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Há intersecções entre a teoria da aparência e o marketing de emboscada?

Os traquejos merceológicos advindos do ambush marketing, verdadeiros malabares com a função de distintividade, apresentam alguma intersecção com a chamada teoria da aparência?

28/7/2022

Megaeventos, a exemplo dos esportivos (Olimpíadas, Copa do Mundo® etc.), atraem o interesse organizacional de múltiplos stakeholders1. O impulso do incentivo à participação e ao prestígio da esfera pública (transformando o evento em uma “ativação”) muito se dá em decorrência de ações comerciais (no geral, patrocínios)2 por publicidade, propaganda, marketing, merchandising, fomentadas por alguns destes stakeholders.

O interesse no retorno de tal investimento, frequentemente de quantias vultuosas, é de rigor. Muitos destes megaeventos apresentam mecanismos protecionistas aos ativos comerciais avençados entre partners, em face de terceiros, a evitar atos parasitários intentados por estes.3 Exemplo de ato parasitário é o ambush marketing (traduzido comumente como marketing de emboscada), cuja percurso conceitual é bem detalhado por Gerd Nufer:

“’Emboscar’ [to ambush] significa atacar de uma posição escondida. Em fontes populares, o marketing de emboscada é, com frequência, usado sinonimamente com termos como ‘marketing coattail’, ‘parasitic marketing’ e ‘freerider marketing’. Patrocinadores oficiais definem essas emboscadas em direitos de publicidade de alto preço como ‘roubo’ e enfatizam os aspectos ilegais do marketing de emboscada [...]. No entanto, também há representantes do ponto de vista oposto. Eles veem o marketing de emboscada como um ‘poder legítimo’ que facilita mais eficiência no mercado de patrocínios. [...]. Portanto, o fenômeno do marketing de emboscada não é novo, mas nos últimos anos tornou-se significativamente mais profissional. Embora inicialmente o assunto fosse quase exclusivamente abordado por autores anglo-americanos, não é mais um fenômeno (anglo)-americano. A crescente agressividade nos mercados de comunicação e patrocínio fez com que o marketing pudesse ser observado em todo o mundo e continuasse a crescer. Uma vez que até agora nenhuma definição uniforme de marketing de emboscada conseguiu prevalecer, diferentes abordagens de definição devem ser contempladas.”4

Por mais que “nenhuma definição tenha conseguido prevalecer” de maneira homogênea, o referido autor a propõe como sendo “a prática das empresas de usar seu próprio marketing, principalmente atividades de comunicação de marketing, para passar uma impressão [to give an impression], ao público do evento, de associação com o referido, embora tais empresas em questão não detêm direitos de marketing, exclusivos ou não, para este evento, patrocinado por terceiros. Assim, os ‘emboscadores’ querem promover e vender produtos por meio de uma associação com o evento, como fazem permitidamente os patrocinadores oficiais de tal evento.”5

Estes traquejos merceológicos, malabares com a função de distintividade, apresentam alguma intersecção com a chamada teoria da aparência?

Tal teorização sobre a aparência de direito se demonstra “aplicável em vários âmbitos”6; alguns exemplos dentre outros podem ser encontrados na seara da dogmática do negócio jurídico, dos direitos de crédito, da disciplina consumerista etc. Maurício Bunazar menciona7 que a doutrina de Vicente Ráo emprega uma sistematização de requisitos (objetivos e subjetivos) para a tutela do “investimento” da confiança; isto é, a produção de efeitos decorrentes da aparência:

“A aparência de direito se caracteriza e produz os efeitos que a lei lhe atribui, somente quando realiza determinados requisitos objetivos e subjetivos. São seus requisitos essenciais objetivos: a – uma situação de fato cercada de circunstâncias tais que manifestadamente a apresentem como se fora uma segura situação de direito; b – situação de fato que assim possa ser considerada segundo a ordem geral e normal das coisas; c – e que, nas mesmas condições acima, apresente o titular aparente como se fora legitimo, ou o direito como se realmente existisse. São seus requisitos subjetivos essenciais: a) a incidência em erro de quem, de boa-fé, a mencionada situação de fato como situação de direito considera; b) a escusabilidade desse erro apreciada segundo a situação pessoal de quem nele incorreu.”8

Levando-se em conta estes argumentos, pode-se considerar uma intersecção de cariz principiológico entre o ambush marketing e a teoria da aparência. A Lei Geral da Copa chegou a trazer em seus artigos 32 e 33 a tipificação do marketing de emboscada como ilícito penal na conduta associativa (externa ao local físico do evento) e intrusiva (no local físico do evento).9 

Ambas as modalidades partem do contexto de indução de terceiros (público espectador, consumidores etc.) à crença de que determinados produtos e serviços estão comercialmente vinculados (i.e, “aprovados, autorizados ou endossados”) pela entidade organizadora de tal evento quando de fato, e de direito, não estão. Tais destinatários emboscados pelo marketing traquejado podem, sim, terem sido levados a erro, portanto.

Mas o que salta aos olhos neste contexto é o trato do emboscado de forma mediata, sendo as preocupações comerciais da entidade organizadora junto a seus partners o elemento imediato de resguardo. Complexo é cogitar se há a criação de direito subjetivo (i.e. a presença de situação jurídica subjetiva) em face e em detrimento de tal entidade, ou da empresa que embosca, alçando o emboscado ao status de imediato.

Exempli gratia, se a marca de artigos esportivos A, sem vínculo oficial/contratual com o evento, confecciona seu marketing com o ensejo de emboscar o público espectador a dissuadir o sponsor B consigo, e não há o enforcement necessário por parte da entidade organizadora ou do parceiro em face de A, configura-se a aparência?

A confiança e a boa-fé do espectador merecem, por princípio, a aproximação das suas sistemáticas com a do ambush marketing, num esforço de equilíbrio de interesses a beneficiar o evento – e sua proveniência empresarial – junto ao público como um todo, justamente porque “os eventos podem gerar riqueza social, pelo que do ponto de vista econômico não é aconselhável restringir completamente a publicidade em torno de um espetáculo.”10

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1 “Os stakeholders sa~o os pu'blicos de interesse, grupos ou indivi'duos que afetam e sa~o significativamente afetados pelas atividades da organizac¸a~o: clientes, colaboradores, acionistas, fornecedores, distribuidores, imprensa, governo, comunidade, entre outros. O termo stakeholder tem origem no termo stockholder (acionista), e amplia o foco da organizac¸a~o, que antes era satisfazer o acionista e passa a ser satisfazer seus pu'blicos de interesse estrate'gicos, como clientes, funciona'rios, imprensa, parceiros, fornecedores, concorrentes, sindicatos e a comunidade local.” (Rocha, p. 6)

2 “A maioria dos patrocínios [sponsorships] consiste em uma coleção de atividades de comunicação, um uso misto de publicidade, relações públicas, promoções de vendas e ferramentas de marketing direto e nisso não há nada de místico sobre o que constitui um patrocínio. No entanto, o que diferencia o patrocínio de outras formas de comunicação é que esse mix pode representar uma relação única, a relação de patrocínio entre os titulares dos direitos e os patrocinadores. Se essa relação for baseada em um 'encaixe' [‘fit’] forte e explorável, todo patrocínio é capaz de fornecer um conjunto de comunicações sob medida que pode levar a uma vantagem competitiva para patrocinadores e proprietários de direitos.” (Masterman, ebook, tradução nossa)

3 “Sponsorship é, portanto, não apenas uma relação bilateral entre o titular dos direitos e o patrocinador, mas sim uma relação multilateral, envolvendo um número significativo de partes interessadas nesse sistema.” (Ferrand/Torrigiani/Povill, ebook, tradução nossa)

4 Nufer, ebook, tradução nossa

5 Op. cit., tradução nossa. Portanto, o ato de emboscada não necessariamente se refere ao ato ilícito relativo ao uso não licenciado de propriedade intelectual. Tanto é que “enquanto na maioria dos países a imitação ou uso indevido de obra artística/literária, marcas, logos ou insígnias constitui ato de violação à propriedade intelectual, e denominar-se falsamente patrocinador oficial de um evento pode constituir violação às práticas leais do comércio, o Marketing de Emboscada por ‘intrusão’ não é uma figura legalmente definida per se. Como anteriormente comentado, as campanhas desse tipo de marketing não costumam envolver atos ilícitos como a violação de direitos de propriedade intelectual ou de cláusulas contratuais. Elas tão somente aproveitam a notoriedade de um determinado evento para, sem mencionar o nome, marca, insígnia ou logo oficial do evento, promover, de forma autônoma, os nomes, marcas, produtos ou serviços de concorrentes que não contribuíram financeiramente para a realização do evento. Nestas circunstâncias, e por permanecerem normalmente dentro dos parâmetros considerados normais na concorrência, torna-se muitas vezes impossível implementar quaisquer medidas que imponham a sua cessação” (Woltzenlogel, p. 38). Tenha em vista que este artigo é de 2006 e, portanto, anterior às edições das leis relativas à Copa e Olimpíadas que insertam (temporariamente) no sistema jurídico nacional o ambush marketing. 

6 Chinellato/Morato, ebook. Há uma interessante reunião de julgados do STJ referentes a aplicação da teoria da aparência em busílis diversos:

7 Bunazar, ebook.

8 Ráo apud Bunazar, ebook.

9 Dicção parelha é encontrada na Lei sobre medidas relativas aos Jogos Olímpicos, em seus Arts. 19 e 20. Levando-se em conta a natureza penal em que este ato foi insertado, a própria Lei Geral da Copa pôs a termo a vigência do tipo (31/12/2014; sendo 31/12/2016 a vigência do relativo na Lei sobre as Olimpíadas), tornando o marketing de emboscada per se numa questão de iure condendo, ao sabor da “oportunidade” legislativa. A identificação da necessidade de positivação de tal conduta demonstra que é turva a questão no sentido de se aplicar a sistemática do enriquecimento sem causa e/ou da concorrência desleal. Para uma discussão crítica a adentrar no ponto, cfr. Louw.

10 Compte/Saritama, p. 58, tradução livre.

Otávio H. B. Arrabal
Graduando em Direito pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB). Bolsista da AGIT FURB.

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