O debate que gera crescentes demandas junto ao poder judiciário é o que envolve o tratamento para obesidade em clínicas de emagrecimento, com características de “spa”, e seu alto custo para os planos de saúde.
Antes de adentrar ao mérito da discussão é importante destacar que a obesidade é uma doença que, como diversas outras, possui níveis de gravidade e diversos tratamentos para seu controle.
A Agência Nacional de Saúde (ANS) preconiza para o tratamento da obesidade um estilo de vida com hábitos saudáveis e, quando necessário, a utilização de medicamentos. Ultrapassadas as possibilidades de sucesso, é indicada a cirurgia bariátrica ou de redução de estômago, de acordo com as regras descritas no rol de procedimentos, devendo ser observados peso, idade, tempo do quadro clínico e comprovação de outros tratamentos para ser aprovado.
A Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica elaborou, em 2016, um manual contendo as diretrizes para o tratamento da obesidade e destaca-se que nele não contém a internação em clínica de emagrecimento como forma de tratamento.
Em análise das ações distribuídas no âmbito dos tribunais brasileiros vê-se não só a busca pelo custeio em clínicas de emagrecimento, como há requerimentos para locais específicos de alto custo e que fornecem atividades lúdicas como meio clínico para os quadros de obesidade.
Em alguns casos, o custeio dessas internações soma valores acima de R$ 350 mil, um gasto desproporcional à relação contratual firmada com os planos de saúde, principalmente por não possuírem qualquer comprovação científica de eficácia.
Os enunciados 21 e 26 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) orientam os julgadores no sentido de que o rol de procedimentos é a “referência mínima para cobertura” e que é “lícita a exclusão de cobertura de produto, tecnologia e medicamento importado não nacionalizado, bem como tratamento clínico ou cirúrgico experimental”.
Pois bem, o que se vê com essas internações de alto custo, como a citada acima, é uma tentativa forçada de autorização para o custeio por parte dos planos de saúde para experimentos sem reconhecimento da comunidade médica e que ainda desgastam a relação entre as operadoras e o consumidor.
Em recente decisão publicada em 01 de agosto de 2022, a Juíza Ana Cláudia Silva Mesquita, da 3ª Vara da Relação de Consumo do Tribunal de Justiça da Bahia, proferiu decisão relativa ao tema, na qual abordou pontos de referência para futuros julgamentos.
A magistrada ressaltou a ponderação de interesses na relação contratual, considerando os seus limites, uma vez que o contrato é firmado de maneira que as operadoras de planos de saúde forneçam o necessário ao beneficiário, desde que seja dentro de sua rede credenciada, em contrapartida ao recebimento de uma mensalidade. Qualquer abrangência externa está fora de suas obrigações como contratada.
Na decisão bem fundamentada que motivou este artigo, a Magistrada levanta a necessidade de comprovação de tratamento prévio para o combate à obesidade, seja por meio de dietas, exercícios físicos, acompanhamento psicológico, seguindo detidamente a orientação da agência reguladora, ANS.
Ainda, segue afirmando que:
A ANS reconhece o direito do portador de obesidade médica poder realizar tratamentos cirúrgicos para curar-se da referida doença e chegou a autorizar o internamento dos portadores de obesidade em clínica de emagrecimento pela Resolução 167 da ANS do ano de 2007, entretanto, esse tipo de procedimento foi retirado da resolução em 20/3/08, ou seja, o internamento pretendido pelo autor não está autorizado pelo órgão de controle e foi excluído de forma expressa.
Este Juízo tem o entendimento de que quando o tratamento solicitado por profissional médico não está previsto na lista da ANS é possível ao Judiciário determinar que o plano arque com os custos necessários para garantir a vida do beneficiário e constato que quase sempre a Agência Reguladora, com o passar do tempo, acaba incluindo a maioria desses tratamentos em seu rol, o que torna obrigatória a cobertura dos mesmos, entretanto, nos casos de internamento em clínica de emagrecimento, vem negando o pedido, porque, embora essa seja uma ação recorrente no Judiciário Baiano desde o ano de 2008, até hoje a ANS não incluiu esse procedimento em sua lista, que já foi atualizada nesse ano de 2022.
Como a clínica, em que foi requerida a internação da requerente, possui características reais de SPA, que, inclusive, divulga, em suas propagandas pela internet, os benefícios do seu ambiente aprazível e luxuoso, distancia-se por completo do objetivo do contrato e das obrigações para tratamento de saúde.
É importante destacar que a ANS revisita seu rol de procedimentos com regularidade, a fim de acrescentar novos procedimentos, tratamentos, medicamentos e tudo o mais que se fizer necessário, de acordo com estudos e pesquisas científicas, ponderando a necessidade da sociedade. Porém, desde o ano de 2008 não incluiu o referido tratamento em debate, o que corrobora o entendimento pela sua desnecessidade.
Ainda, o alto valor desse tipo de internação traz o risco de quebra das operadoras, uma vez que para o tratamento de um beneficiário arrisca-se a prestação de serviços aos demais usuários do plano.
Como bem pontua a magistrada, “Registre-se, ainda, que o tratamento solicitado tem alto custo para os planos e a obrigatoriedade de um serviço não previsto no contrato, nem no rol da ANS, pode fragilizar a vida financeira dos planos de saúde, impactando a vida de outros consumidores que no futuro podem ser prejudicados com a quebra da empresa, tal como já aconteceu com a Unimed Salvador, Unimed Paulistana, dentre outras”.
É preciso ainda ressaltar a nova realidade do rol da ANS e sua interpretação taxativa, que tem como objetivo preservar os direitos dos usuários dos planos de saúde, incluindo procedimentos com eficácia comprovada à luz da medicina baseada em evidências.
Como bem se sabe, recentemente a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) na votação pela taxatividade do ROL ANS definiu as seguintes teses:
1. O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar é, em regra, taxativo;
2. A operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao rol;
3. É possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra rol;
4. Não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (i) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol da saúde suplementar; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como Conitec e Natjus) e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS.
Posterior ao julgamento do STJ, a Câmara dos Deputados, no último dia 03 de agosto de 2022, aprovou o Projeto de Lei (PL) 2033/22 para previsão da cobertura pela ANS no que tange à continuidade de procedimentos anteriormente previstos e que poderão ser excluídos. A proposta ainda segue para análise do Senado Federal, a fim de cumprir o processo legal previsto constitucionalmente.
Dentre as previsões do PL, estão:
“Entre os pontos da regulamentação, a proposta determina que a lista de procedimentos e eventos cobertos por planos de saúde será atualizada pela ANS a cada incorporação. O rol servirá de referência para os planos de saúde contratados desde 1º de janeiro de 1999. Fonte: Agência Câmara de Notícias.
Quando o tratamento ou procedimento prescrito pelo médico ou odontólogo assistente não estiver previsto no rol, a cobertura deverá ser autorizada se:
- Existir comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico;
- Existir recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS;
- Existir recomendação de, no mínimo, um órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais. Fonte: Agência Câmara de Notícias”
Neste sentido, o que se vê é que mesmo após aprovação da reformulação proposta pelo legislativo, não há que se falar em cobertura pelo rol da ANS daquilo que não há respaldo científico, bem como que será preciso constar o procedimento/tratamento/medicamento no rol para que haja obrigatoriedade de concessão pelas operadoras, não havendo o afastamento de seu caráter taxativo.
Todavia, a insistência e o uso de mecanismos para driblar o rol é evidente e ferem o princípio da harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo (art. 4º, III do CDC), uma vez que se espera boa-fé e equilíbrio não apenas dos fornecedores, mas, também, dos consumidores, resultando em postura prejudicial à coletividade e impactante para um bom final. Além disso, tal insistência vai de encontro aos entendimentos anteriores e posteriores ao recente precedente do STJ e fazem com que o Judiciário erroneamente conceda tratamentos para satisfazer interesses pessoais desprovidos de sustentação clínica e que podem levar à extinção de diversas operadoras de planos de saúde no Brasil.