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Direito ao uso de pseudônimo no ordenamento jurídico brasileiro

O direito de utilizar um pseudônimo não é absoluto, pois não é protegido se utilizado para atividades ilícitas, como difamar, injuriar, discriminar ou causar danos.

8/8/2022

Introdução

Um pseudônimo é definido como um nome fictício usado por um indivíduo como alternativa ao seu nome legal.

No ordenamento jurídico brasileiro o direito à utilização de um pseudônimo está garantido pelo Código Civil que estabelece, no art. 19, que “O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome.” A Constituição Federal de 1988 assegura, ainda, ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

No âmbito das atividades artísticas, a escolha por empregar um pseudônimo pode se dar por diversos motivos: a escolha de um nome mais vistoso, o furor causado pelo mistério envolvendo um autor desconhecido, a proteção a intimidade, ou mesmo, no caso de pessoas já consagradas, a possibilidade de ter sua obra recepcionada sem o status trazido pelo nome.

O uso do pseudônimo nem sempre tem como finalidade o encobrimento do nome real do indivíduo, que é chamado de ortônimo.

Um caso exemplar é o de Pablo Neruda, poeta chileno ganhador do Prémio Nobel de Literatura em 1971. Ricardo Neftali Reyes Basoalto era seu nome de batismo, mas na adolescência adotou o pseudônimo Pablo Neruda em homenagem ao escritor tcheco Jan Neruda. O autor utilizou o pseudônimo durante toda sua vida, tornando-o, após ação de modificação de nome civil, seu nome legal.

Cristiano Chaves de Farias destaca, no entanto, que existem casos nos quais a utilização do pseudônimo tem como finalidade o exercício de uma atividade livre de estigmas e preconceitos que podem defluir da verdadeira identificação da pessoa. O sujeito evita se identificar para, dessa maneira, preservar a sua personalidade individual naquela atividade específica.

A Constituição da República estabelece no seu artigo 5º, inciso X, que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. A proteção à intimidade e à vida privada é, portanto, reconhecida pela Carta Magna como um direito fundamental.

Essa salvaguarda é regulada, ainda, em âmbito infraconstitucional, pelo Código Civil que dispõe no artigo 21 que “A vida privada da pessoa natural e' inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotara' as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.

Dessa forma, se mostra lícito a utilização de pseudônimo a fim de se resguardar da exposição pública, desde que associado à determinação contida no art. 19 do Código Civil, ou seja, adotado para atividades lícitas.

É o que ressalta Farias:

Em face de suas características e finalidades de seu uso, essa tutela jurídica do pseudônimo se concretiza, dentre outras formas, por meio do sigilo de identificação da pessoa, sob pena de esvaziamento da sua própria intenção. Ou seja, quem usa um pseudônimo tem assegurado o sigilo de sua identificação, como mecanismo de preservação de sua personalidade.

É o que aconteceu com a escritora britânica J. K. Rowling, que publicou o romance “The cuckoo’s calling” sob o nome Robert Galbraith. Seu pseudônimo foi revelado por um artigo do jornal “Sunday Times”, após um sócio do escritório de advocacia que a representava confidenciar à melhor amiga de sua esposa a verdadeira identidade de Galbraith.

Rowling acionou judicialmente os responsáveis pelo vazamento, que se retrataram publicamente e foram condenados a indenizá-la em valor não divulgado.

Controversa, também, foi a suposta revelação de que Elena Ferrante – o pseudônimo literário que tem sido mais discutido no século XXI – seria a tradutora italiana Anita Raja, esposa do escritor Domenico Starnone.

Após quase vinte e cinco anos publicando sob o pseudônimo, Ferrante, conhecida pelas obras que compõem a “Tetralogia Napolitana”, foi alvo de investigação realizada pelo jornalista Claudio Gatti.

Gatti rastreou movimentações financeiras entre a editora “Edizioni e/o” - que publica as obras de Elena Ferrante na Itália – e Anita Raja, contratada pela empresa como tradutora. Além disso, o jornalista apurou registros de imóveis comprados por Raja e seu marido, concluindo que os valores transacionados e a evolução patrimonial do casal eram incompatíveis com suas profissões declaradas, corroborando a hipótese de que Raja seria Elena Ferrante.

Ao final de seu artigo, Gatti afirma, em uma espécie de justificativa, que “Em uma era em que fama e celebridade são desesperadamente procuradas, a pessoa por trás de Ferrante aparentemente não queria ser conhecida. Mas o sucesso sensacional de seus livros tornou a busca virtual por sua identidade inevitável. Também foram deixadas provas financeiras que falam por si mesmas.

Chaves de Faria, no entanto, assevera que:

“[...] é lamentável verificar episódios de quebra indevida de sigilo de identificação do ortônimo (pessoa que se encontra por trás do pseudônimo). O caso é grave porque constitui violação da personalidade, ocasionando dano moral indenizável, sem prejuízo de eventuais danos materiais (dano emergente e lucros cessantes) e, até mesmo, reparação por perda de uma chance.

[...]

Não se pode, pois, quebrar o sigilo de pseudônimos usados para atividades artísticas, sob pena de grave violação da proteção da personalidade e de comprometimento da liberdade de pensamento e de expressão – que são cláusulas pétreas.”

O art. 5º, inciso IV da Constituição de 1988 dispõe que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Esse dispositivo possibilita a responsabilização em casos de abuso, pois, como se sabe, a liberdade de expressão pode encontrar limites quando em choque com outros direitos, como a honra, a intimidade e a vida privada, bem como não pode ser utilizada como defesa para manifestações de ódio.

No Brasil, um caso emblemático é o do escritor e editor gaúcho Siegfried Ellwanger Castan condenado pela prática de crime de racismo devido a publicação de livros de conteúdo discriminatórios contra o povo judeu.

No habeas corpus 82.424/RS (STF) a defesa de Ellwanger sustentou que suas manifestações estavam abarcadas pela liberdade de expressão, no entanto, a tese vencedora constou dos itens 13 e 14 da ementa da seguinte forma:

13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica.

O Código Civil, no entanto, é claro na proteção ao uso de pseudônimo para fins lícitos. Dessa forma, o sigilo de identificação da pessoa que adota um pseudônimo só deve ser quebrado em caso de utilização para atividades ilícitas, sob pena de violação de seus direitos de personalidade e da sua dignidade.

Com o advento da Internet, no entanto, a análise da pseudonímia nas publicações se torna mais complexa. O direito de utilização para atividades lícitas permanece, mas no caso de necessidade de responsabilização pelo cometimento de ilícitos, o provedor deverá fornecer o número IP (Internet Protocol), para possibilitar a identificação do autor.

Esse dever decorre das normas estabelecidas nos art. 13 e 15 do Marco Civil da Internet (lei 12.965 de 2014):

Art. 13. Na provisão de conexão à internet, cabe ao administrador de sistema autônomo respectivo o dever de manter os registros de conexão, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 1 (um) ano, nos termos do regulamento.

[...]

§ 5º Em qualquer hipótese, a disponibilização ao requerente dos registros de que trata este artigo deverá ser precedida de autorização judicial, conforme disposto na Seção IV deste Capítulo.

Art. 15. O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento.

Da mesma maneira entendeu o STJ no REsp 1829821 que não se pode exigir do provedor a fiscalização prévia das informações publicadas na rede, todavia, é dever desse propiciar os meios para que se possa identificar cada usuário (por meio do número IP), de modo a se coibir o anonimato e atribuir a toda manifestação uma autoria certa.

"Ainda que não exija os dados pessoais dos seus usuários, o provedor de conteúdo, que registra o número de protocolo na internet (IP) dos computadores utilizados para o cadastramento de cada conta, mantém um meio razoavelmente eficiente de rastreamento dos seus usuários, medida de segurança que corresponde à diligência média esperada dessa modalidade de provedor de serviço de internet"

E, ainda, merece destaque a doutrina de Fabiana Cristhina Almeida da Penha:

Haverá responsabilização civil subjetiva de provedores de acesso por ilícitos de usuários quando aqueles não colaborarem para a identificação do autor do dano, deixando de cumprir dever positivo de oferecer o número de IP (Internet Protocol), necessário ao rastreamento de pessoas que acessam a rede.

Percebe-se que havendo colisão entre a proteção ao pseudônimo e a vedação ao anonimato, em regra, prevalece o direito da personalidade. A exceção é a sua utilização para atividades ilícitas, o que demanda análise casuística e decisão judicial para a quebra do sigilo do ortônimo.

A pseudonímia é, portanto, um direito assegurado no ordenamento jurídico brasileiro que, além do seu reconhecimento pelo Código Civil, decorre diretamente do direito fundamental a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

O direito de utilizar um pseudônimo não é absoluto, pois não é protegido se utilizado para atividades ilícitas, como difamar, injuriar, discriminar ou causar danos. Nesses casos, o sigilo de identificação da pessoa poderá ser quebrado por decisão judicial de modo a permitir a devida responsabilização do indivíduo.

Eduardo Faria
Advogado do escritório Barreto Dolabella. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília - UNB.

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