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Acusação de lavagem de dinheiro no Brasil, a dinâmica prática dos crimes financeiros

Como funciona a acusação de lavagem de dinheiro no Brasil, a perspectiva do legislador e a técnica penal.

1/8/2022

O termo lavagem de dinheiro foi empregado inicialmente pelas autoridades norte-americanas para descrever um dos métodos usados pela máfia nos anos 30 do século XX para justificar a origem de recursos ilícitos: a exploração de máquinas de lavar roupas automáticas.1 A expressão foi usada pela primeira vez em um processo judicial nos EUA em 1982,3 e a partir de então ingressou na literatura jurídica e em textos normativos nacionais e internacionais.

A terminologia original em alguns países ainda mantém o termo lavagem de dinheiro para se referir aos delitos em estudo. É o caso dos EUA e da Inglaterra (money laundering),da Alemanha (Geldwäsche) e da Argentina (lavado de dinero). Outros usam a expressão reciclagem, como a Itália (riciclaggio). Por fim,há os que preferem branqueamento, como a Espanha (blanqueo), Portugal (branqueamento) e França(blanchiment). O legislador brasileiro optou pelo termo lavagem de dinheiro,2 rechaçando expressamente a expressão branqueamento pela possível conotação racista do termo (Exposição de Motivos do texto da primeira lei sobre lavagem de dinheiro, EM 692/MJ/96, item 13).

O termo lavagem de dinheiro foi empregado inicialmente pelas autoridades norte-americanas para descrever um dos métodos usados pela máfia nos anos 30 do século XX para justificar a origem de recursos ilícitos: a exploração de máquinas de lavar roupas automáticas. A expressão foi usada pela primeira vez em um processo judicial nos EUA em 1982, e a partir de então ingressou na literatura jurídica e em textos normativos nacionais e internacionais.3

A lavagem de dinheiro passou a ser objeto de maior atenção da comunidade internacional ao final dos anos 80 do século XX, quando se percebeu a força e a capacidade de articulação de alguns setores do crime organizado, em especial da. quele voltado para o tráfico de drogas. O desenvolvimento dos grupos criminosos nesse setor impôs uma mudança de perspectiva político-criminal. A organização empresarial da empreitada delitiva transformou as antigas quadrilhas e bandos em ordens estruturadas, hierarquizadas e globalizadas, imunes aos atos repressivos tradicionais. A impessoalidade das entidades criminosas tornou irrelevante a prisão de seus integrantes, seja pela continuidade da cadeia de comando a partir das unidades prisionais, seja pela fungibilidade de seus membros, que podem ser substituídos por outros com facilidade em determinados contextos.

As organizações criminosas passaram a ser enfrentadas com a desarticulação de tais grupos exigia algo mais do que a prisão de seus membros - como já mencionado, facilmente substituíveis-, ou o uso exclusivo dos mecanismos tradicionais de repressão. Notou-se que o dinheiro é a alma da organização criminosa e seu combate passa pelo confisco dos valores que mantém operante sua estrutura. E que o rastreamento dos bens que se originam nos atos infracionais e sustentam as empreitadas delitivas (follow the Money) é o prímeiro passo para uma política criminal consistente nesse setor.

Como boa parte desse capital é disfarçada de “licitude”, ocultada por atividades aparentemente lícitas, o combate à lavagem de dinheiro passou a ser o foco da política criminal de combate ao crime organizado. Do ponto de vista legislativo, surgiram leis tipificando o ato de ocultação e dissimulação de bens oriundos de ilícitos anteriores, as leis de lavagem de dinheiro. Sob um aspecto de política criminal, ao lado do aparato policial de repressão, surgiram unidades de inteligência financeira voltadas ao armazenamento e tratamento de informações capazes de identificar o dinheiro sujo, oriundo de atividades criminosas, e responsável pela manutenção das estruturas de poder ilegal. Mais do que armas, viaturas e coletes, o Estado passou a usar dados, relatórios e dossiês para perseguir o produto do crime e desmantelar associações delitivas.

O Brasil, signatário de importantes convenções de combate à lavagem de dinheiro, aprovou em 1998 seu primeiro diploma legal de criminalização específica da atividade embora os crimes de receptação e favorecimento real já indicassem o desvalor de comportamentos semelhantes. A primeira redação da Lei de Lavagem de Dinheiro (9.613/98) tipificou a conduta de mascaramento em diversas modalidades, apresentou preceitos peculiares na seara processual, estabeleceu regras e obrigações administrativas para aqueles que exercem atividades em setores sensíveis aos esquemas de lavagem de dinheiro, e criou a unidade de inteligência financeira nacional, o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras).

Em 2012 o texto legal foi alterado pela lei 12.683/12, que trouxe inovações importantes, como a ampliação do âmbito de abrangência típico e a inclusão de novas obrigações administrativas aplicadas a um novo e mais amplo rol de entidades e pessoas. Mas, antes da análise dos aspectos mais relevantes da lei de lavagem de dinheiro brasileira, passemos a uma breve análise da estrutura da conduta típica, suas características e etapas, importante para a compreensão do objeto de estudo e dos institutos da dogmática penal a ele aplicáveis.

O processo de lavagem de dinheiro tem como antecedente necessário a prática de uma infração penal-momento de origem do recurso ilícito - e se inicia com a ocultação dos valores auferidos. Desenvolve-se nas diversas operações posteriores para dissimulação da origem dos bens, e se completa pela reinserção do capital na economia formal com aparência lícita.

Assim, o processo completo de lavagem de dinheiro é composto por ao menos - três fases: ocultação, dissimulação e integração dos bens à economia formal. Nem sempre os contornos de cada uma dessas fases podem ser reconhecidos de forma precisa.4 Na prática, é comum a sobreposição entre as etapas do delito, sendo difícil identificar o término de uma e o início de outra. Ainda assim, é importante perceber a lavagem como um processo dinâmico que tem por objetivo final a integração do capital à economia lícita. Não se trata de um simples ato de ocultação, de um mero esconder bens de origem delitiva, mas de uma atividade voltada à simulação, à confecção de uma roupagem legítima a recursos escusos ainda que tal objetivo não seja necessariamente alcançado.

A primeira fase da lavagem de dinheiro é a ocultação (placement/colocação/conversão). Trata-se do movimento inicial para distanciar o valor de sua origem criminosa, coma alteração qualitativa dos bens, seu afastamento do local da prática da infração antecedente, ou outras condutas similares.9Éa fase de maior proximidade entre o produto da lavagem e a infração penal que o origina.5

São exemplos da ocultação o depósito ou movimentação dos valores obtidos pela prática criminosa em fragmentos, em pequenas quantias que não chamem a atenção das autoridades públicas (structuring ou smurfing),6  a conversão dos bens ilícitos em moeda estrangeira, seu depósito em contas de terceiros (laranjas), a transferência do capital sujo para fora do país, para contas, empresas ou estruturas nas quais o titular dos bens não seja identificado,7 para posterior reciclagem.

A etapa seguinte é o mascaramento ou dissimulação do capital (layering), caracterizada pelo uso de transações comerciais ou financeiras posteriores à ocultação que, pelo número ou qualidade, contribuem para afastar os valores de sua origem ilícita.8 Em geral são efetuadas diversas operações em instituições financeiras ou não (bancárias, mobiliárias etc.), situadas em países distintos muitos dos quais caracterizados como paraísos fiscais que dificultam o rastreamento dos bens. São exemplos da dissimulação o envio do dinheiro já convertido em moeda estrangeira para o exterior via cabo para contas de terceiros ou de empresas das quais o agente não seja beneficiário ostensivo,9 o repasse dos valores convertidos em cheque de viagem ao portador com troca em outro país, as transferências eletrônicas não oficiais, dentre tantas outras.

Por fim, a integração se caracteriza pelo ato final da lavagem: a introdução dos valores na economia formal com aparência de licitude.10 Os ativos de origem criminosa-já misturados a valores obtidos em atividades legítimas e lavados nas complexas operações de dissimulação são reciclados em simulações de negócios lícitos, como transações de importação/exportação simuladas, com preços excedentes ou subfaturados, compra e venda de imóveis com valores diferentes daqueles de mercado, ou em empréstimos de regresso (loanback),11 o pagamento de protesto de dívida simulada via cartório, dentre outras práticas.

A legislação brasileira não exige a completude do ciclo exposto para a tipicidade da lavagem de dinheiro. Não é necessária a integração do capital sujo à economia lícita para a tipicidade penal. Basta a consumação da primeira etapa a ocultação para a materialidade delitiva, incidindo sobre ela a mesma pena aplicável à dissimulação ou integração.

Por outro lado, ainda que o delito esteja consumado desde a fase inicial de ocultação, há um elemento subjetivo que permeia todas as etapas do crime em tela: a vontade de lavar o capital, de reinseri-lo na economia formal com aparência de licitude. Ainda que no plano objetivo seja suficiente a mera ocultação dos bens para a caracterização da lavagem de dinheiro, na esfera subjetiva sempre será necessária a intenção de reciclar os bens, o desejo de completar o ciclo de reciclagem, como exposto mais adiante em detalhes.

De início, importante destacar que se trata de importação do direito concorrencial. Naquela esfera, o acordo de leniência tem por objetivo central a repressão à prática de cartel, infração essa exclusivamente plurissubjetiva, isto é, só existirá quando cometida por mais de um agente. Nessa lógica, a ideia é que o acordo de leniência seja instrumento de desestabilização da organização criminosa, uma vez que a qualquer momento um de seus membros pode denunciar os parceiros e gozar dos benefícios de ter sido o primeiro a quebrar o pacto clandestino.

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1 Isidoro Blanco Cordero, El delito de blanqueo de capitales, 2. ed. p. 86. Para um apanhado sobre a evolução das práticas de lavagem de dinheiro e seu controle, ver Marco Antonio de Barros, Lavagem de capitais, p.41 e ss.

2 Pierpaolo Cruz Bottini Gustavo Henrique Badaró. Lavagem De Dinheiro - Aspectos Penais E Processuais Penais, Revista dos Tribunais,3.ed, p.30.

3 Isidoro Blanco Cordero, El delito de blanqueo de capitales, 2. ed. p. 86. Para um apanhado sobre a evolução das práticas de lavagem de dinheiro e seu controle, ver Marco Antonio de Barros, Lavagem de capitais, p.41 e ss.

4 Isidoro Blanco Cordero, El delito de blanqueo de capitales, 3. ed. Cap. I, 3, Eduardo A Fabián Caparrós, El delito de blanqueo de capitales, p. 50, André Luís Callegari,Lavagem de dinheiro,p.45.

5 CEJ, Uma análise crítica, p. 33.

6 Isidoro Blanco Cordero, El delitode blanqueo de capitales, 3. ed. Cap.I,3.1.1,Edilson Mougenot Bonfim e Marcia M. Mougenot Bonfim, Lavagem de dinheiro, p. 37,Antonio Sérgio A. M. Pitombo, Lavagem de dinheiro, p. 36.

7 Rodolfo Tigre Maia, Lavagem de dinheiro, 37, Barros, Lavagem de capitais, 47.

8 Ver: Maia,Lavagem de dinheiro p. 39; Barros, Lavagem de capitais e obrigacões civis cor-relatas, p. 47; Edilson Mougenot Bonfim e Marcia M. Mougenot Bonfim, Lavagem de dinheiro, p. 36, André Luís Callegari, Lavagem de dinheiro, p. 52, Antonio Sérgio A. M. Pitombo, Lavagem de dinheiro,p.37.

9 Edilson Mougenot Bonfim e Marcia M. Mougenot Bonfim, Lavagem de dinheiro, p. 38.

10 CEJ, Uma análise crítica, p. 33,Marco Antonio de Barros, Lavagem de capitais e obrigações civis correlatas, p. 48, André Luís Callegari, Lavagem de dinheiro, p. 55.

11 Isidoro Blanco Cordero, El delito de blanqueo de capitales, 3. ed. Cap. I, 3.3.

Andre Luiz B Canuto
Advogado e Professor, Mestre em Direito Penal - especializado em crimes financeiros de competência da justiça federal, direito penal médico, e Planejamento Sucessório.

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