Após a publicação da lei 14.320/21 em 25 de outubro de 2021, surgiram diversos artigos e notícias com críticas, questionamentos e elogios às alterações realizadas na lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/92). O principal motivo de críticas no mundo jurídico se deu pela alteração da legislação no sentido de se exigir o dolo específico do agente para que seja configurada a improbidade administrativa. Entretanto, não se pode analisar as alterações de forma tão radical, pois a exigência de dolo específico não é uma criação para criar a impunidade, conforme veremos a seguir.
Pode-se dizer que o “conceito geral” de improbidade administrativa diz respeito a uma conduta que viola o dever de probidade. Ou seja, comete improbidade administrativa o agente que pratica condutas opostas ao dever de conduta proba, causando lesão ao erário.
No âmbito da legislação anterior a configuração da improbidade administrativa não dependia da existência de dolo específico do agente que a praticou ou se beneficiou de forma direta ou indireta. Com as alterações trazidas pela lei 14.320/21, passou a ser exigida a existência do dolo específico do agente para a configuração de ato de improbidade administrativa.
Da leitura preliminar das alterações implementadas, por vivermos em um país com diversos casos de corrupção de agentes públicos e políticos, a primeira sensação que vem é que uma alteração legislativa no sentido de restringir a responsabilização por improbidade administrativa seria uma forma de criar mais impunidade.
Porém, deve-se analisar as questões de forma técnica para não haver erros de interpretação e julgamento. Segundo Rodrigo Suzuki Cintra e Ana Clara Spaziante1, a lei de Improbidade Administrativa tem o objetivo, com o dolo específico, de punir os agentes comprovadamente ímprobos, e garantir que o exercício da administração pública não fique paralisado sob o risco de que a Lei de Improbidade Administrativa seja rigorosa ao ponto de tornar os agentes públicos inertes ou inoperantes, ou no mínimo, “pouco inovadores” no trato das políticas públicas, por medo das consequências legais de atos da administração pública.
Nesse sentido, é possível interpretar a alteração legislativa no sentido - prático e não moral -, de que não há intenção de gerar impunidade, mas sim, de punir os agentes comprovadamente ímprobos, com a real intenção de lesar o erário, e ao mesmo tempo, proteger o agente de boa conduta que não tem o objetivo de lesar o erário e acabava por temer sofrer uma ação de improbidade administrativa.
A interpretação da forma mencionada pode ser ratificada pela análise de um caso prático simples e que já foi decidido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), senão vejamos:
Seria justa a responsabilização por improbidade administrativa dos agentes públicos do Poder Executivo de um Município que tenha realizado a contratação de servidores públicos temporários durante a pandemia, para atender aos interesses sociais urgentes, enquanto não era possível a realização de concurso público?
No entendimento firmado pelo STJ no Informativo 736 de 16 de maio de 2022, Tema 1108 não, vejamos:
A contratação de servidores públicos temporários sem concurso público, mas baseada em legislação local, não configura a improbidade administrativa prevista no art. 11 da lei 8.429/92, por estar ausente o elemento subjetivo (dolo), necessário para a configuração do ato de improbidade violador dos princípios da administração pública.2
No informativo supratranscrito, o STJ aplicou a nova disposição da lei de Improbidade, utilizando o dolo específico como critério para configuração da improbidade administrativa no exemplo supracitado, com a seguinte justificativa:
O afastamento do elemento subjetivo de tal conduta dá-se em razão da dificuldade de identificar o dolo genérico, situação que foi alterada com a edição da lei 14.230/21, que conferiu tratamento mais rigoroso, ao estabelecer não mais o dolo genérico, mas o dolo específico como requisito para a caracterização do ato de improbidade administrativa, ex vi do seu art. 1º, §§ 2º e 3º, em que é necessário aferir a especial intenção desonesta do agente de violar o bem jurídico tutelado.
Analisando o entendimento firmado pelo STJ, bem como a justificativa apresentada, é possível aplicar tais conceitos para ratificar a interpretação da legislação como justa se for aplicada da forma correta.
Dessa forma, sendo certo que o objetivo principal da alteração legislativa consiste justamente na punição dos agentes públicos que praticam as condutas descritas como de improbidade administrativa, com elemento subjetivo de dolo específico, não é possível cair no senso comum e sensacionalismo que pairou na mídia por conta das alterações da lei de Improbidade.
A análise do cenário da pandemia em relação a tais circunstâncias demonstra isso, tendo em vista que nos casos práticos em que algum agente público tenha se valido da situação pandêmica para obter vantagens indevidas e ilícitas, será fácil a caracterização do dolo específico do agente, portanto o mesmo será devidamente enquadrado e processado nos termos da lei 8.429/92; por outro lado, nos casos em que o agente agiu de boa-fé, pensando no bem comum e no interesse público, e por um acaso ocasionou a violação de um ou dois princípios da administração pública, seria mais justo não ser responsabilizado na forma da lei de Improbidade Administrativa, por justamente não ter tido a intenção de causar dano ao erário, e sim de atender ao interesse público naquela circunstância.
Durante a pandemia foram diversas as situações em que os agentes públicos bem intencionados podem ter tomado condutas que, se analisadas de forma literal à luz dos princípios da administração, poderiam ensejar um processo de improbidade administrativa, entretanto, cada caso deve ser analisado de forma a compreender se há ou não o elemento subjetivo de dolo específico previsto expressamente na lei, e a aplicação de cada caso deve ser ponderada e proporcional, de modo a identificar se o dolo seria de fácil constatação ou não.
A ilustração da situação pandêmica serve apenas para exemplificar, de forma clara, que a exigência do dolo específico para configuração do ato de improbidade administrativa não configura impunidade, mas sim, uma tentativa de punir apenas os agentes que realmente praticaram condutas ímprobas com intenção de se beneficiar e lesar o erário; sendo certo que nas situações cotidianas tal interpretação também prevalece.
Isso não significa que a aplicação da nova legislação deva ser sinônimo de impunidade, mas sim que cada caso deve ser analisado de acordo com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, para que não sejam cometidas injustiças para nenhum agente público, seja em caso de ação com dolo específico, que deve ser enquadrada, ou para ações culposas, que atualmente não são enquadradas.
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1 CINTRA, Rodrigo Suzuki; SPAZIANTE, Ana Clara. O dolo específico na nova lei de Improbidade Administrativa. Publicado em Portal Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/360052/odolo-especifico-na-nova-lei-de-improbidade-administrativa. Acesso mai. 2022.
2 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Informativo de Jurisprudência nº 736 de 16 de maio de 2022, Tema 1108. Disponível em STJ - Informativo de Jurisprudência. Acesso mai. 2022.