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Necessária adequação da interpretação da súmula 620/STJ

Parece-nos que a inclusão de ressalva como “ressalvada a possibilidade de perda do direito à indenização, quando comprovado o nexo de causalidade entre a embriaguez e a ocorrência do sinistro” à redação atual da tese solucionaria o problema de que tratamos nestas breves linhas.

8/8/2022

Propomo-nos, neste artigo, a fazer breves reflexões sobre tema que está na pauta da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no próximo dia 10 de agosto.

O colegiado julgará o REsp 1.999.624/PR, de relatoria do eminente ministro Luis Felipe Salomão, decorrente da afetação proposta, à unanimidade, pelos integrantes da 4ª Turma do STJ.

A discussão está centrada na reanálise da tese firmada pelo próprio colegiado, em dezembro de 2018, quando da edição da Súmula 620, de seguinte redação: “A embriaguez do segurado não exime a seguradora do pagamento da indenização prevista em contrato de seguro de vida”.

Este julgamento nos parece sobremodo importante, porque evidencia a necessidade de que se mantenha, constantemente, controle sobre a aplicação dos precedentes firmados pelos tribunais superiores, garantindo-se que a interpretação que se vem emprestando a esses precedentes seja, realmente, compatível com aquilo que terá sido decidido.

Para além disso, outro aspecto deste julgamento é de capital importância: a questão jurídica por detrás do recurso especial em pauta também evidencia a necessidade de que a tese firmada seja, tanto quanto possível, abrangente, a fim de se aproximar ao máximo da elucidação da ratio decidendi.

A Súmula 620 foi editada pelo STJ após o julgamento do EREsp 973.725/SP, de relatoria do eminente Ministro Lázaro Guimarães, pela 2ª Seção, oportunidade em que o colegiado decidiu não ser válida a “exclusão de cobertura na hipótese de sinistros ou acidentes decorrentes de atos praticados pelo segurado em estado de insanidade mental, de alcoolismo ou sob efeito de substâncias tóxicas.

Da própria ementa do acórdão se verifica a referência feita à Carta Circular 08/07, da SUSEP, que contém a seguinte diretriz: “1) Nos Seguros de Pessoas e Seguro de Danos, é VEDADA A EXCLUSÃO DE COBERTURA na hipótese de ‘sinistros ou acidentes decorrentes de atos praticados pelo segurado em estado de insanidade mental, de alcoolismo ou sob efeito de substâncias tóxicas’; 2) Excepcionalmente, nos Seguros de Danos cujo bem segurado seja um VEÍCULO, é ADMITIDA A EXCLUSÃO DE COBERTURA para ‘danos ocorridos quando verificado que o VEÍCULO SEGURADO foi conduzido por pessoa embriagada ou drogada, desde que a seguradora comprove que o sinistro ocorreu devido ao estado de embriaguez do condutor.

Após o julgamento e, inclusive, após a própria edição da Súmula 620, que, de modo genérico, parece tornar irrelevantes as circunstâncias do caso concreto, que revelem, por hipótese, o nexo de causalidade entre o agravamento do risco e a ocorrência do sinistro, as turmas que compõem a 2ª Seção do STJ continuaram a adotar a orientação que nos parece a mais correta, ou seja, de que o agravamento de risco não pré-exclui a cobertura, mas pode servir de fundamento à perda da garantia, se demonstrado o nexo de causalidade entre a embriaguez, por exemplo, e a ocorrência do sinistro.1                

A restritiva tese fixada (Súmula 620), porém, também tem levado os tribunais a decidir pela irrelevância da prova a respeito do nexo de causalidade, porque a indenização securitária seria sempre devida, independentemente de a conduta do segurado ter ou não sido determinante à ocorrência do sinistro, posição que, a nosso juízo, distancia-se da ratio decidendi do EREsp 973.725/SP, que resultou na aprovação da Súmula 620.

Isso porque o acórdão, como já referimos acima, lastreia-se a Carta Circular 08/07, da SUSEP, que não trata da perda da indenização (ou seja, perda do direito à indenização após a ocorrência do sinistro), mas, apenas, da pré-exclusão da cobertura, por meio de disposição contratual (ou seja, exclusão da cobertura antes da ocorrência do sinistro, naturalmente).

A própria Carta Circular faz referência ao Parecer da Procuradoria da SUSEP (“Parecer PF – SUSEP/Coordenadoria de Consultas, Assuntos Societários e Regimes Especiais – 26.522/07”), que distingue o agravamento de risco da exclusão de risco. De acordo com o Parecer aprovado pela SUSEP, inválida é a exclusão de risco, que se caracteriza pela exclusão contratual da cobertura, diferentemente do que ocorre com a perda da indenização, decorrente do agravamento de risco tal que terá causado o sinistro.

É preciso destacar, ademais, que o próprio Parecer – referido pela Carta Circular – faz referência expressa e clara à embriaguez ao volante como causa de exclusão de indenização. Eis os termos da opinião jurídica: “seria de melhor técnica contratual, considerar o consumo de tais substâncias como agravamento de risco e não como risco a ser excluído. É indispensável a prova a ser desempenhada pela seguradora, do nexo causal entre o estado anormal do segurado e o evento danoso.  

Portanto, o fundamento adotado pela SUSEP, que serviu de ratio decidendi a diversos precedentes do STJ, claramente não impede a perda da indenização securitária quando se constatar (e provar, é claro), após a ocorrência do sinistro, que o evento danoso terá ocorrido por consequência da conduta desregrada do segurado, manifestada, por exemplo, pelo consumo de álcool.

A tese firmada, portanto, parece-nos não refletir exatamente os fundamentos adotados pela 2ª Seção, quando do julgamento do EREsp 973.725/SP, já que muitas decisões têm considerado irrelevante a circunstância de a conduta do segurado ter sido determinante à ocorrência do sinistro.

Por isso, o julgamento do REsp 1.999.624/PR dará boa oportunidade à 2ª Seção para controlar a interpretação de seu próprio precedente, caso em que nos parece necessária a adequação da redação da Súmula 620/STJ, para que da tese conste, com clareza, estar-se tratando de exclusão de cobertura e não de exclusão de indenização, quando já ocorrido o sinistro, caso em que será possível, à seguradora, provar que o agravamento de risco foi determinante à ocorrência do evento danoso.

É preciso destacar, por fim, que esta orientação é a que mais se alinha ao art. 768 do Código Civil, que expressamente diz perder o direito à indenização, o segurado que houver agravado intencionalmente o risco.

É senso comum – verdadeiro fato notório – que a ingestão de bebidas alcoólicas ou o uso de drogas diminui as reações do indivíduo e, por evidente, contribui para a ocorrência de acidentes.

Por isso, exigir da seguradora o pagamento da indenização, ainda que o sinistro tenha ocorrido por consequência de conduta do segurado (agravamento de risco), acaba por onerar não só a seguradora, mas, também, o próprio grupo de segurados, já que os valores dos prêmios deverão refletir o risco a que a própria seguradora estará exposta. De regra, os cálculos atuariais para definição do prêmio levam em consideração as características indicadas pelo segurado no momento anterior à contratação. Passando a responder, também, pelos riscos aumentados no curso do contrato – de que a seguradora não tinha conhecimento, portanto – restarão inflados os valores dos prêmios, simplesmente porque os cálculos deverão considerar potenciais agravamentos de risco.

Somam-se a essas consequências negativas, vale dizer, o fato de a manutenção do direito à indenização, mesmo em caso de embriaguez ao volante (caso típico de agravamento de risco), constituir verdadeiro estímulo à prática de condutas que, rigorosamente, são tipificadas pela Lei de Trânsito (art. 306 do CTB). Ou seja, uma conduta que, para o Direito Penal, constitui crime, não pode, para o Direito Civil (Seguros) ser irrelevante.

O que aqui defendemos, portanto, é a adequação da redação da Súmula 620/STJ à ratio decidendi do precedente que a formou, que, referindo-se à Carta Circular 8/07, da SUSEP, deve expressamente distinguir situações que são absolutamente distintas. A pré-exclusão da garantia, por contrato, é inválida, como entende a SUSEP, o que não significa dizer que o agravamento de risco que leve à ocorrência do sinistro (nexo de causalidade) seja irrelevante. Pelo contrário, o agravamento de risco que conduza diretamente à ocorrência do evento danoso deve resultar, por força do art. 768 do Código Civil, na perda do direito à indenização securitária, inclusive como decorrência da mais adequada interpretação do art. 765 do Código Civil, que cuida da necessidade de respeito, por ambas as partes contratantes, à boa-fé e à veracidade.

Parece-nos, portanto, que a inclusão de ressalva como “ressalvada a possibilidade de perda do direito à indenização, quando comprovado o nexo de causalidade entre a embriaguez e a ocorrência do sinistro” à redação atual da tese (Súmula 620) solucionaria o problema de que tratamos nestas breves linhas.

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1 Nesse sentido, a título de exemplo: “CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA DE INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 489 E 1022 DO CPC/2015. INOCORRÊNCIA. FUNDAMENTAÇÃO. DEFICIENTE. EMBRIAGUEZ DO CONDUTOR E AGRAVAMENTO DO RISCO NÃO COMPROVADOS. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INADMISSIBILIDADE. HARMONIA ENTRE O ACÓRDÃO RECORRIDO E A JURISPRUDÊNCIA DO STJ. 1. Ausentes os vícios do art. 1022 do CPC/2015, rejeitam-se os embargos de declaração. 2. Devidamente analisadas e discutidas as questões de mérito, e fundamentado corretamente o acórdão recorrido, de modo a esgotar a prestação jurisdicional, não há que se falar em violação do art. 489 do CPC/2015. 3. A ausência de fundamentação ou a sua deficiência importa no não conhecimento do recurso quanto ao tema. 4. A embriaguez do segurado, por si só, não exime o segurador do pagamento de indenização prevista em contrato de seguro de vida, sendo necessária a prova de que o agravamento do risco decorrente da embriaguez influiu decisivamente na ocorrência do sinistro. 5. Tendo a Corte de origem concluído que a seguradora não logrou comprovar o alegado estado ébrio do condutor, tampouco demonstrou a existência de nexo de causalidade entre a suposta embriaguez e o sinistro, o reexame da questão encontra óbice na Súmula 7/STJ. 6. Agravo interno no agravo em recurso especial não provido.” (STJ. 3ª T. AgInt no AREsp 1.229.136/RS. Rel.ª Min.ª Nancy Andrighi, j. em 19.6.2018); “PROCESSO CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA DE SEGURO DE VIDA. EMBRIAGUEZ DO SEGURADO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 83 DO STJ. DECISÃO MANTIDA. 1. Nos termos da jurisprudência desta Corte, a embriaguez, por si só, não exime o segurador do pagamento de indenização prevista em contrato de seguro de vida, sendo necessária a prova de que o agravamento do risco decorrente da embriaguez influiu decisivamente na ocorrência do sinistro. Precedentes. 2. Agravo interno a que se nega provimento.” (STJ. 4ª T. AgInt no AREsp 1.708.444/SP. Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira, j. em 12.4.2021).

Thereza Arruda Alvim
Sócia e fundadora do Arruda Alvim e Thereza Alvim Advocacia e Consultoria Jurídica

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