Até que ponto uma pessoa pode ser considerada humana? Até que ponto o debate político e filosófico comporta divergência de ideias sem adentrar no campo da agressão? Assim, começamos esse breve texto sobre essa figura emblemática no debate público dos últimos anos até sua morte.
Olavo de Carvalho foi um dos assuntos mais comentados dos últimos anos no cenário político. Gostem ou não, ele pautou discussões sobre nossa memória histórica e forma de entender o Brasil. Embora não tenha sido um exemplo de pacifismo e moderação ao criticar seus desafetos, ele não mereceu tanta manifestação de ódio. Ninguém merece.
Eu mesmo deixei de ouvi-lo nos últimos dois anos anteriores a sua morte, não achava interessante a forma como ele se referia às pessoas com as quais discordava. Algumas de suas opiniões pessoais me pareciam um tanto exacerbadas, no entanto, nunca deixei de apreciar suas obras de cunho filosófico. Por outro lado, vale refletirmos sobre a forma que sua morte foi tratada por muitas pessoas do mundo político, artístico e adversários no debate de ideias.
A desumanização de sua figura após a notícia de sua morte foi algo que nos entristeceu bastante, pois a morte deve ser o único evento que até os inimigos capitais devem ter respeito, no geral. Com a morte se encerra tudo. É a maior derrota que sofremos nessa passagem pela Terra, na medida em que nossa história tem um ponto final, nosso livro se fecha e as luzes se apagam.
Enquanto estava vivo, foi evitado e combatido por quem discordava de suas postulações ou tinha alguma questão pessoal em relação a ele. Talvez não tenha havido nenhuma figura pública fora do mundo político ou artístico tão odiada e combatida quanto Olavo. Ainda na época do Orkut, era achincalhado por meio de diversas páginas ou comunidades, como se chamavam naquela rede social.
Com o advento de novas redes virtuais, esses ataques se tornaram mais intensos e volumosos, o que o provocavam ao ponto de gravar vários vídeos em resposta às ofensas prolatadas. Na tentativa de desqualificá-lo, militantes de jornais e revistas o chamavam de "astrólogo" e "guru", quando não, a referência era de "autointitulado filósofo", negando sua obra e sua condição de filósofo político.
O fato de só negar algo porque não gosta ou não concorda não muda um filamento de realidade posto. Olavo de Carvalho não só foi como é um filósofo político, certamente um dos mais importantes dos últimos anos no Brasil. Suas opiniões pessoais não traduziam seus postulados, assim como os hábitos questionáveis de Sartre e Simone de Beauvoir (na sua intimidade) não diminuíram suas estaturas de filósofos. Aliás, se o problema era Olavo não possuir diploma acadêmico, saibam, meus caros, que um dos maiores filósofos alemães (Nietzsche) não teve diplomação em filosofia (AURÉLIO, 2020, p. 23). Notem que os mesmos que atacavam o velho pensador conservador afirmando que não era filósofo por não possuir diploma, são os mesmos que idolatram Nietzsche como sendo um dos maiores filósofos do Ocidente.
Aliás, Friedrich Nietzsche não possuiu diploma em filosofia (era formado em filologia) e foi agraciado, em 1869, com um doutorado sem que precisasse passar pelo crivo que todos precisavam passar para conseguir o título (LECHTE, apud AURÉLIO, 2020, p.25). Assim, foi filósofo sem diploma e doutor sem conclusão de doutorado, porém, jamais tentaríamos diminuir sua obra ou ofender sua memória por conta disso. A pergunta que se faz é: Por que tanto ódio contra Olavo de Carvalho? Por que tantos impropérios e exigências formais se isso não era feito a outras personalidades?
Vale ainda esclarecer que um dos mais aclamados jusfilósofos brasileiros, Miguel Reale, também não teve formação em filosofia, no entanto, é considerado como tal além de ser fundador do Instituto Brasileiro de Filosofia. Coincidência ou não, Miguel Reale foi amigo de Olavo de Carvalho, tendo reconhecido o projeto de pensamento deste a ponto de convidá-lo a fazer parte do citado instituto.
Do crime contra Honra dos mortos
Mas o que nos interessa mesmo é analisar a morte do pensador em comento sob a perspectiva do direito penal e civil. Que tipo de sadismo estamos desenvolvendo para comemorarmos a morte de outra pessoa, somente por discordar dela? Isso aconteceu com outras figuras públicas também, inclusive com o neto do ex-presidente Lula, quando pessoas de forma desumana e cruel zombaram da morte do garoto.
Uma das inúmeras matérias feitas sobre a morte de Olavo foi a de Chico Alves, do Uol, de 26/1/22, que num trecho diz:
“Nunca se viu tantas manifestações de alegria e humor por causa de um falecimento. Segundo o analista de redes Pedro Barciela, em mais de meio milhão de tuites publicados ontem sobre a morte de Olavo de Carvalho, apenas 24,8% foram de grupos bolsonaristas e 71% continham alguma ironia sobre o guru da extrema-direita....”
Numa matéria da Revista Oeste, o jornalista Cristyan Costa denuncia o discurso de ódio propagado por personalidades ao comemorarem a morte do filósofo. Jean Wyllys, no twitter, disse:
"Liberou os comentários? Então deixe-me aproveitar: o que nos resta, já que não há justiça dos homens (esse mentiroso, difamador sórdido morreu me devendo reparação pelos danos materiais e morais que me causou) é festejar que esse monstro tenha desaparecido do planeta"
Outra pessoa, Ivan Valente, disse também no twitter:
"É bom registrar que Olavo viveu e morreu na mentira. Não era filósofo, não era pensador, não era astrólogo, não era professor. Ele era um charlatão que viveu de tirar dinheiro dos outros através de mentiras e morreu negando a verdade e por conta disso. NEGACIONISMO MATA!"
Renan Calheiros, escarneceu do momento de dor dos familiares ao dizer:
"Olavo de Carvalho negou o vírus, escarneceu dos mortos, não se vacinou, morreu do vírus e será sepultado na Terra redonda."
O blog intitulado Sensacionalista postou:
"Onda de calor foi causada por porta do inferno se abrindo para receber Olavo de Carvalho, diz meteorologia"
O ator, José de Abreu, disse: "morreu o pai do bolsonarismo. falta o filho".
Essas são apenas algumas manifestações feitas após o anúncio do falecimento do filósofo direitista. Ao analisarmos o caso sob a perspectiva do direito penal, temos a seguinte dicção:
Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:
§ 2º - É punível a calúnia contra os mortos.
A calúnia é o único crime previsto no código penal em relação à honra de pessoa morta. No entanto, na seara cível é perfeitamente possível os familiares exigirem reparação moral por ofensa reflexa.
Isso porque os direitos inerentes à personalidade se extinguem com a morte, cabendo somente a reparação cível na modalidade reflexa em relação aos entes enlutados da pessoa ofendida. Neste sentido, o art. 12 do Código Civil diz:
Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.
Note-se que há substrato jurídico para que os entes da pessoa falecida requeiram que cesse a ameaça ou lesão a direito da personalidade, o que poderia ser exigido pelos familiares do pensador conservador.
Porém, para além de uma postura jurídica, vale indagarmos se queremos renunciar ao pouco de humanidade que nos resta para investirmos em ataques raivosos aos que pensam diferente de nós. Para onde estamos caminhando? Se Olavo de Carvalho tinha postura raivosa e descontrolada muitas vezes, talvez fosse devido aos ataques que recebia diuturnamente durante muitos anos.
Assim como direitistas conservadores precisam ter respeito por Paulo Freire e Karl Marx, por exemplo, esquerdistas progressistas devem tê-lo em relação ao filósofo Olavo de Carvalho. Direita e esquerda são partes de nosso corpo, sem um dos dois, nosso corpo não funciona normalmente. Ambos são necessários para termos uma vida equilibrada, amputar um dos lados é condenar a si mesmo, dentro do ambiente democrático.