A contínua evolução da sociedade hodierna exige que o ordenamento jurídico se desenvolva de modo a atualizar o seu modus operandi, tendo como consequência intensas e constantes mudanças nessa esfera.
Assim, inspirado no direito estrangeiro dos alemães e portugueses, o Código Civil de 2002 trouxe para o direito brasileiro o instituto da reserva mental, positivado no seu artigo 110. Destaca-se, in verbis:
Art. 110. A manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento.
De fato, o que se percebe é uma verdadeira preocupação do legislador em proteger o sujeito de boa-fé do negócio jurídico, para que este não saia prejudicado por conta da atitude desonesta do declarante.
Em obra pioneira sobre a matéria no direito brasileiro, Nelson Nery Júnior destaca que a reserva mental é “a emissão de uma declaração não querida em seu conteúdo, tampouco em seu resultado, tendo por único objetivo enganar o declaratório”.1
Ainda, vale ressaltar a definição de Vicente Ráo, veja-se:
A reserva mental é uma particular espécie de vontade não declarada, por não querer, o agente, declará-la. É uma vontade que o agente intencionalmente oculta, assim procedendo para sua declaração ser entendida pela outra parte, ou pelo destinatário (como seria pelo comum dos homens) tal qual exteriormente se apresenta, embora ele, declarante, vise alcançar não os efeitos de sua declaração efetivamente produzida, mas os que possam resultar de sua reserva.2
Portanto, se retira que a reserva mental acontece quando o sujeito realiza um negócio jurídico com intenção verdadeiramente diversa da externada, no intuito de enganar o indivíduo de boa-fé que praticou o ato em conjunto.
Ou seja, o sujeito intencionalmente declara algo que não é de sua vontade com o único intuito de enganar o destinatário ou terceiros, ocultando sua verdadeira intenção.
O ordenamento jurídico considera a reserva mental como um ato unilateral, eis que, caso a outra parte também tenha conhecimento da real pretensão da parte contrária (vício social), é nulo o negócio jurídico.
Compreende-se que o pilar da validade do negócio jurídico se encontra na manifestação da vontade de forma livre, consciente e dotada de boa-fé. A partir disso, imperiosa se faz a lição de José Augusto Delgado e Luiz Manoel Gomes Júnior, de que:
(...) a declaração de vontade é composta por dois elementos: a) um interno (é a intenção assentada no íntimo da pessoa, a vontade real); b) o outro externo (é a manifestação dessa vontade).3
Nesse sentido, o instituto da reserva mental se verifica quando inexiste efetiva concordância entre a vontade interna e a declarada (externa), com a intenção de enganar a outra parte do negócio jurídico.
Rememora-se que tal proteção é válida apenas na hipótese de que a outra parte não possui qualquer cognoscibilidade acerca da reserva mental do declarante. Caso esteja ciente da condição, não há reserva mental, conforme ressalta Orlando Gomes:
Na reserva mental oculta-se vontade contrária à declarada. O declarante mantém na mente o verdadeiro propósito – propositum in mente relentum – e o propósito oculto não deixa de ser oculto por ter sido comunicado a terceiro.4
Significa dizer que, nos casos em que não há ciência por parte do destinatário de boa-fé acerca da reserva mental do declarante, o negócio jurídico será válido e terá seus efeitos produzidos, prevalecendo à vontade externada, em observância aos princípios norteadores da boa-fé e probidade.
Destarte, acertado é o entendimento da legislação nacional quanto a aplicação do disposto no artigo 110 do Código Civil, eis que devem ser observados os pressupostos de validade do negócio jurídico, que são inexistentes quando existe o efetivo conhecimento da reserva mental do declarante, e, quando não há ciência prévia da outra parte, a prevalência dos princípios da probidade e boa-fé, bem como o da conservação dos negócios jurídicos.
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1 NERY JUNIOR, Nelson. Vícios do Ato Jurídico e Reserva Mental. São Paulo, RT, 1983.
2 RÁO, Vicente. Ato Jurídico, 3ª tiragem, São Paulo: Max Limonad, 1961.
3 DELGADO, José Augusto; GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel. Comentáario ao Código Civil Brasileiro: dos fatos jurídicos. Arruda Alvim e Thereza Alvim (coord.). Rio de Janeiro: Forense, vol II, 2008.
4 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2001.
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ASCENSÃO, José de Oliveira. Teoria Geral do Direito Civil - Ações e Factos Jurídicos. Lisboa, 1992, vol III.
DELGADO, José Augusto; GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel. Comentáario ao Código Civil Brasileiro: dos fatos jurídicos. Arruda Alvim e Thereza Alvim (coord.). Rio de Janeiro: Forense, vol II, 2008.
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2001.
NERY JUNIOR, Nelson. Vícios do Ato Jurídico e Reserva Mental. São Paulo, RT, 1983.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de Direito Privado. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1959.
RÁO, Vicente. Ato Jurídico, 3ª tiragem, São Paulo: Max Limonad, 1961.