrativo de ampliação de uso e baixaram a Portaria Conjunta MS-SAES-SCTIE 10, de 23/5/22, para alterar diretamente o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da DMRI (forma neovascular), nele incluindo a possibilidade de uso off label do bevacizumabe.
Critica-se, assim, o fato de as secretarias do Ministério da Saúde alterarem diretamente o protocolo clínico da patologia, para nele incluir um medicamento off label que não passou pelo processo administrativo de incorporação ou ampliação de uso. Questiona-se, com efeito, a inobservância do rito procedimental definido no capítulo II, do decreto 7.646/11, dentro do qual há previsão de participação da sociedade civil mediante consultas e audiências públicas e, no bojo do qual, era imperativa a avaliação econômica da introdução da tecnologia e o enfrentamos do óbice técnico apontado pela Anvisa, no ato de revogação da RDC 111/16, relacionado à falta de evidências de eficácia e segurança do uso fracionado do medicamento. A segunda crítica que fazemos se refere à forma como as secretarias do Ministério da Saúde promoveram a alteração do protocolo clínico da DMRI. Assim como ocorre no processo administrativo de incorporação ou ampliação de uso, a alteração de protocolo clínico exigia a instauração de processo administrativo previsto no art. 19-R, caput, §1º, I a IV, da lei 8.080/90 e a observância das etapas procedimentais descritas nos arts. 15 e 28, do decreto 7.646/11, no bojo das quais também está prevista a participação da sociedade civil.
A insatisfação da sociedade civil com a atuação do Ministério da Saúde neste episódio ensejou a interposição de recursos administrativos, que ainda não haviam sido apreciados, até a data em que este texto foi encaminhado para publicação. Frente à polêmica estabelecida, o Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias e Inovação em Saúde - DGITIS decidiu convocar uma reunião extraordinária, para apreciação do protocolo clínico da DMRI (forma neovascular). Assim, na 10ª reunião extraordinária da Conitec, havida no dia 17/8/22, a diretora do DGITIS informou que a reinclusão da matéria na pauta do órgão ocorreu em função dos recursos administrativos interpostos, que a teriam convencido a observar o rito procedimental e submeter o processo à participação social. Procedendo, assim, à reapreciação da matéria, a Conitec decidiu encaminhar o processo para consulta pública, com parecer favorável à aprovação do PCDT. Este recuo parcial mostra que o DGITIS conserva a capacidade de reconhecer suas falhas, o que é elogiável, mas evidencia, por outro lado, que realmente houve uma tentativa de burlar a participação social no processo de avaliação de tecnologias em saúde, o que só não ocorreu porque a sociedade civil exercia vigilância sobre o processo20. É surpreende de todo modo que isto tenha ocorrido, considerando que o Ministério da Saúde deveria ser um dos principais interessados em assegurar a regularidade dos processos e a legitimidade das decisões adotadas.
CONCLUSÃO
O título que demos para o ensaio sugere que a introdução de tecnologias no sistema público de saúde depende do cumprimento de requisitos que muitas vezes postergam e tornam mais complexo o processo, mas que também asseguram a legitimidade e a validade jurídica das decisões. Um exemplo claro disso é o problema das audiências públicas, no bojo dos processos administrativos de avaliação. Apesar de serem pouco utilizadas, as audiências públicas são fundamentais para a legitimidade das escolhas que o gestor deve fazer, principalmente, porque os aspectos éticos da tomada de decisão são comumente negligenciados, no curso dos processos de avaliação de tecnologias em saúde. Por conta disso, as audiências públicas têm o importante papel de evidenciar valores sociais que deveriam ter norteado as análises, sobretudo, quando os critérios técnicos e científicos não foram suficientes para a tomada de decisão. O prestígio e a validade das recomendações da Conitec e das decisões finais depende disso, porque o marco legal da integralidade da assistência terapêutica também está assentado sobre a coluna da ética e da participação social. Infelizmente, os critérios atualmente adotados para convocar audiências públicas revelam incompreensão do papel da participação social no processo de avaliação de tecnologias em saúde. Isso leva à conclusão de que o processo de incorporação de tecnologias enfrenta uma crise de legitimidade, à medida em que ele nem sempre atende às duas ordens de compromisso de que vimos falando. Da mesma forma, a recente introdução de um medicamento off label, sem observância da participação social mostra, a despeito do recuo parcial do Ministério da Saúde, que ainda não firmamos um compromisso efetivo com a explicitação do marco legal da integralidade da assistência terapêutica, introduzido ela lei 12.401/11.
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