Antes de mais nada, fundamental é destacar o objetivo das licitações públicas e quais os valores que regem essa modalidade de concorrência pública. Nesse sentido, a Lei n° 8.666 de 1993, em seu artigo 3°, responde algumas destas indagações, determinando que as licitações se destinam à “observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável.” Ademais, seu processamento e julgamento deve ter como norte os “princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhe são correlatas.”
A nova lei de licitações, lei 14.133 de 2021, de igual forma, elencou em seu artigo 5° uma extensa coletânea de elementos que dão forma aos processos licitatórios, destacando-se a necessidade de observância aos princípios da igualdade, impessoalidade e ampla competitividade.
Observa-se, assim, que é tendo os elementos acima mencionados como balizas, que todos os atos dos processos licitatórios devem ocorrer, aí inclusa a exigência de qualificações técnicas e econômicas aos licitantes. Nesse parecer, tem-se que as mencionadas exigências inúmeras vezes possuem condão diverso, não respeitando a isonomia e a igualdade de condições dos concorrentes, mas se voltando ao benefício de um licitante específico.
Nesse diapasão, é perceptível que inúmeras vezes a imposição de requisitos técnicos é utilizada, de acordo com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, como estratagema que objetiva “eliminar ou restringir a concorrência dos processos de contratação de bens e serviços pela Administração Pública.” Esse conluio entre agentes caracteriza perfeitamente a formação de cartéis em licitação.
Conhecendo esta situação, a Constituição da República Federativa do Brasil estabeleceu em seu artigo 37°, XXI:
XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Pois bem, perceptível é o cuidado do Constituinte em garantir a lisura dos processos licitatórios, tanto na fase preparatória, quanto nas demais, de forma que estabeleceu de forma expressa a necessidade da manutenção da igualdade de condições a todos os concorrentes. Entretanto, também é conhecida a necessidade de especificações técnicas para a realização de determinados serviços, o que naturalmente decorre da espécie da prestação. Lógico é que não se pode, por óbvio, ser contratada uma empresa de engenharia para a execução de serviços jurídicos, ou uma banca de advogados para exercer atividades de natureza médica.
Foi justamente nesse sentido que a Constituição de 1988 estabeleceu a possibilidade de serem realizadas exigências técnicas aos participantes das concorrências públicas. Não obstante – sabendo dos desvios morais que podem atingir a natureza humana e considerando que podem os requisitos serem utilizados como forma de restrição à concorrência, atuando como “cláusula peneira”, imposição que “filtra” os participantes da concorrência, de forma não isonômica, o que acarreta direcionamento da licitação e, colateralmente, ainda atinge o primado da impessoalidade e da igualdade – estabeleceu sólido critério para que possam ser realizadas exigências técnicas.
Dessa forma, conforme consta do artigo constitucional anteriormente trazido, as exigências de qualificação técnica e econômicas somente poderão estar presentes quando forem “indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.”
Portanto, aqui deve ficar claro que não são proibidas exigências técnicas.
A grande problemática frente a qual se opõe diz respeito às condições que não são indispensáveis ao cumprimento do contrato, mas que – fundadas em parcas justificativas, ou até mesmo sem demonstração de sua necessidade, ou seja, completamente irracionais – acabam, ao fim e ao cabo, ferindo frontalmente a garantia de “igualdade de condições a todos os concorrentes”, os postulados do julgamento objetivo e da ampla competitividade.
Igualmente, é fundamental ressaltar a existência de entendimento jurisprudencial no sentido de que a imposição de requisitos técnicos para a habilitação dos licitantes ou para a efetivação da contratação deve estar devidamente fundamentada, demonstrando-se sua necessidade e indispensabilidade. Assim, no Acórdão 2129/2021 do Colendo Tribunal de Contas da União, o Relator, Ministro Benjamin Zymler, sedimentou que:
Ao inserir uma norma técnica a ser atendida pelo licitante, a Administração tem que fundamentá-la e demonstrar que ela é devida e necessária, bem como avaliar os seus efeitos na competitividade do certame, em atendimento aos princípios da motivação, da razoabilidade e da seleção da proposta mais vantajosa. (TCU representação 047.378/2020-4, plenário, rel. Min. Benjamin Zymler, sessão 15/09/2021)
Na mesma linha de raciocínio, preleciona o jurista Marçal Justen Filho:
[...] Foi a Constituição que determinou a admissibilidade apenas de exigências as mais mínimas possíveis. Portanto, quando a Administração produzir exigências maiores, recairá sobre ela o dever de evidenciar a conformidade de sua conduta em face da Constituição. Mas há outro motivo para isso é que, se a Administração impôs exigência rigorosa, fê-lo com base em alguma avaliação interna. Em última análise, a discricionariedade das exigências de qualificação técnica operacional não significa que a Administração possa as escolher como bem entender. A escolha tem de ser resultado de um processo lógico, fundado em razões técnico-científicas”. (FILHO, MARÇAL JUSTEN, COMENTÁRIOS À LEI DE LICITAÇÕES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS, 10ª EDIÇÃO, EDITORA DIALÉTICA, PÁGINAS 324 E 325).
Assim, claro está que indispensabilidade dos requisitos técnicos para a garantia da execução dos serviços deve ser demonstrada de forma clara e inequívoca pela Administração Pública por meio estudos e levantamentos que demonstrem a pertinência e necessidade da exigência. Não basta, dessa forma, a mera alegação da complexidade do objeto do certame ou indispensabilidade do requisito imposto, ambas as afirmações devem estar devidamente fundamentadas e comprovadas.
Ainda relativamente ao estabelecimento de requisitos, observa-se que a exigência visa garantir não somente a ampla concorrência, mas especialmente resguardar a Administração Pública, garantindo – conforme prescreve a Lei de Licitações de 1993 – “[...] a seleção da proposta mais vantajosa para a administração [...]”. Agora pergunta-se: qual o critério para determinar a proposta mais vantajosa?
A vantagem para a Administração Pública deve ser pautada no binômico Técnica x Preço, ou seja, deve-se selecionar a posposta que apresente o menor valor de contratação, mas que ao mesmo tempo possua a melhor técnica para a execução do serviço pleiteado.
Entretanto, a imposição de qualificações técnicas não indispensáveis a realização das atividades atinentes ao objeto da licitação rompe com esse princípio, haja vista impedir impedindo a apresentação de um maior número de propostas e, consequentemente, a contratação de empresa que apresente melhor técnica e preço.
Assim, em voto proferido no julgamento da ADIn 2716/RO, o Ministro Eros Grau sedimentou:
A licitação --- tenho-o reiteradamente afirmado --- é um procedimento que visa à satisfação do interesse público, pautando-se pelo princípio da isonomia. Está voltada a um duplo objetivo: o de proporcionar à Administração a possibilidade de realizar o negócio mais vantajoso --- o melhor negócio --- e o de assegurar aos administrados a oportunidade de concorrerem, em igualdade de condições, à contratação pretendida pela Administração. (STF – ADI: 2716 – Rondônia, Tribunal Pleno, DJe de 7/3/08)
Não se nega, portanto, que a administração busque a melhor qualificação técnica, afastando os licitantes incapazes, todavia, impossível é que sejam impostas exigências que, propositalmente, excluam um grande número de candidatos e direcionam todo o processo à contratação de um licitante pré-determinado. Práticas fraudulentas dessa espécie são, infelizmente, parte do cotidiano das contratações pela administração pública, devendo os licitantes estarem sempre atentos atento às exigências impostas, de modo a resguardar a lisura dos certames, garantindo a igualdade de condições para todos os participantes e a ampla concorrência.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 14 jul. 2022.
Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal de 1988, institui normas para licitações e contratos da administração pública e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8666cons.htm. Acesso em: 14 jul. 2022.
Lei n° 14.133, de 1° de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm. Acesso em: 14 jul. 2022.
Guia de Combate a cartéis em licitação. CADE. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/Not%C3%ADcias/2019/Cade%20publica%20Guia%20de%20Combate%20a%20Cart%C3%A9is%20em%20Licita%C3%A7%C3%A3o__guia-de-combate-a-carteis-em-licitacao-versao-final-1.pdf. Acesso em: 15 de julho de 2022.
Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 2716, Rondônia, Tribunal Pleno. Relator: Ministro Eros Grau. DJe: 7 de março de 2008.
Tribunal de Contas da União. Representação n° 047.378/2020-4, plenário. Relator: Ministro: Benjamin Zymler. Brasília, 15 de novembro de 2021.
FILHO, Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 10ª Edição, São Paulo: Dialética, 2004.