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O salvo-conduto para plantio de cannabis sativa para uso medicinal, seus requisitos e posições sobre os efeitos da decisão do STJ

O presente artigo trata da recente, paradigmática e (re) evolucionária, decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que concedeu salvo-conduto para garantir a três pessoas a possibilidade de cultivo de cannabis sativa, especialmente com relação aos requisitos para a concessão e os efeitos da decisão.

1/8/2022

Em decisão recente, paradigmática e (re) evolucionária, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio da análise de um recurso em habeas corpus, concedeu salvo-conduto para garantir a três pessoas a possibilidade de cultivo de cannabis sativa para uso medicinal, sem o risco de sofrerem qualquer repressão Estatal (polícias, Ministério Público ou Judiciário).

Muito embora, no Brasil, ainda estejamos longe da legalização e da abertura do mercado canábico, e a decisão não tenha ido ao encontro dos fundamentos científicos mais modernos sobre a temática do consumo da cannabis, pode-se afirmar que se trata de uma decisão (re) evolucionária com relação ao estigma, ao preconceito, com a planta, já que, dentre outros, foram apresentados os seguintes fundamentos para a concessão do salvo-conduto:

  1.  As normas incriminadoras relacionadas a determinadas substâncias visam tutelar a saúde pública da coletividade, “[...] risco esse que não se verifica nos casos em que a medicina prescreve as mesmas plantas psicotrópicas para fins de tratamento”. 
  2. Enquanto que no delito de tráfigo está ínsito a busca pelo lucro, “[...] o cultivo da planta para fins medicinais encontra-se fora da tipicidade, pois realiza finalidade constitucional e legal, a saber, o direito à saúde”.

Os fudamentos acima, considerando o contexto social brasileiro ainda “fechado”, podem abrir caminhos entre os arbustos espinhosos do preconceito, para que os mercadores da luz, da mundança de vida, do bem-estar e, até mesmo, da cura, para muitas pessoas, possam, finalmente, de forma lícita, ingressarem no mercado brasileiro, e as pessoas que necessitam possam se tratar sem a necessidade de terem que buscar amparo no Poder Judiciário para tanto.

Isso porque, ao consideradem que o plantio e o uso de plantas psicotrópicas para fins medicinais não colocam em risco a saúde pública coletiva, bem como que essas condutas estão relacionadas ao direito à saúde, tiraram a cannabis da vala comum de substâncias realmente nocivas - que devem sim ser consideradas como drogas ilícitas e terem um controle rígido pelo Estado - como o crack, a cocaína e a heroína.

Não é demais destacar - especialmente para os ainda céticos - que há estudos no Brasil1 e no exterior que evidenciam resultados positivos do uso da cannabis para tratamento de doenças, especialmente aquelas relacionadas a transtornos mentais, tais como: alteração de humor; anorexia; demência; esquizofrenia e psicose; transtorno bipolar; transtorno depressivo; transtorno de ansiedade; transtorno de estresse pós-traumático; transtorno obsessivo compulsivo; tricotilomania; entre outros.

Pois bem, superados os pontos relativos ao aspecto (re) evolucionário da decisão, passa-se à análise dos, digamos, requisitos para se obter o salvo-conduto para cultivo de cannabis com fins medicinais. 

O primeiro, mais claro, objetivo e óbvio, é fim medicinal. O STJ, no acórdão proferido no Recurso em Habeas Corpus 147169 – SP (21/0141522-6), foi claro, expresso e taxativo no sentido de que a atipicidade da conduta de cultivar diz respeito ao uso medicinal da cannabis. Inclusive, estabeleceu distinção entre o uso medicinal e o recreativo, deixando claro que, em caso de cultivo tendo por fim este último, permanece possível o estabelecimento de relação de tipicidade com a norma penal incriminadora (ou seja, tráfico de drogas nos termos da lei 1.343/06). Ou seja, plantio para uso recreativo, ainda que próprio, permanece sujeito à análise subjetiva da autoridade policial, do Ministério Público e do Judiciário.

Em vista disso, para se obter o salvo-conduto, em primeiro lugar, a pessoa deve ter um diagnóstico de doença e recomendação médica de tratamento com cannabis. Imprescindível, portanto, laudo/relatório médico que comprove a doença, bem como que indique o tratamento com cannabis.

Os outros “requisitos”, considerando o fim medicinal (que demanda, por óbvio, recomendação médica), pode-se dizer que são de caráter subjetivo, já que, em tese, são complementares. São eles: autorização da Anvisa para importação de medicamento a base de cannabis; conhecimento técnico comprovado acerca da extração de princípio ativo da cannabis; e/ou hipossuficiência econômica para aquisição de medicamentos à base de cannabis. Ou seja, em tese, o fato de não cumprir algum deles, não significa que o pedido não será concedido em caso de comprovada recomendação/necessidade médica.

Entretanto, essa é a nossa percepção. Logo, para todos os efeitos, caso a pessoa pretenda ingressar com o pedido, sugere-se que cumpra todos os requisitos constantes da decisão proferida pelo STJ, visando minimizar os riscos de indeferimento. 

Cumpridos os requisitos presentes da decisão do STJ, especialmente a comprovação da recomendação médica para tratamento de doença, em tese (pois, infelizmente, ainda há juízes que se negam a se seguir os entendimentos firmados por instâncias superiores), não haverá razão para a não concessão do salvo-conduto.

Diante desse cenário, é inevitável que surja o seguinte questionamento: uma pessoa que está em situação análoga daquelas que obtiveram o salvo-conduto, mas sem essa “capa de proteção”, estaria sujeita ou não à responsabilização criminal nos termos da lei 11.343/06, ou a decisão tem efeito para todos que comprovarem estar em situação análoga?

A essa pergunta, duas respostas - conflitantes entre si - são possíveis. Uma tem por base os termos da decisão, e a outra tem por base princípios constitucionais básicos e fundamentais.

A que tem por base a decisão do STJ é simples e objetiva: a decisão tem efeito inter partes. Isso porque, no acórdão proferido, há o seguinte destaque:

Destaco, por fim, que falta a esta Sexta Turma competência para reconhecer o direito ao plantio de plantas psicotrópicas; não é disso que se trata.

Saliento que a presente decisão apenas afasta a persecução penal sobre o presente caso.

Pelo que se extrai do referido trecho, o efeito da decisão é pessoal. Somente aqueles que obtiveram ou vierem a obter o salvo-conduto em procedimento judicial estão protegidos de eventual repressão Estatal. Logo, a pessoa que está em situação idêntica daquelas que obtiveram o salvo-conduto, mas sem essa “capa de proteção”, pode sim estar sujeita à responsabilização criminal nos termos da lei 11.343/06, ainda que faça o cultivo com fim exclusivamente medicinal.

Já a que tem por base princípios constitucionais básicos e fundamentais, é abrangente. O efeito seria erga omnes, ou seja, a decisão judicial valeria para todos aqueles que estivessem em situação idêntica, sendo desnecessária a obtenção de salvo-conduto, tendo por base os princípios da igualdade e da isonomia. Bastaria, então, que a pessoa flagrada cultivando comprovasse o cultivo medicinal (especialmente por meio da apresentação de laudo/relatório médico) para não ficar sujeita à persecução penal por violação da lei 11.343/06. Explico:

O artigo 5º da Constituição Federal estabelece, em seu caput, como primeiro direito fundamental, o direito à igualdade, ao estabelecer que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]”. Este princípio se desdobra no princípio da isonomia - no sentido de tratar de forma igual os iguais, e de forma desigual os desiguais, na medida das suas desigualdades -, de modo a trazer um equilíbrio social, já que o princípio da igualdade não deve ser considerado de forma estanque, rígida, tratando a todos de forma abstratamente iguais, pois o tratamento igual

[...] não se dirige a pessoas integralmente iguais entre si, mas àquelas que são iguais sob aspectos tomados em consideração pela norma, o que implica que os “iguais” podem diferir totalmente sob outros aspectos ignorados ou considerados como irrelevantes pelo legislador2.

Pode-se dizer, então, que pessoas em situações iguais e em igualdade de condições, não podem ser tratadas desigualmente, e pessoas em situações desiguais, em desigualdade de condições, não podem ser tratadas igualmente, sob pena se configurar evidente afronta aos princípios da igualdade e da isonomia.

Em vista disso, pode-se dizer que uma pessoa em situação fática idêntica daqueles que obtiveram o salvo-conduto, ainda que não resguardada por esta proteção, não poderia ser responsabilizada criminalmente pelo cultivo de cannabis para fins medicinais, já que, se assim ocorresse, estar-se-ia diante de uma situação de flagrante violação constitucional em razão do tratamento desigual a situações iguais.

Por óbvio, essa segunda posição é, ainda, apenas uma conjectura com base no ordenamento jurídico brasileiro, já que, como afirmado acima, a decisão proferida pelo STJ é clara no sentido de que o efeito dela é inter partes. Entretanto, crê-se que, num futuro breve, o STJ terá que se debruçar sobre casos em que uma pessoa, em situação idêntica daqueles que obtiveram o salvo-conduto, está respondendo criminalmente, nos termos da lei 11.343/06, pelo cultivo de cannabis, com fim medicinal, pelo simples fato de não estar amparada pela proteção do referido “remédio”.

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1 O uso de Cannabis Medicinal para transtornos mentais: evidências de eficácia e segurança. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/41228/2/Informe%20Cannabis%20-%20transtorno%20mental.pdf. Acesso em: 28 de julho de 2022.

2 DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros: 2014, p. 218.

João Felipe Oliveira Brito
Sócio no OBMA Advogados | Professor Universitário | Especialista em Direito Civil e Processo Civil e Mestre em Direito pela FMU.

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