Migalhas de Peso

Solicitors e as Brumas de Ávalon

Quando você está estudando inglês na escola, a palavra de escolha para ‘advogado’ é sempre ‘lawyer’. Na realidade, a generalização é sempre válida.

18/8/2022

Quando você está estudando inglês na escola, a palavra de escolha para ‘advogado’ é sempre ‘lawyer’. Não parece ser algo sem sentido, pois ‘law’ pode significar ‘lei’, no sentido mais amplo, como em ‘I fought the law and the law won1’, e significa ‘direito’, no imenso sentido do que você estuda na universidade e da matéria de interesse científico latu sensu. Opa, encaixei um latim aqui2.

Na realidade, a generalização é sempre válida. Se o sujeito estudou law, então ele será lawyer, estando atuando ou não. Por exemplo, o magistrado pode ser um lawyer, o promotor (‘prosecutor’) será necessariamente um lawyer, e o gerente da sua conta no banco pode ser lawyer também. Sem preconceitos.

Agora, quando estivermos tratando de Lawyers que atuam nas causas como procuradores de seus clientes, em todos os mundos jurídicos de tradição Inglesa (exceto nos EUA, por óbvio rompidos desde aquele incidente da independência) falamos de ‘solicitors’ e ‘barristers’. São as profissões jurídicas que estarão lá quando você estiver tratando não só com Britânicos, mas também com Canadenses, Indianos e Australianos3.

Pois bem, aqui nesse universo não vamos tratar de ‘attorney-at-law’, como já exploramos anteriormente nesse artigo [Como é que se torna advogado nos Estados Unidos?4], mas sim de duas figuras próprias do sistema: ‘the solicitor and the barrister’. Nesse artigo que vos trago, vamos tratar dos Solicitors para que, depois, com mais vagar e volta no tempo, possamos falar dos Barristers.

O solicitor é o advogado hands-on, o sujeito que faz tudo acontecer para os clientes até a porta do ‘trial court’ (o termo mais próximo é ‘vara’). Trabalham dentro de uma ‘law firm’, portanto, fazem parte de um time, de um exército de solicitors. São esses que fazem contratos, pesquisam ‘precedents’, notificam e contranotificam, avençam e desavençam, enfim, representam clientes na imensa maioria dos casos. O solicitor nada mais é do que o nosso advogado em sua essência, estando presente, inclusive, em julgamentos.

Cabe um adendo aqui: common law é (e sempre foi) avessa ao litígio. Quase 93% das causas normalmente entendidas como adjudicáveis lá são resolvidas com ADR ‘alternative dispute resolution’ (ADR5) ou com os ‘settlements’ (acordos) firmados entre as partes, inclusive de forma compulsória6 (especialmente em se tratando de direito do consumidor7). Se ainda houver insurgência quanto ao uso das ADR, há cobrança de multa alta ao litigante que prefere o litígio. Litigar na common law cobra um preço muito mais alto dos insurgentes em todas as suas extensões. Nos EUA, o sistema também opera de maneira semelhante, em uma utópica busca por um ‘mundo sem julgamentos’ (‘a world without trials8).

Portanto, o solicitor é geralmente o ponto de partida e ponto de término da imensa maioria das demandas. Daí a sua importância para esse sistema e daí uma das diferenças para o nosso ‘advogado’. A definição de ‘advogado’ e de ‘solicitor’ se confundem na grande parte da gama semântica, mas, em nenhum momento, serão idênticas por conta da implicatura de cada um dos verbetes (uma dica importantíssima para quem trabalha com tradução jurídica).

A entidade que ordena e tem competência para regular o trabalho, nomear e expulsar os solicitors é a Solicitors Regulations Authority9 (SRA), que seria o ‘equivalente’ à OAB para os solicitors da Inglaterra e de Gales. É somente após a sua inclusão no ‘Roll of Solicitors’ (‘registro de advogados’, em uma tradução livre) que você vai poder atuar como solicitor na área de competência do SRA (apenas na Inglaterra e Gales). E você pode até fazer uma busca por nome no site10, como na nossa OAB.

Solicitors podem trabalhar nas ‘high street firms’, que são as firmas comuns de qualquer cidade, realizando todo tipo de trabalho legal que você pode imaginar, ou podem também trabalhar nas ‘city firms’, os mega escritórios jurídicos de lá.

É aqui que se ouve falar do ‘magic circle’, que parece ser um feitiço saído do mago Kevin (‘Merlin’) das ‘Brumas de Ávalon’ (‘The Mists of Avalon11’). Magic Circle é o termo jornalístico criado para se referir às (atualmente cinco) law firms de maior prestígio no Reino Unido, e consequentemente no mundo afetado pela Common Law Britânica12, algumas delas com escritórios inclusive em outros países não anglofônicos. Sobre o termo magic circle, certa feita o sócio sênior (‘senior partner’) da Slaughter and May,13 Tim Clark, disse que se tratava de um termo “engraçado”14, mais utilizado jornalisticamente como marketing dos escritórios. Portanto, infelizmente, não há nada de mágico com tais firmas (fato ainda controverso).

Trabalhar em uma das law firms do magic circle é o grande sonho de todo solicitor. Esse é um nicho extremamente competitivo e o processo de seleção é tão complexo quanto (equivalente a) um exame para admissão em um mestrado. Há ainda, por conta disso, uma querela interna entre algumas dessas law firms, como se estivéssemos tratando das casas dinásticas rivais ‘Montague’ e ‘Capulet’. Existe o pub não-oficial da Allen & Overy, onde solicitors da Slaughter & May não são muito bem-vindos: o primeiro acha que o segundo é o eleito e favorito da aristocracia inglesa, o segundo acha que o primeiro é vendido ao privatismo capitalista. Ambos estão errados, mas a mitologia se perpetua. Ainda bem que não há nada parecido aqui em Pindorama (primeiros risos).

Atenção! Vale aqui fazermos uma pausa para darmos um alerta (envolto em comédia local). Há um tipo penal (‘criminal offense’) notório na common law que é o ‘soliciting’.  Vamos buscar a definição de soliciting no UK lá no Sexual Offences Act, 200315, 51A16. Como você consegue perceber claramente ‘as a prostitute’ no texto do Act17 define o tipo soliciting agregando o campo semântico da prostituição. É aqui que habita o grande perigo das traduções descuidadas e justifica a sua busca por um profissional qualificado.

É por isso que qualquer ‘solicitação’ deve ser traduzida como ‘inquiry’ ou como ‘request’, e não como ‘solicitation’, sob pena de te colocar em maus lençóis.

And now, let’s get legal!

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1 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=AL8chWFuM-s 

2 Etimologicamente ‘law’ descende de um adjetivo do (hipotético) proto-indo-europeu, com o sentido literal de ‘colocado em algum lugar’ (em latin ‘lectus’ e em grego ‘legos’ significa ‘cama’, que nos deu a palavra ‘leito’; em grego ‘lokhos’ é o verbo ‘aguardar deitado, espreitar’, e ‘alokhos’, quem espera deitada na cama, que é ‘esposa’, como se estivesse posta). Aqui você entende a completa falta de relação com a naturalidade do direito posto. Mas não espalha.

3 Alguns países, modernamente, adotam o termo ‘advocate’ para se referirem a ambas as profissões ‘solicitors’ e ‘barrister’; como se o procurador fosse a ‘voz’ dos clientes (vox significa ‘voz’, em latim; ‘vocare’ significa ‘usar a voz’, também em latim).

4 https://www.migalhas.com.br/depeso/370231/como-e-que-se-torna-advogado-nos-estados-unidos 

5 Vamos ter um artigo sobre isso, mas já indicamos um artigo bastante útil sobre o tema aqui https://brittontime.com/2021/02/05/what-are-the-four-types-of-alternative-dispute-resolution-adr/#:~:text=In%20the%20UK%2C%20there%20are,to%20later%20change%20their%20mind.

6 Dados extraídos do ‘Mediation Audit’ de 2020 realizado pelo Centre for Effective Dispute Resolution (CEDR). Disponível em https://www.cedr.com/wp-content/uploads/2021/05/CEDR_Audit-2021-lr.pdf 

7 ‘Resolving Consumer Disputes. Alternative Dispute Resolution and the Court System’, Department of Business, Energy and Insutrial Strategy, 2018. Disponível em https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/698442/Final_report_-_Resolving_consumer_disputes.pdf 

8 ‘Dispute Resolution and the Vanishing Trial: Comparing Federal Government Litigation and ADR Outcomes’, Lisa Blomgren Bingham, J.D., Tina Nabatchi, Ph.D., Jeffrey M. Senger, J.D.,and Michael Scott Jackman, M.P.A. Disponível em https://www.sidley.com/~/media/files/publications/2009/01/dispute-resolution-and-the-vanishing-trial-compa__/files/view-article/fileattachment/govlitadroutcomes.pdf

9 https://www.sra.org.uk/ 

10 https://www.sra.org.uk/consumers/register/ 

11 BRADLEY, Marion Zimmer. 1982.

12 Conheça quais são aqui https://www.thelawyerportal.com/careers/law-firm-insights/magic-circle-law-firms/ 

13 https://www.slaughterandmay.com/ 

14 “it's a funny concept. I don't know where the term came from or who founded it. It's mainly something that comes up when we talk to journalists or they talk to us. We don't describe ourselves as a Magic Circle firm in any of our marketing material”. Disponível em https://www.lawgazette.co.uk/news/its-a-kind-of-magic/42082.article 

15 Disponível em https://www.legislation.gov.uk/ukpga/2003/42/data.pdf 

16 51A Soliciting

(1) It is an offence for a person in a street or public place to solicit another (B) for the purpose of obtaining B's sexual services as a prostitute.

(2) The reference to a person in a street or public place includes a person in a vehicle in a street or public place.

(3) A person guilty of an offence under this section is liable on summary conviction to a fine not exceeding level 3 on the standard scale. 

(4) In this section “street” has the meaning given by section 1(4) of the Street Offences Act 1959

17 Vamos aprender agora que, para todos os efeitos, todos os Acts que existem na common law funcionam como todas as nossas leis federais; como o UK não se é uma federação como entendemos, a comparação aqui só presta para que se entenda que um Act tem força em toda a jurisdição do UK.

Fabio Berthier da Cunha
Professor Especialista em Inglês Jurídico da 'Legal. English for Lawyers'. Graduado em Letras, Pós-graduado em Educação. Graduando em Direito pela UniCuritiba.

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