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A ação rescisória por manifesta violação da norma jurídica e o não cabimento de mitigação da súmula 343 do STF

Resta evidente que a alteração superveniente da jurisprudência não enseja o cabimento da Ação Rescisória, em respeito a garantia fundamental da coisa julgada material.

25/7/2022

1. Introdução

A coisa julgada é considerada um direito fundamental à segurança jurídica no processo, garantindo a imutabilidade dos julgados e seus efeitos, depois que não seja mais possível impugná-los por meio de recursos.

Transitada em julgado, a decisão se torna irrecorrível e, desse modo, insuscetível de discussão e modificação.

Não obstante, o CPC/15 prevê, em situações excepcionalíssimas, o cabimento da ação rescisória, autorizando a reapreciação da decisão de mérito que, a princípio, seria indiscutível.

Dentre as previsões do Código há o inciso V, que dispõe ser cabível a rescisória em face de decisão que “violar manifestamente norma jurídica”.

Assim, uma vez que norma jurídica não é sinônimo de texto legal, mas o resultado da interpretação de um preceito normativo, haverá violação apta a ensejar a ação rescisória quando a decisão rescindenda tiver conferido uma interpretação incompatível com o ordenamento jurídico.

Nesse sentido, a lei 13.246/16 introduziu o § 5º ao art. 966, dispondo ser cabível ação rescisória em face de decisão baseada em enunciado de súmula ou acórdão proferido em julgamento de casos repetitivos que não tenha considerado a existência de distinção entre a questão discutida no processo e o padrão decisório que lhe deu fundamento.

Ou seja, em caso de aplicação errônea de tese jurídica vinculante, cabe ação rescisória, em decorrência do regime de precedentes adotado pelo Código de Processo Civil.

No entanto, há omissão quanto ao cabimento da mencionada ação em caso de alteração superveniente da jurisprudência, razão pela qual a Súmula 343 do STF, mesmo não tendo sido revogada com o advento do CPC/15, passou a ser mitigada nos Tribunais, ensejando o debate sobre o cabimento ou não da ação rescisória nos casos de mudança posterior do precedente.

Dessa forma, o presente estudo pretende abordar o tema, destacando as recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.

2. A ação rescisória

A coisa julgada possui proteção constitucional. Ela está disposta no artigo art. 5º, XXXVI, da CF/88, que dispõe que a lei não prejudicará a coisa julgada.

Nesse sentido, Marcos de Araújo Cavalcanti ensina que referido dispositivo constitucional estabelece que eventuais modificações supervenientes na legislação não podem prejudicar a coisa julgada, havendo, inclusive, impedimento para o juiz, que é o intérprete e o aplicador do direito objetivo ao caso concreto, viole a res judicata1.

No entanto, conforme observa Marinoni, há situações, excepcionalíssimas, em que tornar indiscutível uma decisão judicial por meio da coisa julgada representa injustiça tão grave e solução tão ofensiva às linhas fundamentais que pautam o ordenamento jurídico que é necessário prever mecanismos de rescisão da decisão transitada em julgado2.

Por isso, para casos excepcionais, o código de processo civil prevê instrumentos destinados a superar a coisa julgada material, autorizando a reapreciação da decisão de mérito que, a princípio, seria indiscutível.

Conforme preceitua o art. 966, do CPC/15, a decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:

“I - Se verificar que foi proferida por força de prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;

II - For proferida por juiz impedido ou por juízo absolutamente incompetente;

III - Resultar de dolo ou coação da parte vencedora em detrimento da parte vencida ou, ainda, de simulação ou colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;

IV - Ofender a coisa julgada;

V - Violar manifestamente norma jurídica;

VI - For fundada em prova cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou venha a ser demonstrada na própria ação rescisória;

VII - Obtiver o autor, posteriormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável;

VIII - For fundada em erro de fato verificável do exame dos autos”.

No presente estudo, será analisado apenas o cabimento da rescisória por manifesta violação à norma jurídica (art. 966, V, CPC/15).

2.1. A ação rescisória por manifesta violação à norma jurídica

Feitas as considerações sobre a previsão de cabimento da ação rescisória, passa-se a analisar o conteúdo do inciso V, do art. 966, do CPC/15, o qual estabelece que é cabível a referida ação por manifesta violação de norma jurídica.

Inicialmente, importante mencionar que o Código de Processo Civil de 1973 previa em seu art. 485, V, o cabimento de ação rescisória em face de sentença de mérito transitada em julgado que violasse “literal disposição de lei”.

Já o Código de 2015 alterou a redação para: “violar manifestamente norma jurídica”. Por manifesta, entende Humberto Thedoro Júnior uma violação de forma evidente à norma legal, de modo aberrante ao conceito nela contido3.

Ainda, a lei 13.246/16 introduziu os §§ 5º e 6º ao art. 966, dispondo ser cabível a ação rescisória em face de decisão baseada em enunciado de súmula ou acórdão proferido em julgamento de casos repetitivos que não tenha considerado a existência de distinção entre a questão discutida no processo e o padrão decisório que lhe deu fundamento, cabendo ao autor o ônus de demonstrar, na causa de pedir da rescisória, tratar-se de situação fática particular, a impor outra solução jurídica.

Desse modo, em caso de aplicação errônea de tese jurídica vinculante, cabe ação rescisória, em decorrência do regime de precedentes adotado pelo Código de Processo Civil.

No entanto, apesar da aplicação indevida de precedente que já existia à época de a sentença restar positivada, a omissão quanto ao cabimento de Ação Rescisória em caso de alteração superveniente da jurisprudência passou a ser matéria de debate diante da (equivocada) mitigação da Súmula 343 do STF, conforme será exposto a seguir.

3. A Súmula 343 do STF

Sobre o cabimento de rescisão em caso de alteração da jurisprudência, após o trânsito em julgado da decisão proferida, Humberto Theodor Júnior, citando Hugo de Brito Machado, sustenta que a escolha por um dos vários sentidos normativos ainda objetos de discussão jurisprudencial, sem definição precisa, não pode ensejar ação rescisória, uma vez que a ordem jurídica garante a coisa julgada e pouquíssimas hipóteses de rescindibilidade4.

Além disso, a finalidade da ação rescisória é a eliminação de injustiças graves e não a uniformização da jurisprudência, sendo meio de proteção do ordenamento jurídico como um todo, e não meio de proteção das partes5.

Nesse sentido, diante da incontestável necessidade de se ressalvar a coisa julgada contra a alteração da interpretação dos tribunais, o STF editou a Súmula 343 (não revogada, mesmo com o advento do CPC/2015), que afirma não caber “ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.

A Súmula 343 não diz o que é violação literal de lei, mas deixa claro que a decisão que se funda em lei de interpretação controvertida nos tribunais não pode ser objeto de ação rescisória. Para Marinoni, “por uma razão compreensível: é que, se os tribunais divergiam sobre a interpretação da norma, a decisão que adotou uma das interpretações legitimamente encampadas pela jurisdição não pode ser vista como decisão que violou literalmente disposição de lei6.

Acrescenta referido autor que “a lei não detém a norma”. A norma é reconstruída pelo juiz a partir do texto, de elementos extratextuais da ordem jurídica e por meio de diretivas interpretativas e valorações, afirmando, ainda, que toda disposição legal é mais ou menos vaga e ambígua, de modo que sempre tolera diversas e conflitantes atribuições de significado7.

Assim, de uma única disposição legal podem derivar vários resultados interpretativos ou uma multiplicidade de normas, sempre conforme as diversas interpretações possíveis8.

Percebe-se assim, que as várias interpretações normativas autorizam o magistrado a escolher, desde que motivadamente, a interpretação que se adequa ao caso a ser julgado, mesmo que não seja a prevalente posteriormente. Em decorrência dessa “permissão”, a alteração superveniente da jurisprudência não enseja o cabimento da ação rescisória, em respeito a garantia fundamental da coisa julgada e a segurança jurídica.

Não obstante, o entendimento fixado na referida Súmula 343/STF já, desde muito tempo, vinha sofrendo mitigação por parte da própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em situações de interpretação das normas constitucionais (ad ex.: RE 89.108/GO, PLENÁRIO, Min. CUNHA PEIXOTO, DJe de 19.12.1980; AI 703485 AgR, Relator Min. DIAS TOFFOLI, PRIMEIRA TURMA, DJe de 08-02-2013).

Do mesmo modo, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça também mitigava os rigores de tal enunciado, admitindo o cabimento da ação rescisória fundada na alegação de violação a literal disposição de lei, sempre que a decisão rescindenda estivesse fundamentada em norma declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (a.d.: REsp 128.239/RS, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, SEGUNDA TURMA, DJ de 1º/12/1997).

Além disso, o Superior Tribunal de Justiça ainda admitia o cabimento da ação rescisória em face de julgados que, mesmo apreciando matéria infraconstitucional não submetida a controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, tivessem adotado interpretação contrária à que o próprio Superior Tribunal de Justiça atribuiu à legislação federal (REsp 1.026.234/DF, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, DJe de 11/06/2008).

No entanto, em julgamento submetido ao regime da repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal modificou sua orientação para assentar que não cabe ação rescisória com fundamento em posterior alteração do entendimento do Tribunal sobre a matéria, conforme será melhor exposto a seguir.

4. A não admissão de ação rescisória baseada em ulterior precedente

No tema de Repercussão Geral, 136, leading case RE 590809, o STF firmou entendimento no sentindo de que não cabe a Ação Rescisória em caso de mudança superveniente de entendimento da Corte.

Conforme voto do Relator Ministro Marco Aurélio, a rescisória deve ser reservada a situações excepcionalíssimas, ante a natureza de cláusula pétrea conferida pelo constituinte ao instituto da coisa julgada.

Nas palavras do mencionado Ministro:

“não se trata de defender o afastamento da medida instrumental – a rescisória – presente qualquer grau de divergência jurisprudencial, mas de prestigiar a coisa julgada se, quando formada, o teor da solução do litígio dividia a interpretação dos Tribunais pátrios ou, com maior razão, se contava com óptica do próprio Supremo favorável à tese adotada” (STF, RE 590809/RS, Tribunal Pleno, j. 22.10.2014, rel. Min. Marco Aurélio).

No mesmo sentido, em março de 2021, ao não conhecer a Ação Rescisória 2297/PR, o STF reafirmou sua jurisprudência sobre o não cabimento da medida quando o acórdão estiver em harmonia com o precedente firmado pela Corte na época, ainda que ocorra mudança posterior do entendimento sobre a matéria9.

Em síntese a União visava desconstituir acórdão com base em novo precedente da Corte sobre creditamento do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), com o argumento de que, até 2017, a jurisprudência do STF admitia o creditamento do IPI, mas esse entendimento fora revertido.

Por unanimidade, o colegiado não conheceu da Ação e acompanhou integralmente o voto do relator, ministro Edson Fachin, pela aplicabilidade, ao caso, da Súmula 343 do STF, que afasta o cabimento da ação rescisória contra decisão baseada em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais e proferidas em harmonia com a jurisprudência do STF, mesmo que ocorra alteração posterior.

Embora reconhecendo que houve mudança jurisprudencial sobre a possibilidade do creditamento do tributo, o Ministro Relator afirmou que o acórdão não pode ser revisto por esse motivo, em observância ao princípio da segurança jurídica e da coisa julgada.

Mais recentemente, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça deu provimento a embargos de divergência em recurso especial 1.508.018 - RS (2015/0002056-3), reconhecendo que a Súmula 343/STF não admite mitigação, sendo de plena incidência para impedir a rescisão de julgados que tiverem sido baseados em texto legal de interpretação à época controvertida nos tribunais, dirimindo a controvérsia existente no âmbito daquela Corte.

Portanto, resta evidente que a alteração superveniente da jurisprudência não enseja o cabimento da Ação Rescisória, em respeito a garantia fundamental da coisa julgada material.

5. Conclusão

Consoante exposto, a escolha por um dos vários sentidos normativos ainda objetos de discussão jurisprudencial, não pode ensejar ação rescisória, mesmo que a decisão não tenha se baseado no entendimento que seja o prevalente posteriormente.

Além disso, a finalidade da ação rescisória é a eliminação de injustiças graves, sendo meio de proteção do ordenamento jurídico como um todo, e não meio de proteção das partes.

Esse é o entendimento do STF, conforme Súmula 343 (não revogada, mesmo com o advento do CPC/2015), que afirma não caber “ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.

Tal entendimento foi reafirmado na Ação rescisória 2297, em que o colegiado acompanhou integralmente o voto do Relator, Ministro Edson Fachin, pela aplicabilidade, ao caso, da Súmula 343 do STF, que afasta o cabimento da ação rescisória contra decisão baseada em texto legal de interpretação controvertida nos Tribunais e proferidas em harmonia com a jurisprudência do STF, mesmo que ocorra alteração posterior.

Posteriormente, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça deu provimento a embargos de divergência em recurso especial 1.508.018 - RS (2015/0002056-3), reconhecendo que a Súmula 343/STF não admite mitigação, sendo de plena incidência para impedir a rescisão de julgados que tiverem sido baseados em texto legal de interpretação à época controvertida nos tribunais, dirimindo a controvérsia existente no âmbito daquela Corte.

Portanto, resta evidente que a alteração superveniente da jurisprudência não enseja o cabimento da Ação Rescisória, em respeito a garantia fundamental da coisa julgada material.

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1 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Coisa julgada e questões prejudiciais: limites objetivos e subjetivos. 1. ed. em e-book baseada na 1. ed. impressa. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

2 MARINONI, Luis Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. 3. ed. em e-book baseada na 3. ed. impressa. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. 2 v.

3 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. 42 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2016. 3 v.

4 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. 42 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2016. 3 v. 

5 Ibid.

6 MARINONI, Luis Guilherme. A intangibilidade da coisa julgada diante da decisão de inconstitucionalidade: impugnação, rescisória e modulação de efeitos. Revista de Processo, vol. 251, p. 275 - 207, 2016.

7 MARINONI, Luis Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. 3. ed. em e-book baseada na 3. ed. impressa. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. 2 v. 

8 Ibid.

9 STF, AR 2297/PR, j. 29.07.2015, rel. Min. Edson Fachin

Mayara Bueno Barretti Rocha
Advogada no escritório Barreto e Dolabella. Mestranda em Direito Privado, Tecnologia e Inovação pelo IDP. Pós-graduada em Direito Processual Civil pelo IDP. Pós-graduada em Direito Empresarial.

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