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O princípio da igualdade de condições e as exigências de qualificação técnica nas licitações públicas

A nova lei de licitações, lei 14.133 de 2021, de igual forma, elencou em seu artigo 5° uma extensa coletânea de elementos que dão forma aos processos licitatórios, destacando-se a necessidade de observância aos princípios da igualdade, impessoalidade e ampla competitividade.

21/7/2022

Antes de mais nada, fundamental é destacar o objetivo das licitações públicas e quais os valores que regem essa modalidade de concorrência pública. Nesse sentido, a Lei n° 8.666 de 1993, em seu artigo 3°, responde algumas destas indagações, determinando que as licitações se destinam à “observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável.” Ademais, seu processamento e julgamento deve ter como norte os “princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhe são correlatas.”

A nova lei de licitações, lei 14.133 de 2021, de igual forma, elencou em seu artigo 5° uma extensa coletânea de elementos que dão forma aos processos licitatórios, destacando-se a necessidade de observância aos princípios da igualdade, impessoalidade e ampla competitividade.

Observa-se, assim, que é tendo os elementos acima mencionados como balizas, que todos os atos dos processos licitatórios devem ocorrer, aí inclusa a exigência de qualificações técnicas e econômicas aos licitantes. Nesse parecer, tem-se que as mencionadas exigências inúmeras vezes possuem condão diverso, não respeitando a isonomia e a igualdade de condições dos concorrentes, mas se voltando ao benefício de um licitante específico.

 Nesse diapasão, é perceptível que inúmeras vezes a imposição de requisitos técnicos é utilizada, de acordo com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, como estratagema que objetiva “eliminar ou restringir a concorrência dos processos de contratação de bens e serviços pela Administração Pública.” Esse conluio entre agentes caracteriza perfeitamente a formação de cartéis em licitação.  

Conhecendo esta situação, a Constituição da República Federativa do Brasil estabeleceu em seu artigo 37°, XXI:

XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

Pois bem, perceptível é o cuidado do Constituinte em garantir a lisura dos processos licitatórios, tanto na fase preparatória, quanto nas demais, de forma que estabeleceu de forma expressa a necessidade da manutenção da igualdade de condições a todos os concorrentes. Entretanto, também é conhecida a necessidade de especificações técnicas para a realização de determinados serviços, o que naturalmente decorre da espécie da prestação. Lógico é que não se pode, por óbvio, ser contratada uma empresa de engenharia para a execução de serviços jurídicos, ou uma banca de advogados para exercer atividades de natureza médica.

Foi justamente nesse sentido que a Constituição de 1988 estabeleceu a possibilidade de serem realizadas exigências técnicas aos participantes das concorrências públicas. Não obstante – sabendo dos desvios morais que podem atingir a natureza humana e considerando que podem os requisitos serem utilizados como forma de restrição à concorrência, atuando como “cláusula peneira”, imposição que “filtra” os participantes da concorrência, de forma não isonômica, o que acarreta direcionamento da licitação e, colateralmente, ainda atinge o primado da impessoalidade e da igualdade – estabeleceu sólido critério para que possam ser realizadas exigências técnicas.

Dessa forma, conforme consta do artigo constitucional anteriormente trazido, as exigências de qualificação técnica e econômicas somente poderão estar presentes quando forem “indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.”

Portanto, aqui deve ficar claro que não são proibidas exigências técnicas.

 A grande problemática frente a qual se opõe diz respeito às condições que não são indispensáveis ao cumprimento do contrato, mas que – fundadas em parcas justificativas, ou até mesmo sem demonstração de sua necessidade, ou seja, completamente irracionais – acabam, ao fim e ao cabo, ferindo frontalmente a garantia de “igualdade de condições a todos os concorrentes”, os postulados do julgamento objetivo e da ampla competitividade.

Igualmente, é fundamental ressaltar a existência de entendimento jurisprudencial no sentido de que a imposição de requisitos técnicos para a habilitação dos licitantes ou para a efetivação da contratação deve estar devidamente fundamentada, demonstrando-se sua necessidade e indispensabilidade. Assim, no Acórdão 2129/2021 do Colendo Tribunal de Contas da União, o Relator, Ministro Benjamin Zymler, sedimentou que:

Ao inserir uma norma técnica a ser atendida pelo licitante, a Administração tem que fundamentá-la e demonstrar que ela é devida e necessária, bem como avaliar os seus efeitos na competitividade do certame, em atendimento aos princípios da motivação, da razoabilidade e da seleção da proposta mais vantajosa. (TCU representação 047.378/2020-4, plenário, rel. Min. Benjamin Zymler, sessão 15/09/2021)

Na mesma linha de raciocínio, preleciona o jurista Marçal Justen Filho:

[...]   Foi a Constituição que determinou a admissibilidade apenas de exigências as mais mínimas possíveis. Portanto, quando a Administração produzir exigências maiores, recairá sobre ela o dever de evidenciar a conformidade de sua conduta em face da Constituição. Mas há outro motivo para isso é que, se a Administração impôs exigência rigorosa, fê-lo com base em alguma avaliação interna. Em última análise, a discricionariedade das exigências de qualificação técnica operacional não significa que a Administração possa as escolher como bem entender. A escolha tem de ser resultado de um processo lógico, fundado em razões técnico-científicas”. (FILHO, MARÇAL JUSTEN, COMENTÁRIOS À LEI DE LICITAÇÕES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS, 10ª EDIÇÃO, EDITORA DIALÉTICA, PÁGINAS 324 E 325).

Assim, claro está que indispensabilidade dos requisitos técnicos para a garantia da execução dos serviços deve ser demonstrada de forma clara e inequívoca pela Administração Pública por meio estudos e levantamentos que demonstrem a pertinência e necessidade da exigência. Não basta, dessa forma, a mera alegação da complexidade do objeto do certame ou indispensabilidade do requisito imposto, ambas as afirmações devem estar devidamente fundamentadas e comprovadas.

Ainda relativamente ao estabelecimento de requisitos, observa-se que a exigência visa garantir não somente a ampla concorrência, mas especialmente resguardar a Administração Pública, garantindo – conforme prescreve a Lei de Licitações de 1993 – “[...] a seleção da proposta mais vantajosa para a administração [...]”.  Agora pergunta-se: qual o critério para determinar a proposta mais vantajosa?

A vantagem para a Administração Pública deve ser pautada no binômico Técnica x Preço, ou seja, deve-se selecionar a posposta que apresente o menor valor de contratação, mas que ao mesmo tempo possua a melhor técnica para a execução do serviço pleiteado.

Entretanto, a imposição de qualificações técnicas não indispensáveis a realização das atividades atinentes ao objeto da licitação rompe com esse princípio, haja vista impedir impedindo a apresentação de um maior número de propostas e, consequentemente, a contratação de empresa que apresente melhor técnica e preço.

Assim, em voto proferido no julgamento da ADIn 2716/RO, o Ministro Eros Grau sedimentou:

A licitação --- tenho-o reiteradamente afirmado --- é um procedimento que visa à satisfação do interesse público, pautando-se pelo princípio da isonomia. Está voltada a um duplo objetivo: o de proporcionar à Administração a possibilidade de realizar o negócio mais vantajoso --- o melhor negócio --- e o de assegurar aos administrados a oportunidade de concorrerem, em igualdade de condições, à contratação pretendida pela Administração. (STF – ADI: 2716 – Rondônia, Tribunal Pleno, DJe de 7/3/08)

Não se nega, portanto, que a administração busque a melhor qualificação técnica, afastando os licitantes incapazes, todavia, impossível é que sejam impostas exigências que, propositalmente, excluam um grande número de candidatos e direcionam todo o processo à contratação de um licitante pré-determinado. Práticas fraudulentas dessa espécie são, infelizmente, parte do cotidiano das contratações pela administração pública, devendo os licitantes estarem sempre atentos atento às exigências impostas, de modo a resguardar a lisura dos certames, garantindo a igualdade de condições para todos os participantes e a ampla concorrência.

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 14 jul. 2022.

Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal de 1988, institui normas para licitações e contratos da administração pública e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8666cons.htm. Acesso em: 14 jul. 2022.

Lei n° 14.133, de 1° de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm. Acesso em: 14 jul. 2022.

Guia de Combate a cartéis em licitação. CADE. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/Not%C3%ADcias/2019/Cade%20publica%20Guia%20de%20Combate%20a%20Cart%C3%A9is%20em%20Licita%C3%A7%C3%A3o__guia-de-combate-a-carteis-em-licitacao-versao-final-1.pdf. Acesso em: 15 de julho de 2022.

Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 2716, Rondônia, Tribunal Pleno. Relator: Ministro Eros Grau. DJe: 7 de março de 2008.

Tribunal de Contas da União. Representação n° 047.378/2020-4, plenário. Relator:  Ministro: Benjamin Zymler. Brasília, 15 de novembro de 2021.

FILHO, Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 10ª Edição, São Paulo: Dialética, 2004.

Luiz Afonso Medeiros
Diretor de Relações Governamentais e Internacionalização de Negócios do Barreto Dolabella - Advogados e Consultor jurídico. Advogado.Professor de Direito Internacional e Relações Internacionais. Consultor Jurídico do Departamento de Promoção Comercial e Investimentos do Ministério das Relações Exteriores (DPR/MRE). Consultor Jurídico-Chefe da Agência Brasileira de Cooperação do Ministério das Relações Exteriores do Brasil (ABC/MRE). Consultor jurídico de diversos organismos internacionais, em matéria de Direito Internacional, dentre os quais agências especializadas das Nações Unidas - PNUD, FAO, UNICEF, UNESCO, OMM, OIT, OPAS, BANCO MUNDIAL, - e agências especializadas da OEA - IICA, BID. Presidente do Fórum Brasileiro de Direitos Humanos (FBDH).

João Gabriel Oliveira
Colaborador do escritório Barreto Dolabella. Graduando em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (CEUB) e em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UNB). Possui experiência acadêmica em áreas diversas, destacando-se a participação em programa de Mobilidade na Universidad de La República Uruguay, tendo estudado o tema Sociedad y Pensamiento Sociológico Latino-americano; e em Exercício de Crises Internacionais na Escola Superior de Guerra. Além disso, foi membro da National Honor Society (NHS), quando de sua graduação pela University of Missouri High School.

Samuel Fernandes Pereira
Colaborador do escritório Barreto Dolabella. Graduando em Direito pelo Centro Universitário do Distrito Federal- UDF. Experiência em estágio profissional no Ministério do Meio Ambiente e na área de licitações, bem como contratos, acordos e convênios pelo Conselho de Arquitetura do Distrito Federal.

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