E como se torna um ‘advogado’ no Reino Unido? Essa é uma pergunta que vou responder em pequenas doses, basicamente porque a resposta nos exige um entendimento sobre jurisdição e, incrivelmente, uma revisão de geografia.
Quando falamos genericamente ‘United Kingdom’(UK), ou simplesmente ‘Britain’, estamos falando de 4 países distintos que operam como um corpo unitário para todos os efeitos nas rodas internacionais: Inglaterra, Escócia, Gales, e Irlanda do Norte. São distintos culturalmente ao mesmo tom de distinção entre Argentina e Uruguai, por exemplo.
Falam, oficialmente, a mesma língua e constituem um contínuo linguístico bastante sutil à medida em que você caminha em direção de um a outro, mas as mudanças dialetais são melhor percebidas quanto você olha para a jornada já caminhada. É bastante óbvio perceber isso quando andamos pelo nosso Brasil de contínuos linguísticos próximos entre fronteiras, mas que se alteram sensivelmente ao largo das centenas de quilômetros.
Depois de muita história e muito conflito, a atual configuração do UK foi bastante modificada: em 1707, a Escócia entra para o Reino. E em 1801, é a vez da Irlanda (operando até então como um só país dentro da ilha esmeralda, mas já volto ao assunto), criando-se, assim, o ‘United Kingdom of Ireland and Great Britain’.
A própria bandeira do UK simboliza essa união. É por isso que a bandeira tem o apelido de ‘Union Jack’. A cruz de Santo André (Saint Andrew) para a Escócia, a cruz de São Patrício (Saint Patrick) para a Irlanda e a cruz de São Jorge (Saint George) para a Inglaterra. Remontando a um passado do medievo católico, unem-se para formar aquela bandeira que vemos nas olimpíadas como GBR (Great Britain).
Mais recentemente, em 1922 (há exatos cem anos, portanto), a maior porção da Ilha da Irlanda se separou do UK, criando, assim, ‘the Republic of Ireland’. Uma república mesmo, uma ‘Unitary Parlamentary Republic’ com um presidente com mandato de sete anos e um parlamento. Vamos ter um artigo especial sobre o sistema judiciário de lá em breve (não só porque esse que vos fala é fã de James Joyce, mas principalmente por conta de um aspecto constitucional peculiar de lá). Daquele tratado ficou estabelecido que, 90% da ilha criariam ‘The Republic of Ireland’, mas outro tomo ainda permaneceria dentro do UK como ‘Northern Ireland’, este com a capital em Belfast.
Judicialmente, quando falamos ‘Common Law’ Britânica, estamos nos referindo a algo sem sentido, pois a Inglaterra opera judicialmente em conjunto com Gales – formando que conhecemos como ‘English-Welsh system’ -, enquanto Escócia e Irlanda do Norte operam em sistemas judiciais independentes, que só se unem lá no topo da hierarquia, na ‘Supreme Court of the United Kingdom’.
Alguns dos países que fizeram parte do império Britânico ainda contém uma pequenina ‘Union Jack’ em suas bandeiras. Pense na bandeira da Austrália, da Nova Zelândia e de Bermudas, por exemplo. No entanto, não é somente nesse passado colonial inglês que os países têm semelhança. Há também uma união jurisdicional misteriosa entre eles. Explico.
Como sabemos, a expansão do Império Britânico ganhou força no século XVII e teve seu auge no reinado da Rainha Victória, lá no século XIX, chamado de ‘o Século Britânico’ (The British Century).
Pois bem, exceto quando perdeu a guerra da independência, tendo que ceder as 13 colônias aos norte Americanos lá no final do século XVIII, o século XIX foi marcado por expansões territoriais bastante significativas para o Império Britânico. Em 1920, o Império Britânico dominava cerca de meio bilhão de pessoas, um quarto da população do mundo na época, e em seu auge chegou a abranger ¼ de todo o território da terra. Como resultado, seu legado político, cultural e linguístico é imenso. No auge do seu poder, foi dito muitas vezes que "o sol nunca se põe no império Britânico". Sobre essa frase, o influente diplomata e político indiano Shashi Tharoor dizia que era porque nem mesmo Deus confiava nos Britânicos no escuro.
A lista de todos os países que um dia foram parte do império Britânico é bem grande. De Belize à Botsuana, de Malta ao Yemen, de Sri Lanka ao Kuwait, todos, em algum momento da história, fizeram parte do império Britânico. Apesar de já existir uma ‘British Commonwealth of Nations’ desde o início do século XX, foi com as declarações de independência, quase que concomitantes de alguns deles no pós-guerra, que se viu a necessidade de se aprimorar essa organização intergorvernamental (não se engane, ainda hoje existem os ‘British Overseas Territories’: são 14 territórios com uma ligação inclusive jurídica com o Reino Unido, como se fossem estados de uma federação).
São países que tiveram em comum o fato de serem herdeiros culturais do Império Britânico que, além de terem uma vez pertencido ao império, receberam bens imateriais do Britânicos, como a língua, os costumes e a Common Law. Os Britânicos se orgulham bastante desse feito – apesar de serem caracterizados sempre como vilões nas histórias nacionais da maioria deles (a anedota é que quando um país celebra sua independência, os britânicos são convidados apenas para ilustrar quem estava do lado oposto).
Falam com bastante propriedade que, ao levarem o império até países como Índia, Zimbabwe e Cingapura, levaram consigo, dentro dos barcos, as leis. Importa deixar consignado que os Britânicos levam os trens, o rugby, o cricket, o chá das 5 e o shortbread e deixam a Common Law por onde passaram. Obviamente, com o propósito obscuro da repressão e reprimenda a qualquer forma de resistência local. Mas essa é uma questão que exige profunda abordagem, em espaço próprio.
A ‘Supreme Court of the United Kingdon’, estabelecida apenas em 2009 (extremamente recente, portanto), era chamada, até a reforma de 2005, de ‘House of Lords’ e seus doze ‘Lord Justices’ eram chamados ‘Law lords’, recebendo inclusive esse título real. Daí o nome ‘House of Lords’, tal qual a notória casa legislativa.
Para que não houvesse tanta confusão com a casa legislativa ‘House of Lords’, - a outra casa legislativa, dos eleitos pelo povo, é chamada ‘House of Commons’ -, e para que houvesse uma mais aparente separação entre os poderes, toda a ‘Supreme Court’ foi transplantada fisicamente para outro edifício, que fica literalmente do outro lado da rua. A Rainha Elizabeth II fez a abertura oficial com revelação de efígies. Houve pompa e circunstância.
Chamados agora de ‘Supreme court Justices’, eles realizam a ‘constitutional review’, muito embora saibamos que o UK não possui um documento único chamado ‘Constitution of the United Kingdom’. Quanto eles falam de ‘constitution’ é mais uma referência à instituição do que a um documento. A ‘Supreme Court of the United Kingdon’ é a corte de última instância (court of last resort) dos países que formam o UK, dentre eles os ‘British Overseas Territories’, acima mencionados.
Curiosamente, e por conta de todo o introito histórico e geográfico trazido aqui, lá na Supreme Court of the United Kingdon’ existe um conselho, uma espécie de mini Supreme Court dentro da Supreme Court’, chamado Judicial Committee of the Privy Council, que serve como a última instância de judicial review para uma série de casos de repercussão geral e, pasmem, serve também como a última instância para vários países da Commonwealth que ainda não declinaram a posição hierárquica superior dos precedentes britânicos. Então, além de participarem de jogos a cada quatro anos nos Commonwealth games, os países mantêm um pé lá na English Common Law, mesmo que só em raríssimos casos.
Em outras palavras, a corte de última instancia em Bahamas, por exemplo, é obviamente a Supreme Court of the Bahamas. No entanto, caso aconteça de um caso julgado na Supreme Court of Bahamas ir de encontro com algum precedente anterior da House of Lords britânica, é no Privy Council que a interpretação será corrigida. O mesmo ocorre com Trinidad & Tobago, Antigua & Barbuda e Jamaica. ‘One Love’ do Bob Marley poderia muito bem ter sido inspirada no Privy Council. Como se o UK estivesse dizendo ‘Let’s get together and feel alright’ segurando o maior guarda-chuvas jurisdicional do mundo.
And now, let’s get legal!