Hoje é “dia do historiador”, em homenagem ao nascimento de Joaquim Nabuco (1849-1910). Mais sociólogo do que historiador, mais político do que diplomata, mais humanista do que “patriota” e, um traço fulcral de seu psiquismo, que Gilberto Freyre tão bem realçava, criado no Engenho de Massangana por sua madrinha “mais como menina do que como menino”, Nabuco carregou em si as contradições de seu tempo, de sua classe e de seu percurso. Foi o “príncipe dos abolicionistas” e se entendia portador de um “mandato da raça negra” que evidentemente só lhe foi outorgado por sua própria história e ação política, uma vez que, diferentemente de André Rebouças e José do Patrocinio, sobre ele não pesava o estigma do “preconceito de cor” e não poderia ser injuriado como “negro”.
Mesmo que não fosse um Viking, era um branco brasileiro, mestiço como somos todos, mas que possuía os chamados “privilégios da branquitude”. Nabuco tinha um pensamento todo particular sobre o patriotismo brasileiro, que vale muito a pena ser lembrado no dia da comunidade historiográfica, aquela que no dizer de Peter Burke, existe para que as sociedades se lembrem daquilo que querem esquecer.
Os patriotismos podem ensejar sem número de interpretações duvidosas. Samuel Johnson (1709-1784), importante crítico literário, poeta e lexicógrafo inglês – um dos que jazem no panteão cívico nacional que a Abadia de Westminster encarna –, é autor da máxima de que “o patriotismo é o último refúgio de um canalha” (“Patriotism is the last refuge of a scoundrel”). Os estudiosos da obra e da vida do pensador setecentista sabem, contudo, que ele se referia bastante mais a determinados tipos humanos de patriotas do que, necessariamente, ao amor à pátria e sua gama incomensurável de sentimentos correlatos, muitos dos quais não integralmente racionais.
O amor à pátria se confunde historicamente com o amor ao etnos, que por sua vez cedeu espaço ao natio. Neste sentido, e fazendo a exegese do quinto mandamento do decálogo judaico-cristão, amar a pátria (“terra dos pais” ou “povo dos pais”) é o mesmo que honrar seus próprios genitores.
O presidente da República Francesa que por mais tempo governou a França, General Charles de Gaulle (1890-1970), distinguiu certa vez em discurso que “patriotismo é amar seu país; nacionalismo é odiar o dos outros”. Uma boa definição, mas certamente incompleta para efeitos teóricos. O nacionalismo é um fenômeno típico do XIX e do XX, mas as raízes dele não estão ali, senão em muitos séculos anteriores. O Sacro Império Romano-Germânico (SIRG), por exemplo, que durou mil anos, e que na história germânica é o “Primeiro Reich”, se chamava, em alemão, “Sacro/Santo Império Romano da Nação Alemã/Teutônica”. Ou seja, antes do país Alemanha, como o entendemos, alguns percebiam que havia uma nação – cujo conceito também já foi similar, em diversos autores, ao de raça –, sem o seu território devidamente unificado.
Os Estados nacionais são fruto da engenharia de dinastias milenares e de muitas gerações de conselheiros, ministros, intelectuais e, sobretudo, soldados – leia-se generais. O Estado nacional brasileiro, que neste ano comemora sua epopeia bicentenária, nasceu sob a égide da Casa de Bragança, já antes de 1822, uma vez que o regente de Portugal e titular do Principado do Brasil, D. João (1767-1826), fez de sua mãe a primeira rainha do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, ainda em 1815. Após isso os fatos são conhecidos. O neto daquela D. Maria I que a historiografia insiste em chamar de “Louca”, casado justamente com a filha do último titular do SIRG, acabou por liderar a causa dos brasílicos e a tornar-se o soberano da parte americana do Império lusitano, com seu pai ainda vivo. D. Pedro e D. Leopoldina, a austríaca, a representante, entre nós, da “Santa Aliança” do pai dela com imperadores reacionários como Aleksandr I da Rússia, se tornaram um casal imperial moderno, constitucional e, da parte dele, admirador do liberalismo e mesmo de Bonaparte, que havia feito sua família fugir para o Brasil!
E onde entra Joaquim Nabuco em tudo isso? Nabuco era o filho, neto e bisneto das elites senhoriais brasileiras que compuseram o esteio da Casa de Bragança no alinhave e na governação desse Império. A genealogia nabuquiana, antes de ser a de seu próprio pensamento – a sociologia nascente do Brasil –, era a de seus “nomes e armas”. Aristocrata baiano pelo pai (Nabuco de Araujo) e pernambucano pela mãe (Paes Barretto), Nabuco provinha de torrões em que os Bragança eram aceitos, sub conditione. Mormente no irredentista Pernambuco, muito sangue correu para que o Império do Brasil pudesse existir. 1817 e 1824 são as Independências de Pernambuco malogradas e esmagadas pelas tropas bragantinas.
Em virtude disso e de muitos outros fatores, Nabuco tinha o orgulho das origens que nenhum título de nobreza concedido pela dinastia imperial poderia superar; recusou, como o pai, o viscondado e as ordens imperiais. Talvez no Terceiro Reinado isabelino, a lhaneza arguta da imperatriz (D. Isabel I) o dobrasse, mas isto não chegou a ocorrer. Nabuco foi um imenso monarquista, como seu pai e seus antepassados. Entendia que sem a monarquia, acabaria o Brasil. Ia além. Entendia que sem a monarquia, inexistiriam reformas para que os antigos escravizados se tornassem cidadãos. Mas Nabuco também tinha seu (forte) pendor “pernambucanista”.
Em O Abolicionismo (1883), ele é muito claro sobre o que deveria constituir o patriotismo brasileiro. Diz ele que o verdadeiro patriotismo é aquele que concilia “a pátria com a humanidade” e que o patriotismo brasileiro não poderia continuar a se esgueirar no comércio da carne humana, ou, em suas palavras “que o Brasil tivesse o direito de ir com a sua bandeira à sombra do Direito das Gentes [Direito Internacional], criado para a proteção e não para a destruição da nossa espécie, roubar homens na África e transportá-los para o seu território”.
Lembrando que sua geração não mais aceitaria o que chamava de “prostituição da justiça” e “corrupção das autoridades”, Nabuco enfatizava que o tráfico transatlântico, em forma de pirataria, mas sob o pavilhão imperial auriverde, nunca poderia ser considerado motivo de orgulho nacional brasileiro e sim de opróbrio.
Ele termina esse trecho de O Abolicionismo pontificando sobre a soberania nacional. Ouçamo-lo: “Para ser respeitada, deve conter-se nos seus limites; não é ato de soberania nacional o roubo de estrangeiros para o cativeiro. Cada tiro dos cruzadores ingleses que impedia tais homens de serem internados nas fazendas e os livrava da escravidão perpétua era um serviço à honra nacional. Esse pano verde-amarelo que os navios negreiros içavam à popa, era apenas uma profanação da nossa bandeira. Essa eles não tinham o direito de a levantar nos antros flutuantes que prolongavam os barracões da costa de Angola e Moçambique até a costa da Bahia e do Rio de Janeiro. A lei proibia semelhante insulto ao nosso pavilhão, e quem o fazia não tinha direito algum de usar dele. Estas ideias podem ser hoje expressas com a nobre altivez de um patriotismo que não confunde os limites da pátria com o círculo das depredações traçado no mapa do globo por qualquer bando de aventureiros; a questão é se a geração atual, que odeia sinceramente o Tráfico e se acha tão longe dele como da Inquisição e do Absolutismo, não deve pôr-lhe efetivamente termo, anulando aquela parte das suas transações que não tem a menor vislumbre de legalidade. Se o deve, é preciso acabar com a escravidão, que não é senão o Tráfico tornado permanente e legitimado no período em que a nossa lei interna já o havia declarado criminoso e no qual, todavia, ele foi levado por diante em escala e proporções nunca vistas.”.
Em palavras atualíssimas, não é qualquer patriotismo que vale. Menos ainda qualquer nacionalismo. Só vale o patriotismo que faça do Brasil um país remido de suas heranças malditas, que faça de nós uma nação justa, fraterna, solidária e nada condescendente com a criminalidade e a delinquência neoescravista, neobandeirantista e neocolonialista.