Migalhas de Peso

Apontamentos sobre a responsabilidade solidária entre franqueado e franqueador

Os principais críticos desse entendimento, como dito, minoritário, sustentam que o franqueador deveria, nos termos do CDC, responder solidariamente, mormente em razão de o franqueador integrar a cadeia de fornecimento perante o consumidor.

2/8/2022

O sistema de franquia empresarial é, de acordo com o art. 1º, da lei 13.966/19,  o modelo de negócio por meio do qual um franqueador autoriza, contratualmente, um franqueado a usar marcas e outros objetos de propriedade intelectual, sempre associados ao direito de produção ou distribuição exclusiva ou não exclusiva de produtos ou serviços, e também ao direito de uso de métodos e sistemas de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvido ou detido pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem caracterizar relação de consumo ou vínculo empregatício em relação ao franqueado ou a seus empregados, ainda que durante o período de treinamento.

Ao discorrer sobre o regulamento 4.087, de 30/11/88, Roberto Baldi1 cita que a Comissão da Comunidade Econômica Europeia (CEE) definiu o Franchising nos seguintes termos:

Art. 3º a) Per franchising si intende um insieme di diritti de proprietá industriale o intellettuale relativi a marchi, denominazioni comerciali, insegne, modelli di utilitá, disegni, diritti d’autore, know how o brevetti da utilizzare per rivendita di beni o per la prestazione do servizi ad utilizzatori finali. b) per accordo di franchising si entende um accordo com il quale um’impresa, l’affiliante, concede ad un‘altra, l’affiliato, il diritto di sfruttare um franchising allo scopo di commercializzare determinati tipi di beni e/o di serviz2.

Um levantamento realizado pela Associação Brasileira de Franquias (ABF), veiculado no portal CNN Brasil3, revelou que “o faturamento das franquias no Brasil passou de R$ 167,187 bilhões em 2020 para R$ 185,068 bilhões em 2021, um crescimento nominal de 10,7%”. Essa pesquisa ainda apontou que “em relação a 2020, o número de trabalhadores diretos no setor aumentou 12,1%, passando de 1.258.884 para 1.411.319 no ano passado, e 3,9% a mais frente a 2019”.

Depreende-se, portanto, que a relevância das Franquias não se adstringe ao crescimento dos próprios Franqueados e Franqueadores. Esse modelo de negócio injeta tributos nos cofres públicos, emprega milhares de pessoas, e, como consectário lógico, fomenta o consumo e o crescimento da economia.

O aspecto empresarial e econômico das Franquias já goza de ampla aderência, o que não se verifica com as discussões jurídicas concernentes ao tema, que carecem de debates mais profícuos, especialmente em razão da recente entrada em vigor da Lei de Franquias (lei 13.966/19), que revogou a lei 8.955/94, instituindo mudanças quanto à Circular de Oferta de Franquia, objetivando mais transparência nas atividades entre as partes envolvidas, mas, por outro lado, deixando pontos lacunosos a cargo da doutrina e jurisprudência.

Um desses pontos se refere à responsabilidade civil, precisamente no tocante à responsabilização do franqueador por fato ou vício de produto, ou em razão de danos decorrentes dos serviços prestados em razão da franquia. Haveria responsabilidade solidária entre franqueado e franqueador nessas hipóteses?

Para responder a essa pergunta, é premente estabelecer algumas premissas básicas.

A primeira delas se atina à própria noção de responsabilidade solidária, que nada mais é do que a possibilidade de o credor poder cobrar a integralidade da dívida de todos os devedores ou apenas daquele que acreditar que tenha mais probabilidade de adimplir. O instituto é previsto em diversas normas, a exemplo do Código Civil (arts. 264/266), do Código Tributário Nacional (art. 133) e do Código de Defesa do Consumidor (art. 28).

A segunda premissa se refere à independência e autonomia administrativa do empresário-franqueado em relação ao franqueador, que, de acordo com Marina Nascimbem Bechtejew Richter4, trata-se da principal característica do contrato de franquia.

A citada autora ainda ensina que o franqueador será responsável solidário sempre que ele for fornecedor do produto defeituoso, ou que apresente vícios de qualidade ou quantidade, consoante disposição do Código de Defesa do Consumidor5.

Além da responsabilização do franqueador por ser fornecedor do produto com vício ou defeito, nos termos do CDC, o Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento de que o franqueador também responde, de forma solidária com o franqueado, pelos danos decorrentes dos serviços prestados em razão da franquia. Vejamos:

Cabe às franqueadoras a organização da cadeia de franqueados do serviço, atraindo para si a responsabilidade solidária pelos danos decorrentes da inadequação dos serviços prestados em razão da franquia (REsp 1.426.578/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, DJe 22/9/2015).

(...) esta Corte possui julgado no sentido de ser solidária a responsabilidade da franqueadora pelos danos decorrentes em razão da franquia. Ademais, essa interpretação vem sendo acolhida por este Tribunal Superior em situações que se correspondem por compreender relações empresariais associativas entre aqueles apontados no polo passivo das respectivas demandas. Precedentes. 3. Agravo regimental desprovido. (AgRg no AREsp 398.786/PR, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 16/02/2016, DJe de 23/02/2016).

Extrai-se dos arts. 14 e 18 do CDC a responsabilização solidária de todos que participem da introdução do produto ou serviço no mercado, inclusive daqueles que organizem a cadeia de fornecimento, pelos eventuais defeitos ou vícios apresentados. Precedentes. 4. Cabe às franqueadoras a organização da cadeia de franqueados do serviço, atraindo para si a responsabilidade solidária pelos danos decorrentes da inadequação dos serviços prestados em razão da franquia. 5. Recurso especial não provido. (REsp 1.426.578/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/6/15, DJe de 22/9/15).

Corrente minoritária defende – com bastante eloquência – que o contrato típico de franquia não abarca a figura do franqueador na operação do franqueado. Dessa forma, em uma franquia de restaurantes, por exemplo, o franqueador (que não é onipresente no dia a dia do franqueado) não deveria responder na eventualidade de o franqueado acondicionar um alimento de forma inadequada, causando danos a um consumidor. Inexistiria nexo de causalidade.

A citada corrente defende, ainda, que eventual inadimplência do franqueado, como, por exemplo, no caso de um franqueado não entregar um produto comprado pelo consumidor, não poderia ensejar a responsabilização do franqueador, já que estaria ausente o nexo de causalidade, e, também, porque franqueado e franqueador não integram o grupo societário, não são consorciados e nem coligados (art. 28, do CDC6). Nesse sentido:

Bem móvel. Ação indenizatória de danos materiais e morais. Contrato de compra e venda de materiais de construção. Ilegitimidade passiva da fabricante dos produtos e da franqueadora. Ocorrência. Art. 18 do CDC. Inexistência de vício ou defeito do produto. Teoria da Aparência e Teoria do Risco do Negócio. Ausência de nexo de causalidade. Extinção do feito com relação a estas corrés. Art. 267, VI, do CPC. Sentença mantida. Preliminar rejeitada. Bem móvel. Ação indenizatória de danos materiais e morais. Contrato de compra e venda de materiais de construção. Alegação do comprador de que os produtos não foram integralmente entregues. Fato incontroverso. Alegação de que os produtos faltantes foram entregues posteriormente, diretamente ao responsável pela execução da obra. Comprovante de entrega das mercadorias faltantes. Inexistência. Indenização por perdas e danos devida. Dano moral. Agressões físicas e verbais mútuas. Ocorrência. Dano moral indevido. Sentença mantida. Preliminar rejeitada. Recursos improvidos. (TJ-SP - AC: 91789734320088260000 SP 9178973-43.2008.8.26.0000, Relator: Rocha de Souza, Data de Julgamento: 19/1/12, 32ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 19/1/12).

Os principais críticos desse entendimento, como dito, minoritário, sustentam que o franqueador deveria, nos termos do CDC, responder solidariamente, mormente em razão (i) de o franqueador integrar a cadeia de fornecimento perante o consumidor, e; (ii) de o consumidor, muitas vezes, ser atraído pela marca, que goza de confiança e prestígio consolidado.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 1.456.249 – SP, reconheceu a ilegitimidade passiva do franqueador com espeque na tese de que o serviço defeituoso era autônomo e alheio aos serviços prestados em razão da franquia. Vide:

RESPONSABILIDADE CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE FRANQUIA. METODOLOGIA DE ENSINO. ACIDENTE DE TRÂNSITO. CULPA DO MOTORISTA DO ÔNIBUS ESCOLAR. MORTE DE ALUNO. TRANSPORTE ESCOLAR CONTRATADO PELO COLÉGIO FRANQUEADO. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA FRANQUEADORA. SERVIÇO ALHEIO AOS DA FRANQUIA. AGRAVO PROVIDO. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO. 1. "Cabe às franqueadoras a organização da cadeia de franqueados do serviço, atraindo para si a responsabilidade solidária pelos danos decorrentes da inadequação dos serviços prestados em razão da franquia" (REsp 1.426.578/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, j. em 23/6/15, DJe de 22/9/15). 2. No caso em exame, inexiste responsabilidade solidária da franqueadora de serviços educacionais pelos danos materiais e morais decorrentes da morte de aluno em razão de acidente de trânsito, causado por culpa do motorista de ônibus escolar, pois o serviço de transporte escolar realizado por terceiro foi contratado exclusivamente pela franqueada, sendo serviço autônomo e alheio aos serviços prestados em razão da franquia de metodologia de ensino. 3. Agravo interno a que se dá provimento para, em novo exame, dar parcial provimento ao recurso especial, a fim de afastar a responsabilidade solidária da franqueadora. (STJ - AgInt no AREsp: 1456249 SP 2019/0047763-2, Data de Julgamento: 7/6/22, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 20/6/22).

Na mesma linha de intelecção, decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo:

Apelações. Prestação de serviço. Ação de indenização. Abordagem sob suspeita de furto. Ausência de nexo causal entre a responsabilidade pelos fatos narrados e o contrato de franquia existente entre as rés afasta a responsabilidade solidária. Ilegitimidade reconhecida. Preliminar acolhida (...)”. (TJ-SP - AC: 10076238120188260224 SP 1007623-81.2018.8.26.0224, Relator: Pedro Kodama, Data de Julgamento: 14/10/20, 37ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 14/10/20). 

No julgado em referência, o TJSP reconheceu a ilegitimidade do franqueador, vez que inexistiria nexo causal entre o contrato de franquia e a responsabilidade pelo fato alegado pela autora (consumidora do franqueado), qual seja a abordagem supostamente inapropriada da preposta do franqueado. O Tribunal afastou, portanto, a aplicação da responsabilidade solidária ao caso.

Ao conjugarmos a legislação, especialmente as normas insculpidas no Código de Defesa do Consumidor, com a jurisprudência pátria, chegamos a dois entendimentos consolidados, quais sejam: o franqueador responde de forma solidária (i) quando ele for fornecedor do produto eivado de vício ou defeito, e; (ii) pelos danos decorrentes dos serviços prestados em razão da franquia. Logo, para o franqueador não ser responsabilizado, é imperioso demonstrar que não é fornecedor do produto com vício ou defeito, e/ou; que a conduta do franqueado foi exercida de forma autônoma e alheia aos serviços prestados em razão da franquia, o que, nem sempre, é uma tarefa fácil, consoante visto nos julgados em debate.

----------

1 BALDI, Roberto. Il contrato di agenzia – La concessione di vendida – Il franchising. 5 ed. Milano: A. Giuffré Editore, 1992. p. 122-123

2 Tradução: Art. 3º a) por franchising entende-se um conjunto de direitos de propriedade industrial ou intelectual relativos a marcas, nomes comerciais, sinais, modelos de utilidade, desenhos, direitos de autor, know-how ou patentes a utilizar para a revenda de bens ou para a prestação de serviços a utilizadores finais. b) Contrato de franquia significa o contrato pelo qual uma empresa, o franqueador, concede a outra, o franqueado, o direito de explorar uma franquia para fins de comercialização de determinados tipos de bens e/ou serviços.

3 Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/business/mercado-de-franquias-supera-perdas-de-2020-e-cresce-107-em-2021-diz-associacao/. Acesso em 01/08/2022. 

4 Richter, Marina Nascimbem Bechtejew. A Relação de Franquia no Mundo Empresarial e as Tendências da Jurisprudência Brasileira. 3 ed. São Paulo, 2021. p. 136.

5 Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.

(...)

§ 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar:

I - que não colocou o produto no mercado;

II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste;

III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas. (...)

Art. 19. Os fornecedores respondem solidariamente pelos vícios de quantidade do produto sempre que, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, seu conteúdo líquido for inferior às indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou de mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: (...).

6 Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

§ 1° (Vetado).

§ 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.

§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

Sílvio Latache de Andrade Lima
Graduado pela Faculdade Marista. Pós-graduado em Direito Civil e Empresarial pela UFPE. Mestre em Indústrias Criativas. Professor na Faculdade Nova Roma/FGV e na Unifacol. Membro da Comissão de Arte e Cultura do Conselho Federal da OAB. Sócio do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

O Direito aduaneiro, a logística de comércio exterior e a importância dos Incoterms

16/11/2024

Encarceramento feminino no Brasil: A urgência de visibilizar necessidades

16/11/2024

Transtornos de comportamento e déficit de atenção em crianças

17/11/2024

Prisão preventiva, duração razoável do processo e alguns cenários

18/11/2024

A relativização do princípio da legalidade tributária na temática da sub-rogação no Funrural – ADIn 4395

19/11/2024