Lei 10.833/03 - alterações na legislação do IR, PIS E COFINS
Luciana Rosanova Galhardo
Giancarlo Chamma Matarazzo
Jorge N. F. Lopes Junior*
Previsto para entrar em vigor a partir de 1.2.2004, o artigo 26 da Lei 10.833/03 tem suscitado dúvidas e debates na comunidade jurídica sobre a sua abrangência e forma de aplicação, bem como sobre a real intenção do Governo Federal com a sua instituição.
Além deste tópico, pretendemos abordar neste trabalho alguns aspectos fiscais relativos à edição da Lei 10.833/03, entre os quais a tributação do ganho de capital auferido no País pelo residente em Paraíso Fiscal, a incidência da Contribuição para a Integração Social (“PIS”) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (“COFINS”) sobre a venda de participação societária, bem como o tratamento fiscal da variação cambial de equivalência patrimonial dos investimentos brasileiros no exterior, em vista do veto presidencial ao artigo 46 da Lei 10.833/03.
I. - ARTIGO 26 DA LEI 10.833/03 - GANHO DE CAPITAL DO NÃO RESIDENTE
1.1. - Em linhas gerais, o ganho de capital obtido na alienação de um bem oudireito pode ser definido como a diferença positiva entre o valor da venda e o seu respectivo custo de aquisição. Tal conceito representa, portanto, a renda obtida pelo vendedor com a alienação daquele bem ou direito, a qual deverá estar sujeita à tributação pelo imposto sobre a renda.
1.2. - Quando um investidor estrangeiro, pessoa física ou jurídica, aliena bens ou direitos situados no País, o ganho de capital então obtido deve ser tributado no Brasil, à alíquota de 15%. Entretanto, segundo a legislação fiscal em vigor até a edição da Lei 10.833/03, tinha-se claro que esta regra somente era válida para as hipóteses em que esta alienação fosse realizada para um residente no Brasil, isto é, em que houvesse o pagamento efetuado por fonte brasileira.
1.3. - Com efeito, em entendimento corroborado pela melhor doutrina, a legislação fiscal brasileira de há muito exige que o ganho de capital do não residente somente pode ser tributado no Brasil se, cumulativamente, aqui estiverem localizadas a fonte produtora e a fonte pagadora dos rendimentos em questão. Por fonte produtora da renda, entende-se o local onde se situe o bem ou direito que tenha gerado esta renda (fonte econômica), enquanto que a fonte pagadora da renda é definida como o local de residência fiscal do ente que proceda ao seu pagamento (fonte financeira).
1.4. - Não se pretende, aqui, negar a possibilidade de que um dado país adote unicamente a fonte produtora como elemento de conexão suficiente para a tributação pelo imposto sobre a renda. Contudo, à parte as razões que levaram o ordenamento jurídico brasileiro a esta situação – por exemplo, a dificuldade em submeter um não residente a uma norma de tributação brasileira, que teria levado o País a eleger a sistemática da retenção na fonte para a tributação do ganho de capital desse não residente – certo é que, até hoje, a redação dos artigos 682 e 685 do Regulamento do Imposto de Renda de 1999 (“RIR/99”) impossibilitam a exclusão do critério da fonte pagadora para a tributação do ganho de capital do não residente.
1.5. - Por essa razão, historicamente, as operações realizadas no exterior entre dois investidores não residentes sempre estiveram fora do alcance da tributação pelo imposto sobre a renda brasileiro, ainda que tais operações tivessem por objeto bens e direitos localizados no Brasil.
1.6. - Não obstante, a redação do artigo 26 da Lei 10.833/03 (derivado do artigo 24 da MP 135/03) permite concluir que, a partir de 1.2.2004, as operações realizadas no exterior entre dois não residentes, quando relacionadas a bens ou direitos situados no País, passariam a submeter-se à incidência do imposto sobre a renda brasileiro.
1.7. - Tal dispositivo estabelece que “o adquirente, pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no Brasil, ou o procurador, quando o adquirente for residente ou domiciliado no exterior, fica responsável pela retenção e recolhimento do imposto de renda incidente sobre o ganho de capital a que se refere o art. 18 da Lei 9.249/95, auferido por pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no exterior que alienar bens localizados no Brasil”.
1.8. - Até a entrada em vigor do citado dispositivo (1.2.2004), duas questões se impõem: (i) teria o Governo Federal efetivamente pretendido criar nova hipótese de tributação, relativamente às operações praticadas entre não residentes ou a redação do artigo 26 teria derivado meramente de má técnica legislativa? (ii) caso a intenção do legislador tenha sido a de criação de nova hipótese de incidência tributária, seu intuito teria sido alcançado com a redação dada ao dispositivo mencionado?
1.9. - Como se pode notar, a norma veiculada no artigo 26 constitui, essencialmente, uma regra de atribuição de responsabilidade tributária. A esse respeito, importa mencionar que a legislação tributária brasileira, vigente até a edição da Lei 10.833/03, não era clara em relação à responsabilidade pelo recolhimento do tributo relacionado ao ganho de capital do não residente.
1.10. - De um lado, o artigo 717 do RIR/99 estabelecia, como regra geral, que competiria à fonte pagadora reter o Imposto de Renda na Fonte (“IRF”) relativo ao ganho de capital auferido no Brasil pelo residente no exterior. Por outro lado, a IN 208/02, mantendo disposição já trazida na Instrução IN 73/98, determinava de forma expressa que o responsável pelo recolhimento do imposto incidente sobre o ganho de capital obtido na alienação de bens e direitos do não residente seria o alienante ou seu procurador, na data da alienação.
1.11. - Assim, a despeito do fato de a IN 208/02 ser regra secundária de direito, sem força de lei, ela expressava o entendimento oficial das autoridades fiscais sobre a matéria. Dessa forma, convivia-se com uma contradição normativa a respeito de quem deveria ser o responsável pelo recolhimento do IRF incidente sobre o ganho de capital do não residente no País. Esta contradição, a nosso ver, gerava preocupação no Governo Federal com a efetividade da fiscalização do recolhimento desse tributo
1.12. - Tanto é assim que a Exposição de Motivos da MP 135/03, (que originou a Lei 10.833/03), esclareceu que tal dispositivo “tem por objetivo reduzir a possibilidade de não pagamento pelo contribuinte não residente do imposto de renda incidente sobre os ganhos de capital apurados na alienação de seus bens localizados no Brasil, pois atualmente cabe ao alienante a apuração e recolhimento do tributo, o que dificulta a fiscalização do cumprimento da obrigação tributária, sobretudo pela não-residência do contribuinte em território nacional”.
1.13. - Diante de tal cenário, não seria desarrazoado supormos que o Governo Federal, com a redação dada ao artigo 26 da Lei 10.833/03, teria pretendido tão somente determinar de forma expressa, por meio de lei, que o responsável pela retenção do IRF incidente sobre o ganho de capital do não residente seria o alienante ou o seu procurador, selando de forma definitiva as discussões em torno do assunto.
1.15. - Caso tenha sido esta a real intenção do Governo Federal, entendemos existirem argumentos para sustentar que a norma contida no artigo 26 da Lei 10.833/03 é precária e não se mostra suficiente para a criação da hipótese de tributação supostamente pretendida. Em obediência ao princípio constitucional da estrita legalidade tributária, a norma que pretenda instituir hipótese de incidência tributária deve trazer com precisão todos os elementos necessários a esse fim, isto é, os seus critérios temporal, espacial e material, bem como os sujeitos ativo, passivo, e critério quantitativo (base de cálculo e alíquota) da relação jurídico-tributária que pretenda instaurar.
1.16. - Apesar de fazer referência ao artigo 18 da Lei 9.249/95, a norma do artigo 26, em princípio, não contém todos esses elementos. Ao contrário, a nosso ver, do modo como está redigida, essa norma cogita apenas da responsabilidade pela retenção e recolhimento do imposto sobre o ganho de capital do não residente, prestando-se a referência ao artigo 18 da Lei 9.249/95 apenas à demarcação do tributo de cuja responsabilidade se está tratando.
1.17. - Ainda que assim não fosse, entendemos que haveria argumentos para sustentar que o ordenamento jurídico brasileiro atual não possibilita que se tributem operações cujo elemento de conexão seja apenas a fonte produtora da renda, independentemente do local de residência fiscal da fonte pagadora.
1.18. - Caso pretendesse alterar esse quadro, o legislador seria obrigado, antes, a modificar de forma clara e precisa os conceitos utilizados na legislação atual do imposto sobre a renda, de modo a possibilitar a exclusão do critério da fonte pagadora para a tributação do ganho de capital do não residente, instituindo, em seu lugar, uma norma de incidência tributária completa, em que se encontrem todos os elementos necessários à tributação almejada.
1.19. - Há que se considerar, também, a dificuldade apresentada pelo teor do artigo 26 da Lei 10.833/03 em relação à responsabilidade tributária que pretende atribuir. É de se perguntar, por exemplo, quem seria esse procurador responsável? Seria o representante indicado na inscrição do investidor estrangeiro perante o Cadastro Nacional das Pessoas Jurídicas (“CNPJ”), ou, ainda perante o Banco Central do Brasil? Um outro procurador específico nomeado exclusivamente para este fim? A falta de definição precisa do sujeito passivo, por si só, já seria suficiente para ensejar a inconstitucionalidade e ilegalidade do artigo 26, em vista da ofensa ao princípio da estrita legalidade tributária.
1.20. - Além disso, a depender da extensão dos poderes e responsabilidades conferidos a esse procurador, ou seja, se estes forem limitados a ponto de não se configurar a efetiva representação do investidor estrangeiro, poder-se-ia entender que esse procurador (de poderes e responsabilidades limitados) seria um mero terceiro à relação tributária considerada. Nessa hipótese, a ele não se poderia atribuir a responsabilidade pelo recolhimento do tributo, em obediência ao artigo 128 do Código Tributário Nacional (“CTN”), porquanto tal procurador não guardaria vínculo com o fato imponível da obrigação.
1.21. - A questão é complexa e não poderia aqui ser esgotada. Entretanto, a nosso ver, a análise da atual redação do artigo 26 da Lei 10.833/03 permite concluir que existem argumentos para questionar sua constitucionalidade e legalidade, se dele o Fisco se utilizar para pretender tributar as operações realizadas no exterior entre dois não residentes, relativamente a bens ou direitos situados no País.
1.22. - Caso, por outro lado, a intenção do legislador tenha sido meramente a de definir a atribuição da responsabilidade legal pela retenção e recolhimento do tributo em questão, espera-se que as autoridades fiscais rapidamente editem as necessárias normas explicativas, de modo a sanar as dúvidas que atualmente pairam a esse respeito.
II. - GANHO DE CAPITAL AUFERIDO PELO RESIDENTE EM PARAÍSO FISCAL
2.1. - A Lei 10.833/03, em seu artigo 47, modificou também as regras de tributação do ganho de capital auferido no País pelo residente em país de tributação favorecida, isto é, aquele que não tribute a renda ou que a tribute à alíquota máxima de 20% (“Paraíso Fiscal”).
2.2. - Com este dispositivo, fica estabelecido que o ganho de capital auferido no País por residente ou domiciliado em Paraíso Fiscal ficará sujeito ao imposto sobre a renda no Brasil à alíquota de 25%.
2.3. - O artigo 47 da Lei 10.833/03, contudo, somente passa a vigorar a partir de 1.1.2004. Até lá, portanto, entendemos que o ganho de capital auferido no País pelo residente em Paraíso Fiscal continuaria a se sujeitar ao imposto sobre a renda no Brasil à alíquota de 15%.
III. - PIS E COFINS NA VENDA DE PARTICIPAÇÃO SOCIETÁRIA
3.1. - Também a Lei 10.833/03 promoveu novas alterações na legislação do PIS e COFINS relativamente à venda de participações societárias. A esse respeito, vale esclarecer que, no direito brasileiro, o ativo permanente é gênero, do qual são espécies as contas de (i) investimentos (participação societária); (ii) ativo imobilizado; e (iii) ativo diferido.
3.2. - De acordo com as regras previstas na Lei 9.718/98, que regia as contribuições para o PIS e para a COFINS, as receitas provenientes da venda de bens do ativo permanente deveriam ser excluídas da base de cálculo de ambas as contribuições. A alienação de participação societária por sociedade brasileira não estava, portanto, sujeita à incidência do PIS ou da COFINS.
3.3. - Posteriormente, a Lei 10.63702 revogou a Lei 9.718/98, no tocante às regras de incidência do PIS não-cumulativo, e deixou de prever a referida exclusão, de modo que tais receitas passaram a ser tributadas pelo PIS. Assim, a partir de 1.12.2002, o PIS passou a incidir sobre a venda de participações societárias.
3.4. - A Lei 10.684/03, por sua vez, determinou novamente que, a partir de 1.2.2003 a receita da venda de ativos imobilizados não mais estaria sujeita ao PIS, mantendo a venda de participação societária sujeita a essa contribuição. Para a COFINS, continuava valendo a regra da Lei 9.718/98, ou seja, não havia a incidência da COFINS sobre a venda de participação societária.
3.5. - A MP 135/03 definiu novas regras para a COFINS não-cumulativa, determinando que apenas a venda de ativo imobilizado estaria excluída da incidência dessa contribuição. Segundo a MP 135/02, portanto, a partir de 1.2.2004, a COFINS passaria a incidir também sobre a venda de participação societária.
3.6. - Entretanto, quando da conversão da MP 135/03 em lei (Lei 10.833/03), este dispositivo foi alterado, passando novamente a prever a exclusão das receitas da venda de ativo permanente da incidência da COFINS. Bem assim, a Lei 10.833/03 estabeleceu a mesma exclusão para o PIS.
3.7. - Em síntese, após desgastantes idas e vindas, o legislador tomou o caminho certo e determinou que, a partir de 1.2.2004, data de início de vigência dos dispositivos em questão, a alienação de participação societária, assim como de todos os bens e direitos classificados no ativo permanente, não mais estarão sujeitas à tributação pelo PIS ou pela COFINS.
3.8. - Vale mencionar que as alterações supramencionadas relacionam-se somente às sociedades tributadas pelos regimes não cumulativos, instituídos para o PIS e para a COFINS. As sociedades sujeitas à tributação segundo a sistemática cumulativa, pelo PIS e pela COFINS, continuam sujeitas à regra anterior, ou seja, a venda de participações societárias por tais sociedades não está sujeita à incidência do PIS e da COFINS.
IV. - VARIAÇÃO CAMBIAL DE EQUIVALÊNCIA PATIMONIAL
4.1. - Até o advento da Instrução Normativa nº 213, de 7.10.2002 (“IN 213/02”), o resultado da equivalência patrimonial relacionado a investimentos em sociedades controladas ou coligadas no exterior era expressamente excluído da base de cálculo do IRPJ e da CSL, por força do disposto no artigo 428 do RIR/99. A tributação ocorria apenas sobre os lucros auferidos pelas sociedades controladas ou coligadas no exterior, no momento em que tais lucros (nos termos da lei) eram disponibilizados para a sociedade investidora no Brasil.
4.2. - A IN 213/02, entretanto, determinou em seu artigo 7o, § 1o, que os valores relativos ao resultado positivo de equivalência patrimonial (lucros e variação cambial), não tributados no transcorrer do ano-calendário, deverão ser considerados no balanço levantado em 31 de dezembro do ano-calendário para fins de determinação da base de cálculo do IRPJ e da CSL.
4.3. - A nosso ver, ao assim dispor, a IN 213/02 extrapolou de sua função primária, a de regulamentar previsões legais já existentes, e pretendeu instituir nova hipótese de tributação não prevista em lei, em manifesta ofensa ao princípio da estrita legalidade tributária.
4.4. - Ciente deste problema, que já vinha gerando decisões judiciais favoráveis aos contribuintes sobre a matéria, o Governo Federal incluiu no projeto de conversão da MP 135/03 em lei (artigo 46), encaminhado ao Congresso Nacional, uma previsão no sentido de que “a variação cambial dos investimentos no exterior avaliados pelo método da equivalência patrimonial é considerada receita ou despesa financeira, devendo compor o lucro real e a base de cálculo da CSLL relativos ao balanço levantado em 31 de dezembro de cada ano-calendário”.
4.5. - Contudo, ao sancionar a Lei 10.833/03, o Presidente da República vetou o artigo 46 de seu projeto, manifestando, na Mensagem nº 795, de 29 de dezembro de 2003, as suas razões para tanto: “não obstante tratar-se de norma de interesse da administração tributária, a falta de disposição expressa para sua entrada em vigor certamente provocará diversas demandas judiciais, patrocinadas pelos contribuintes, para que seus efeitos alcancem o ano-calendário de 2003, quando se registrou variação cambial negativa de, aproximadamente, quinze por cento, o que representaria despesa dedutível para as pessoas jurídicas com controladas ou coligadas no exterior, provocando, assim, perda de arrecadação, para o ano de 2004, de significativa monta, comprometendo o equilíbrio fiscal.”
4.6. - A nosso ver, o veto presidencial ao artigo 46 constitui mais um elemento de reforço aos argumentos que podem ser levantados contra a legalidade do artigo 7o, § 1o da IN 213/03, deixando claro que não há, na atual legislação fiscal brasileira, qualquer previsão legal capaz de tributar os resultados de variação cambial de equivalência patrimonial pelo IRPJ e CSL.
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* Advogados do escritório Pinheiro Neto Advogados
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