Migalhas de Peso

Ataques covardes ao sistema arbitral brasileiro e suas consequências

O projeto em pauta teve o regime de urgência suspenso, o que é um mal menor, já que o bem maior será a sua total rejeição, devendo ser encetado um diálogo com os setores representativos desse sistema arbitral para o fim de que os problemas nele apurados sejam tratados de forma adequada.

1/8/2022

Como sistema arbitral deve ser entendido o conjunto de normas, princípios, entidades e pessoas que têm atuado em processos arbitrais em curso no Brasil.

Como se sabe, esse instituto foi estabelecido no direito brasileiro por meio da Lei 9.307, de 23.09.1996. Sua constitucionalidade foi contestada, mas confirmada por decisão do STF de no julgamento de processo de homologação de sentença estrangeira SE 5.206 de 12/12/01. Desde então o uso de arbitragens como forma da solução de litígios referentes a direitos patrimoniais disponíveis tem crescido ao longo de todos esses anos. Contudo, não raro, ataques ao sistema arbitral têm surgido, com o resultado de sentimentos de insegurança e de incerteza no âmbito dos usuários da arbitragem. Um deles altamente preocupante e de natureza covarde veio do Legislativo; outros emanados do Judiciário, no qual tem sido originadas sentenças que contrariam a Lei de Arbitragem com fundamentos variados, todos eles distorcidos; e outros, por fim, estranhamente nascidos dentro do mesmo sistema arbitral, na qualidade (ou falta dela) de um incompreensível processo de autocanibalismo1. Passamos e examiná-los em seguida.

1. O Ataque covarde do Legislativo

Esse ataque foi promovido pelo PL 3293/21, de autoria da deputada federal Margarete Coelho (PP-PI), o qual modifica a Lei de Arbitragem, dando-se aqui notícias dos seus pontos altamente controversos, tomado o texto original.

O adjetivo de covarde serve como uma luva para um projeto que surgiu aparentemente do nada, sem provocação válida dos participantes do sistema arbitral, em relação ao qual se requereu regime de urgência, como se o instituto da arbitragem estivesse a causar uma celeuma no direito brasileiro, com prejuízos sérios para a ordem jurídica e, portanto, dando lugar à necessidade de pronta correção dos desmandos que teria e estaria provocando. Não houve a menor possibilidade de um diálogo com a comunidade arbitral. Vejamos os aspectos mais relevantes de sua justificação.

2. A questão da diligência do árbitro, da celeridade do processo e do acúmulo de arbitragens por um mesmo árbitro

Tais fatores se encontrariam em uma relação de causa e efeito, ou seja, o dever de diligência do árbitro (que ele assume expressamente quando aceita um processo em curso perante uma câmara de arbitragem) estaria prejudicado por haver os árbitros assumido dezenas de casos simultâneos (palavras da justificativa). O resultado direto estaria no aumento do tempo da tramitação de arbitragens e, indiretamente, em brecha aberta para maior quantidade de ações anulatórias de processos arbitrais.

A justificativa em questão corresponde a uma realidade na primeira parte do parágrafo acima. Árbitros sobrecarregados de casos efetivamente têm demorado em dar andamento aos processos em diversos dos seus momentos, sendo marcante, por exemplo, a dificuldade da conciliação de agendas para a realização de audiências e de reuniões internas. Assim agindo faltam com o compromisso do devido zelo para com os casos sob a sua responsabilidade.

Mas a solução que já tem sido proposta em câmaras de arbitragem não é a mudança da lei, mas providências que podem ser tomadas pelas câmaras de arbitragem, entre as quais: (i) incentivo a atos processuais com menor intervalo de tempo a ser estabelecido na Ata de Missão;  (ii) a imposição de multas sobre os honorários a receber quando de demoras não justificadas, a partir de provocação ex-officio pela câmara onde corre o processo, seja por reclamação de uma ou das duas partes; e (iii) a exclusão do árbitro do rol da câmara, se houver. Diante da possibilidade de arcarem com os valores de tais multas e o vexame de um afastamento da lista de árbitros, os árbitros relapsos tenderão a examinar com mais cuidado a quantidade de casos que podem assumir.

Mas a justificativa erra completamente quando faz uma ligação entre acúmulo de arbitragens por árbitros e o ajuizamento de ações de anulação de processos arbitrais, previstas as hipóteses legais no art. 32 da Lei de Arbitragem. Não ocorre aqui qualquer ligação de causa e efeito exceto, indiretamente, quando a sentença é proferida fora do prazo estabelecido, na forma do inciso VII desse dispositivo, se isso se deu por demora injustificada do Tribunal Arbitral, que tem a opção de, sendo necessário, pedir aumento desse prazo para as partes.

3. O dever de revelação e a quantidade de processos por árbitro

A justificativa se refere à otimização do dever de revelação pelos árbitros as partes, nele incluído por repetição o ponto relativo à disponibilidade de tempo que aqueles devem exercer quanto aos processos arbitrais. Mas vamos lá.

Parece que uma das grandes preocupações do projeto está na quantidade de processo que cada árbitro assume, queixando-se de que poucas câmaras de arbitragem exigem que ele indique quantos processos dessa natureza estão a seu cargo, problema que seria resolvido pelo estabelecimento de parâmetros estabelecidos na inciativa sob exame, passando a limitar o número de processos em que pode atuar, nessa proibição incluída a repetição de indicações por uma mesma parte. Estaria implícita nessa medida a noção de captura do árbitro quando da sua atuação em processos com identidade de parte, que poderia levar a um comprometimento da sua independência. Ora, se assim é verdade, o que fazer com a mesma situação no Judiciário?

Observe-se que já existe no mercado arbitral solução para o problema de acúmulo de processos sob a responsabilidade de um mesmo árbitro, tal como acontece na câmara de arbitragem da CCI, a qual exige que as pessoas indicadas para tal fim divulguem a quantidade de processos dos quais participa como tal. Dessa forma a parte interessada em indicá-lo, ao tomar conhecimento de tal situação pode desistir dessa escolha ou assumir conscientemente o risco de mantê-la, desde que a outra parte não discorde. O caminho fica aberto para qualquer câmara de arbitragem no sentido de solução da mesma natureza, sem que seja necessário violentar a lei.

Essa intenção mostra-se expressa em outro trecho da justificação, onde se lê que a intenção do projeto está em impedir a repetição dos mesmos árbitros em painéis arbitrais que estejam funcionando concomitantemente, porta aberta para o favorecimento.

Já se adianta aqui a presença de claríssima inconstitucionalidade do projeto, que afronta a liberdade de iniciativa. E é um erro achar que o acúmulo de processos em tal situação seja causa direta do favorecimento pelo árbitro de uma das duas partes no processo.

Outro erro gritante do projeto está em pretender estabelecer uma disciplina para o fim de se evitar as alegadas situações de conflitos de interesse em relação aos órgãos diretivos das câmaras de arbitragem, que seriam sempre compostos por profissionais que atuam ao mesmo tempo como árbitros em processos das mesmas câmaras, e até mesmo advogam perante elas.

Mais uma situação de inconstitucionalidade contra a liberdade de iniciativa, ao querer o projeto impedir que alguém exerça, por exemplo, a presidência de uma câmara de arbitragem e seja indicado como árbitro em processo que nela terá curso. Em tais circunstâncias, tanto quanto acontece na administração de sociedades, surgindo alguma questão, aquele presidente se declararia impedido de tomar alguma medida disciplinar ou administrativa em relação a processo em questão, tocando-se a vida normalmente naquela entidade.           

4. A publicidade na arbitragem

Volta o projeto com sua implicância contra a repetição de painéis arbitrais, fazendo uma confusão desse tema com a anulação do processo arbitral, assunto que já foi considerado acima. O que têm a ver o disposto no art. 32 da Lei de Arbitragem com o acúmulo de processos por um mesmo árbitro e a sua publicidade, o que estaria referido segundo a justificativa ao intuito de se questionar o mérito de uma sentença arbitral. Na canhestra visão presente na justificativa, a publicidade funcionaria como um fator de desincentivo ao questionamento abusivo do mérito da sentença arbitral, pois jogaria luz sobre questões relacionadas ao mérito do caso, a valores envolvidos e outros assuntos cuja divulgação poderia não ser interessante a uma das partes.

Confusão total! Nada a ver uma coisa com a outra! É como se uma tempestade acontecida no Brasil fosse apontada como a causa de uma inundação no Sri Lanka, que não teria sido devidamente noticiada.

5. A jurisprudência arbitral e o sigilo

Tudo gira, mais uma vez, na minha visão, na interferência indevida do Judiciário no sistema arbitral, tendo em conta que o projeto procurar impor publicidade às decisões arbitrais, à qual atribui a condição de benesses, misturando os processos nos quais uma das partes é um ente público e outros em que isso não acontece. Ora viva! Pretende-se criar uma jurisprudência arbitral para o fim de se aumentar a segurança jurídica e a coesão das decisões, diminuindo-se o risco de tribunais arbitrais distintos decidirem demandas idênticas em sentidos diametralmente opostos.

O tema acima foi objeto de alguns artigos de minha autoria publicado neste mesmo “Migalhas”, entre os quais “Conflito de competência entre tribunais arbitrais – Uma realidade desvirtuada” com a coautoria de Rachel Sztajn, edição de 8/4/22; e “Quebra indiscriminada do sigilo na arbitragem – Um total absurdo”, de 19/3/21.

Minha crítica pode ser resumida no fato de que o Judiciário – e agora esse malfadado projeto – têm atacado a arbitragem por desconsiderar a sua natureza essencialmente privada, exceto quando se trata de processos nos quais está presente um ente público como uma das partes, quando ela vem a ser temperada porque está em jogo o interesse da coletividade.

No passado distante, quando do nascimento do Direito Comercial, os comerciantes resolviam as suas pendências dentro do seu ambiente interno, em certo momento verificado nas corporações de artes e ofícios. A jurisdição dos tribunais mercantis – que envolvia o recurso à arbitragem – não era alcançada nem pelo Estado e nem pela Igreja precisamente porque o Direito Comercial nascente teve como motivação fugir ao direito civil e canônico que até então se aplicava sobre as operações comerciais. O Estado somente veio a intervir nessa área quando em França foram promulgadas Ordenações voltadas para a disciplina do Direito Comercial (se é que assim já poderia ser chamado à época), havendo sido extintas as corporações dos mercadores pela Lei Le Chapelier de 1891, na senda da quebra dos privilégios dos comerciantes, então detentores de monopólios legais construídos para a realização da sua atividade2.

No sentido acima não importava ao Estado imiscuir-se nas relações internas do Direito Comercial praticado pelos comerciantes que, por sua própria iniciativa e no seu próprio interesse, criaram mecanismos para evitar o desdobramento externo dos efeitos negativos de sua atividade, ocorridos, por exemplo, nos casos de falências. A isso chamamos hoje de externalidades negativas e de efeitos de segunda ordem.

O que deve se ter em conta na arbitragem é que os tribunais arbitrais não se comunicam entre si quanto aos efeitos de suas decisões que, como regra geral, não se comunicam a terceiros, que por elas não são nem beneficiados nem prejudicados. Por exemplo, a condenação da uma sociedade na composição dos sócios autores de uma ação instaurada conta ela não deve beneficiar aqueles que dela não participaram e que não correram os riscos da perda da causa, com todos os efeitos correspondentes.

Na seara acima um problema relevante surgiu quando dois tribunais arbitrais foram constituídos contra uma companhia aberta (a JBS), no qual dois diferentes grupos tinham o mesmo objetivo. O risco de decisões divergentes por tribunais arbitrais - cujas decisões se colocavam no plano de conflito de competência - levou o STJ a interferir. Inicialmente foi determinada a suspensão dos feitos arbitrais, tendo ao final sido extinto um dos tribunais arbitrais então constituídos.

Essa decisão suscita questões absolutamente relevantes, que serão objeto de desdobramentos ao longo do tempo, mas desde logo pode-se apontar o fato de que o Judiciário se imiscuiu no mérito do objeto das duas arbitragens, quando decidiu sobre a não competência dos minoritários para a instauração da arbitragem extinta pelo fato de que não teria havido inércia da companhia, tendo esse fator sido considerado como condicionante para tal finalidade. Ora, passou-se por cima do princípio competência/competência, um dos fundamentos da arbitragem.

A questão é complexa. Tendo em conta que no caso concreto, por ser a Requerida uma companhia aberta na qual opera o princípio da transparência, o tribunal arbitral constituído no segundo momento, de posse da informação da existência de outro em pendência sobre mesma causa, teria a prerrogativa para decidir sobre a sua própria competência no caso, tendo em conta a anterioridade do outro. No caso de ser a mesma Requerida uma companhia fechada e os processos correrem em sigilo em câmaras de arbitragem distintas, um tribunal não teria e nem poderia ter conhecimento da existência e do objeto de outro processo, em vista de cláusulas compromissórias distintas, sendo vedada àquela quebrar o segredo contratualmente estabelecido.

Como se percebe, estamos diante de uma lacuna no sistema arbitral, mas que não pode ser resolvida da maneira simplista, confusa e apressada, tal como se encontra previsto no projeto de lei aqui examinado.

Vejamos algumas “pérolas” desse projeto, na redação que se pretende impor à Lei de Arbitragem, escolhidas as mais defeituosas:

“Art. 13. Poderá ser árbitro qualquer pessoa capaz que tenha disponibilidade e a confiança das partes.

......................................................................................................

§8º O árbitro não poderá atuar, concomitantemente, em mais de dez arbitragens, seja como árbitro único, coárbitro ou como presidente do tribunal arbitral.

§9º Não poderá haver identidade absoluta ou parcial dos membros de dois tribunais arbitrais em funcionamento, independentemente da função por eles desempenhada.

Veja-se, como se disse acima, a intromissão do Legislativo na liberdade constitucional. Se, devidamente informadas, as partes que tiverem conhecimento de que alguém indicado para ser árbitro atua em um considerável número de casos e mesmo assim confirmam sua escolha, a questão fica na esfera privada. A propósito, quantos processos pode um juiz acumular na sua vara ou um desembargador ou ministro nos seus tribunais?

A proibição referida à identidade de membros dos tribunais arbitrais, parcial ou total, interfere no mesmo direito constitucional e mostra uma aplicabilidade prática irrealizável. De que forma poderia ser feito esse controle, dependente de um cadastro internacional, já que o projeto não fixa qualquer limite territorial ou qualquer jurisdição?  Veja-se que, do ponto de vista do alcance da nossa Lei de Arbitragem, não haveria jurisdição sobre um árbitro brasileiro que cumulasse processos em câmaras arbitrais no exterior.

“Art. 14. ........................................................................................

§1º A pessoa indicada para funcionar como árbitro tem o dever de revelar, antes da aceitação da função e durante todo o processo a quantidade de arbitragens em que atua, seja como árbitro único, coárbitro ou presidente do tribunal arbitral.

...

§3º Os integrantes da secretaria ou diretoria executiva da câmara arbitral não poderão funcionar em nenhum procedimento administrado por aquele órgão, seja como árbitro único, coárbitro ou presidente do tribunal, ou ainda como patrono de qualquer das partes.

Como se percebe, o árbitro precisará ter uma conta corrente, na qual lançará a crédito as arbitragens presentes registrará a débito as encerradas para o fim de poder assumir novos processos. Esse trágico projeto não esclarece se o árbitro estará livre a partir da promulgação da sentença arbitral quando termina a sua competência, na forma do art. 29 da Lei de Arbitragem, ainda que possam ser apresentados pedidos de esclarecimentos.

O parágrafo terceiro acima é uma joia de raro valor no campo das barbaridades do projeto sob análise, mais uma vez interferindo na liberdade de inciativa, não conhecendo o seu originador o princípio da separação de funções, criando uma incompatibilidade absolutamente ilegal. E observe-se que a proibição alcança a diretoria executiva, sem conceituá-la, do que resultaria entender-se que os presidentes das câmaras de arbitragem não estariam incluídos em tal restrição.

“Art. 33

§1º A demanda para a declaração de nulidade da sentença arbitral, parcial ou final, seguirá as regras do procedimento comum, previstas na Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil), respeitará o princípio da publicidade e deverá ser proposta no prazo de até 90 (noventa) dias após o recebimento da notificação da respectiva sentença, parcial ou final, ou da decisão do pedido de esclarecimentos”.

“Art. 5º-A. Uma vez instituída a arbitragem, na forma do art. 19 desta Lei, a instituição arbitral responsável pela administração do procedimento publicará, em sua página na Internet, a composição do tribunal e o valor envolvido na controvérsia.”

“Art. 5º-B. Após o encerramento da jurisdição arbitral, observado o previsto no art. 33 desta Lei, a instituição arbitral responsável pela administração do procedimento publicará, em sua página na Internet, a íntegra da sentença arbitral, podendo as partes, justificadamente, requerer que eventuais excertos ou informações da decisão permaneçam confidenciais.

Veja-se que passaria a valer indistintamente o princípio da publicidade, sem especificar a sua abrangência, em mais uma invasão injustificada à esfera privada de interesses das partes, pois envolve a composição do tribunal arbitral, a informação sobre o valor da causa e a publicação da sentença arbitral em sua íntegra. Na inversão do atendimento dos interesses privados em favor do sigilo, caberá às partes requerer que trechos da decisão ou informações nela existentes permaneçam confidenciais, mas mantem-se a obrigação quanto às demais partes.

A imposição acima não é isolada, ela faz parte de um avanço do Judiciário sobre o instituto da arbitragem, que perderia a primazia do sigilo para colocá-lo em regime de exceção, atribuindo-se ao primeiro o poder de se imiscuir na economia interna dos processos arbitrais para decidir se o interesse do sigilo será atendido. Essa posição é fundada essa posição na alegação de que tudo o que segue para o Judiciário deve estar aberto ao interesse público, passando o sigilo a ser exceção e, no caso do projeto, extremamente limitada.

Há ataques gerais à arbitragem, tal como feito pelo Ministro Dias Toffoli em manifestação recente, ao afirmar por via indireta que o sistema seria indecente3. Por outro lado, conforme o segundo texto na mesma referência, o art. 189, IV do CPC foi julgado inconstitucional, segundo o qual, precisamente, o sigilo é a regra e a publicidade na arbitragem é exceção.

Roberto Teixeira da Costa, presidente da Câmara de Arbitragem do Mercado (CAM) bem observa quão delicada é a situação do sigilo no tocante às companhias abertas, tendo em conta que a sua quebra generalizada pode afetar indevidamente a cotação dos seus valores mobiliários, mesmo antes da sentença arbitral. Ao mesmo tempo ele reconhece a natureza particular dos litígios societários, cujos efeitos repercutem sobre todos os acionistas, fato que deveria ser objeto de um tratamento adequado do legislador, se não fosse o caso de solução por meio de autorregulação, proposta por aquele articulista4.

6. Efeitos do descumprimento das obrigações estabelecidas no projeto

Façamos um exercício hipotético para o caso desse malfadado projeto for aprovado. Digamos que um árbitro não atendeu o dever de revelar a quantidade de arbitragens sob a sua responsabilidade, fato que somente veio a ser descoberto depois da prolação da sentença. E daí, o que acontecerá, o processo seria anulado? O árbitro poderia ser condenado de alguma forma? Sob esse ponto de vista, mantida a Lei de Arbitragem nos seus demais dispositivos, não haveria o que se fazer. Se de alguma forma o excesso de casos nas mãos daquele árbitro pudesse ter sido causa de alguma demora no andamento do feito, no máximo ele mereceria um puxão de orelhas e uma desconfiança para futuras arbitragens.

A mesma coisa deve-se dizer quanto à identidade absoluta ou parcial dos membros de dois tribunais em funcionamento ou o exercício da função de árbitros por integrantes da diretoria executiva de uma câmara arbitral.

Veja-se que essas irregularidades não podem configurar o impedimento ou a suspeição do do árbitro na forma do art. 14 da Lei de Arbitragem, tendo em vista tratar-se de matéria relativa a circunstâncias específicas estabelecidas nos artigos 144 e 145 do CPC.

Quer dizer, os tiros dados pelo projeto são de pólvora seca, desprovidos de qualquer sanção. O cachorro late, mas não morde.

Conclusão

O projeto em pauta teve o regime de urgência suspenso, o que é um mal menor, já que o bem maior será a sua total rejeição, devendo ser encetado um diálogo com os setores representativos desse sistema arbitral para o fim de que os problemas nele apurados sejam tratados de forma adequada e não açodadamente e de maneira completamente estapafúrdia na quase totalidade dos seus dispositivos.

No plano das consequências, uma delas muito clara refere-se ao desestímulo que esse projeto causará ao instituto da arbitragem, ainda que tenha tocado em pontos sensíveis, merecedores de amplo debate para o fim de se alcançar soluções adequadas. Não se esqueça de que nada impede que - diante das novidades indigestas propostas pelo projeto que vierem a se transformar em norma vigente -, a par de mais uma área em que o Brasil se tem tornado paria -  os interessados no exercício de sua liberdade busquem outras jurisdições arbitrais no ambiente externo para a solução dos seus litígios, dando-se o esvaziamento do nosso sistema arbitral. Mas é bom nem se falar disso, pois o nosso sábio legislador poderá também desejar colocar uma cerca nessa possibilidade, fechando as nossas fronteiras arbitrais.

________________

1 Sob esse aspecto já nos manifestamos em outras oportunidades a respeito de problemas no exercício da arbitragem, a exemplo do processualismo excessivo de que ela foi tomada; das listas sêxtuplas de indicados para arbitragem, que jogam os candidatos em uma vala comum, como se o seu conhecimento jurídico fosse absolutamente homogêneo, sendo indiferente quem for designados ao final desse processo de escolha; de modismos importados e altamente preocupantes, como é o caso das chamadas entrevistas prévias com os candidatos a serem indicados como árbitros, nas quais a pescaria em águas turvas pode estar presente; o abuso de impugnações a pessoas indicadas para árbitros ou mesmo para os membros dos comitês que analisam processos de impedimento a eles relativos; etc.

2 Os leitores que desejem ter uma visão mais completa sobre esse tema podem buscar subsídios no volume 1 da minha Coleção de Direito Comercial recentemente publicada pela Editora Dialética;

3 Cf. nossos artigos neste mesmo Migalhas, “A arbitragem e o ministro Dias Toffoli – cogitações pertinentes”, de 20.04.2022; e “Quebra judicial indiscriminada do sigilo na arbitragem – Um total absurdo”, de 19.03.2021.

4 In “A CAM no contexto da arbitragem”, in Jornal Valor Econômico de 216.07.2022.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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